Por Ronaldo Luiz
Durante muitos anos, a pecuária brasileira foi uma atividade desenvolvida sem a adoção de grandes recursos tecnológicos, mas agora o cenário é muito diferente. O uso de drones para controlar o rebanho, da inteligência artificial para pesar o gado por meio de imagens, sem o uso de balanças, de softwares, dispositivos de internet das coisas e telemetria para monitorar a saúde e alimentação bovina, entre muitos outros, provocaram uma revolução na forma como o setor é conduzido no País. Com a ajuda da pesquisa e da inovação, e robustos investimentos em genética, sanidade, nutrição e manejo de pastagens, a pecuária nacional vem passando por grandes mudanças. As medidas apontadas acima encurtaram o ciclo de abate, aumentaram a produtividade e, na ponta final, elevaram a qualidade da carne no mercado doméstico e internacional.
Os números estão aí para provar. No acumulado do ano, os embarques de carne bovina do Brasil chegaram a 835,3 mil toneladas, um aumento de 37,2% na comparação com o mesmo período de 2023, conforme balanço da Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (Abiec). Em faturamento, houve um crescimento de quase 30% – de US$ 2,8 bilhões nos primeiros quatro meses de 2023 para US$ 3,6 bilhões em 2024. Projeções do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA, na sigla em inglês) apontam que a produção de carne bovina brasileira deverá alcançar 11,2 milhões de toneladas em 2024, volume 2,4% superior ao de 2023. Vale destacar que o Brasil deverá embarcar 2,9 milhões de toneladas de carne bovina neste ano, uma alta de 1,1% no comparativo com 2023.
Nessa jornada, o Brasil também se tornou referência em pecuária sustentável. Em meio ao gigantismo do rebanho nacional, de aproximadamente 224,6 milhões de cabeças, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a produção livre de desmatamento ilegal, rastreável, que foca na recuperação de pastagens, em técnicas para aproveitar melhor o solo por meio da integração e intensificação com a agricultura, e no uso adequado de nutrientes, entre outros avanços, são iniciativas cada vez mais presentes no segmento.
Dois fatores chamam especial atenção. Em primeiro lugar, em um mercado de margens cada vez mais estreitas, o pecuarista foi intimado a modernizar o seu negócio, tanto do ponto de vista técnico quanto financeiro, para assegurar a sua competitividade, tendo que produzir cada vez mais com menos. Além disso, o crescimento do mercado asiático para a carne bovina brasileira, com a China respondendo por praticamente 50% dos embarques, fez o sarrafo da qualidade subir, gerando impactos positivos ao longo de toda a cadeia produtiva. “O avanço tecnológico promovido pela Embrapa, pelos institutos científicos e pelas empresas de nutrição permite um novo equilíbrio entre genética, nutrição e manejo, que impulsiona a produção com mais qualidade e sem aumento de custo”, diz Francisco Vila, consultor da Sociedade Rural Brasileira (SRB). “Essa combinação catapultou a pecuária brasileira para a posição de maior exportadora de carne com sustentabilidade do mundo.”
Para Manoel Sá Filho, gerente de corte da multinacional canadense Alta Genetics, líder do mercado brasileiro de genética bovina, o melhoramento genético, que tem por objetivo fazer com que o rebanho incorpore, de forma crescente, características positivas de produção com menos recursos, está relacionado com o maior ganho de peso dos animais por área, o que, na prática, se configura como um atributo de sustentabilidade. “O animal que desempenha pouco consome os mesmos recursos da fazenda em comparação com o que desempenha muito, por isso a importância da genética dentro do ciclo produtivo, diluindo os custos”, diz. A pecuarista Beatriz Biagi, da Beabisa Pecuária, reconhecida pela excelência genética de seu plantel, destaca os diferenciais do melhoramento nas matrizes de seu rebanho Nelore há quase 30 anos. “A criação responsável e avaliações consistentes garantem que nossos animais ofereçam o equilíbrio perfeito entre temperamento, qualidade e alta performance a pasto”, diz.
Uma das iniciativas que vêm atestando os avanços da bovinocultura na temática da sustentabilidade é o consórcio da atividade com a agricultura e florestas, a chamada interação lavoura-pecuária-floresta (ILPF), que atualmente é adotada em cerca de 17 milhões de hectares, com projeção de chegar a 27 milhões até 2030. Segundo o pesquisador da Embrapa Pecuária Sudeste Alberto Bernardi, os estudos com os sistemas integrados de produção apresentam ano a ano resultados positivos especialmente na diminuição de Gases de Efeito Estufa (GEE), além da incorporação de carbono no solo e nas árvores. “Isso sem contar que a verticalização da produção diminui a pressão por abertura de novas áreas, em um claro ganho ambiental”, afirma.
Em Goiás, o projeto Bovinocultura Sustentável, criado pelo zootecnista Fernando Coelho em 2003, coleciona diversos casos de sucesso de produtores assistidos pela Agência Goiana de Assistência Técnica, Extensão Rural e Pesquisa Agropecuária (Emater). Um exemplo marcante é o da Fazenda Redentor, localizada no município de Goiás, homônimo ao estado, que foi transformada e atualmente é um modelo economicamente sustentável.
A propriedade é assistida há quase cinco anos pela equipe de técnicos da Emater e passou por diversas etapas, já que o trabalho alcança seus primeiros resultados em médio e longo prazos. De acordo com o proprietário da Fazenda Redentor, Ricardo Soares, a assistência técnica recebida pelos profissionais foi fundamental. “Assumimos a propriedade sem nenhum conhecimento sobre pecuária e por isso buscamos a ajuda da Emater, que nos orientou sobre diversas questões”, diz. “Entre elas, análise do solo, recuperação de pastagem, manejo baseado nos princípios de ponto vegetativo ideal da forrageira, da época do ano e da categoria animal, além da introdução de novas tecnologias que transformaram a nossa fazenda em um negócio lucrativo.”
A nova estratégia trouxe frutos. No período de novembro de 2019 a maio de 2024, a propriedade saltou de 318 animais para 761 e o índice de natalidade de 55% para 76%. Além disso, o número de Unidades de Animal por hectare (UA/hectare) teve um aumento de 135%, saindo de 0,89 para 2,09 UA/hectare. Outro dado importante diz respeito ao peso da desmama dos bezerros, que, em 2019, era de 163 quilos e, em 2024, atingiu 220 quilos. Fernando Coelho enumera outras vantagens do projeto Bovinocultura Sustentável implantado na Fazenda Redentor. “Não usamos calcário e nem adubação com NPK ou outra fonte de reposição de nutrientes, mas um manejo correto de pastagem observando ponto vegetativo ideal, sistema radicular, categoria animal e época do ano.”
Além da Fazenda Redentor, o projeto de Bovinocultura Sustentável atende cerca de 40 propriedades goianas, localizadas na cidade de Goiás, Mossâmedes, Sanclerlândia, Nerópolis, Itauçu, Bela Vista e Santa Rosa de Goiás. “Nosso objetivo é apresentar soluções sustentáveis para as propriedades sem que o produtor tenha que fazer grandes investimentos, mas a partir de mudanças na forma de agir e gerir, e com o apoio técnico de nossos especialistas”, diz Rafael Gouveia, presidente da Emater Goiás.
Diversas iniciativas colocam o Brasil na vanguarda da pecuária sustentável. Um exemplo é o boi orgânico do Pantanal sul-mato-grossense, um programa desenvolvido e certificado pela Associação Brasileira de Produtores Orgânicos (ABPO). Criada em 2001 por nove pecuaristas da região, a entidade conta atualmente com 140 produtores de 200 fazendas, cerca de 450 mil cabeças, abate mensal próximo a 12 mil unidades e área certificada em torno de 1,4 milhão de hectares. Basicamente, a carne bovina orgânica advém do boi que se alimenta primordialmente de pasto, protegido e fertilizado sem o uso de insumos químicos, e com eventual suplementação feita somente com grãos não transgênicos.
Silvio Balduino, gerente executivo da ABPO, diz que, devido a esses diferenciais, o custo de produção do boi orgânico é mais alto, mas que o investimento compensa diante do sobrepreço entre 5 e 10% que é pago pela arroba do animal por parte dos abatedouros. O dirigente conta que os principais clientes do boi orgânico são marcas de varejo de carnes especiais. “Os grandes frigoríficos são nossos parceiros como prestadores de serviço para o abate, mas não comercialmente no momento”, afirma. Segundo ele, a associação deu entrada recentemente no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi) para a criação do Selo de Indicação Geográfica da Carne Orgânica do Pantanal.
A expansão da pecuária sustentável no Brasil está sendo objeto de modelos de financiamento inovadores. Exemplo disso foi o recente anúncio da JBS de um aporte de R$ 10,2 milhões em um novo Certificado de Recebíveis do Agronegócio (CRA).
Emitido pela empresa Rio Capim Agrossilvipastoril, o CRA será estruturado pela Vox Capital e prevê uma emissão total de R$ 100 milhões. A expectativa do programa “Juntos”, lançado ano passado pelo Fundo JBS pela Amazônia, é de que sejam alavancados mais de R$ 900 milhões via blended finance, também chamado de financiamento misto.
Em 2023, a JBS destinou R$ 10 milhões ao programa, via Fundo JBS pela Amazônia, para viabilizar a estruturação do Juntos. “Esse projeto é absolutamente disruptivo e tem um poder transformacional para a pecuária brasileira”, diz Gilberto Tomazoni, CEO global da JBS. “Colocar o foco em produtividade para aumentar a sustentabilidade é o que vai garantir o engajamento nesse processo de transformação”, avalia. O executivo acrescenta: “Por que o produtor rural não investe em genética e manejo do solo? Porque não tem capital nem assistência técnica. É aí que entra o programa Juntos. Acreditamos tanto nesse modelo de desenvolvimento socioambiental que vamos entrar com a cota de maior risco para provar que ser sustentável é mais lucrativo.”
Os valores serão aplicados no atendimento de 3,5 mil pequenos criadores de gado atuantes na área da Amazônia Legal, oferecendo consultoria sobre o uso da terra – a expectativa é aumentar a rentabilidade e frear o desmatamento ilegal do bioma. “Estamos viabilizando a operação para gerar negócios que sejam inclusivos e ambientalmente sustentáveis para a Amazônia, e, ao mesmo tempo, que tenham retorno financeiro”, afirma Andrea Azevedo, diretora executiva do Fundo JBS pela Amazônia. “Queremos que a Faria Lima veja retorno ao investir no pequeno produtor com toda a segurança necessária, dentro de um novo padrão de modelo de negócio.”
A abordagem do CRA prevê recursos oriundos de fundos concessionados e privados e centrados no projeto Juntos. A estimativa do Fundo JBS é investir até R$ 100 milhões nos próximos dez anos, alavancando mais de R$ 900 milhões entre recursos de Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar), comerciais e doações, além de diversos tipos de instrumentos financeiros.
“O blended finance permite tanto para o emissor como para o tomador do crédito uma taxa muito competitiva”, diz Daniel Brandão, diretor da Vox Capital. “A partir dessa base, o emissor consegue alavancar o seu negócio e, ao mesmo tempo, criar uma estrutura que o leve a oferecer uma taxa mais atrativa para o mercado. É uma operação ganha-ganha.”
A pecuária brasileira vive, de fato, uma nova era. “O desmatamento é um assunto do passado”, diz o consultor Francisco Vila. “O Brasil possui 40 milhões de hectares de pastos degradados. Somente aumentando o pasto de qualidade em 20 milhões de hectares, a produção de carne atingirá um volume superior à demanda. Ou seja, o desafio não é físico, mas sim de comunicação.” Carlos Barbieri, consultor da Mesa Brasileira da Pecuária Sustentável, grupo multissetorial que contempla diversos elos da cadeia produtiva, vai na mesma linha de raciocínio. “Adotamos um conjunto de boas práticas que posicionam a pecuária nacional como protagonista na produção de carne sustentável”, diz. No Brasil, o boi nunca foi tão verde.
Em ascensão
Confinamento de bovinos deverá crescer 2,5% em 2024
O censo de confinamento feito pela multinacional suíço-holandesa dsm-firmenich projeta um volume de 7,3 milhões de bovinos confinados no Brasil em 2024, o que significará um aumento de 2,5% em comparação com o ano passado. Os números refletem a tendência de crescimento do sistema intensivo da pecuária de corte no País, que, em 2023, registrou um aumento de 3,9% no abate de bovinos. “O crescimento do volume de bovinos terminados em um sistema de produção intensivo mostra um movimento em direção ao aumento da produtividade e da rentabilidade”, diz Walter Patrizi, gerente técnico de Confinamento para a América Latina da dsm-firmenich. “E isso passa pela adoção de tecnologias de nutrição que ajudam a impulsionar os resultados no campo.”
Sob o guarda-chuva do conceito de pecuária sustentável, Isaias Martin, zootecnista e supervisor Comercial da Connan, empresa especializada em nutrição animal, lembra que terminação de bovinos em confinamento apresenta uma série de vantagens para a cadeia produtiva da pecuária de corte ao longo do ano, como o maior equilíbrio na oferta de animais terminados, menor pressão de pastejo nas pastagens no período seco e diminuição da idade de abate do rebanho. “Apesar de os bovinos serem animais herbívoros acostumados ao pastejo, eles conseguem viver em confinamento quando adaptados corretamente”, diz. “Para isso, é preciso respeitar algumas rotinas de manejo, como o tamanho e número de animais por lote, o espaço disponível por cabeça, condições climáticas adequadas, ausência de sons, pessoas e objetos desconhecidos, lama ou poeira nos currais de confinamento.”
Longa jornada
Transformação de pasto severamente deteriorado em área fértil pode levar até um ano
Estima-se que o Brasil tenha em torno de 40 milhões de hectares de pastagens degradadas com potencial de recuperação para que se tornem terras agricultáveis. Segundo João Victor, engenheiro agrícola da Geodata, empresa especializada em tecnologia digital para a agricultura de precisão, o passo inicial para a recuperação de um solo altamente deteriorado é a descompactação com maquinário agrícola. Em seguida, ressalta, vem a aplicação de calcário, com o intuito de corrigir sua acidez, com a recomposição de elementos como cálcio e magnésio. Depois, é a vez das etapas de análise de solo para o diagnóstico geral das condições e recomendações dos processos de fertilização. “O custo médio para a calagem de uma pastagem severamente degradada pode chegar a R$ 2 mil por hectare”, diz Victor. “Para uma área com elevada degradação, o programa leva em torno de um ano para a plena recuperação.”