Por Marco Damiani
Em meio à maior tragédia climática já ocorrida no Brasil, com tempestades e enchentes retirando 1 milhão de hectares de suas áreas agricultáveis, a resiliência da agricultura do Rio Grande do Sul acaba de ultrapassar seu maior teste. Colhida a safra de inverno, os resultados se mostraram melhores do que os esperados inicialmente, formando um cenário de recuperação para a safra que inaugura a fase de plantio. Antes das inundações, a agropecuária gaúcha havia registrado alta de 4,1% na comparação com o quarto trimestre de 2023.
A cultura do arroz, em que os produtores gaúchos respondem por 70% do total nacional, foi a primeira a mostrar bons resultados no pós-chuva, e enfrentou com êxito o desafio logístico de escoar para o País uma safra de 7,14 milhões de toneladas. Na aferição de maio, as inundações haviam comprometido apenas 1,6% da colheita, ou 114 mil toneladas do grão, volume considerado pequeno diante dos estragos causados em todo o estado pela força do El Niño. “Superamos a maior tragédia imposta à agricultura gaúcha, garantindo o abastecimento do mercado sem nenhuma descontinuidade”, afirma o presidente da Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul, Gedeão Pereira. “Prometemos que não ia faltar arroz, e não faltou.”
Mesmo com uma perda acumulada para as chuvas de nada menos que 64,2% dos terrenos utilizados na safra 2022/23, segundo o MapBiomas, altas espetaculares em produtividade salvaram do fracasso outra cultura típica do sul. Ao contrário, realizou-se um prodígio. No trigo, a colheita deste ano difícil, de 4 milhões de toneladas, representa uma alta de 55,27% sobre o ciclo anterior. A produtividade cresceu impressionantes 77,04%, compensando com folgas a redução a 12,84% na área plantada.
Os especialistas, de fato, se surpreenderam com o resultado. “A sólida cultura agrícola gaúcha associada ao uso das ferramentas da tecnologia e o apoio de uma grande rede de assistência evitaram perdas que, inicialmente, foram previstas em dimensões ainda maiores”, afirma o presidente da Embrapa Territorial, Gustavo Spadotti. Ele integrou o comitê de crise criado para reunir órgãos governamentais, entidades associativas e produtores rurais em torno de ações de emergência sobre a agropecuária gaúcha durante o período mais crítico das enchentes. “O comitê gerenciou um sistema de informações estratégicas que vinham tanto de satélites, para mapearmos, num primeiro momento, as manchas de inundação, como da rede de apoio que levou alimentos, água, suprimentos, roupas e remédios para localidades e produtores que ficaram isolados”, afirma. Também foram feitas vaquinhas de captação para socorrer financeiramente famílias atingidas. No total, 4,1 milhões de gaúchos foram impactados pela subida das águas.
Os satélites utilizados pela Embrapa apontaram que pelo menos 40 mil hectares de vegetação permanente foram atingidos pelas cheias no Rio Grande do Sul, e outros 90 mil hectares de vegetação nativa. As safras de soja e milho foram as que mais sofreram perdas em razão de uma dupla adversidade: estiagem no período do plantio, no ano passado, e as cheias de maio deste ano, na fase final da colheita. Muitas lavouras nas regiões sul e oeste foram abandonadas, com perdas em totalidade. Estima-se um recuo de até 30% sobre as colheitas do ano passado. A produtividade caiu em até 62% em grandes áreas produtivas, de acordo com o Informativo Conjuntural da Emater-RS, publicado no final de junho.
Os pequenos agricultores foram os mais afetados, com centenas de situações de isolamento. O milho gaúcho teve a colheita tardia praticamente toda perdida e apresentou “produtividade e qualidade reduzidas devido às chuvas excessivas”, de acordo com o órgão governamental de pesquisa e apoio. O agricultor Guilherme Norberto, da região de Cachoeira do Sul, vivenciou uma situação de 30 pontes próximas destruídas, com estradas intransitáveis e a necessidade de escoar, junto a dezenas de outros agricultores, cerca de 170 mil sacos de arroz. “Tivemos de sair com nossos caminhões carregados e algum dinheiro no bolso para comprar pedras, diz ele. “Não havia outra saída, e no final deu certo.”
Na adversidade, uma cultura que já vinha crescendo no Rio Grande do Sul ganhou mais espaço: a canola. Resistente ao frio intenso e a geadas, a oleoginosa protagonizou um aumento de 74% na área plantada, chegando a 231 municípios gaúchos. Em contrapartida, as condições climáticas que chegaram a registrar dezenas de horas de frio abaixo de 7 °C na Serra Gaúcha prejudicaram diretamente a uva, cujas perdas ainda estão sendo contabilizadas.
Graças a articulações políticas, o Congresso aprovou, em maio, o perdão de dívidas de financiamento de safra aos produtores gaúchos que comprovarem suas perdas com as chuvas. Ao mesmo tempo, linhas especiais de crédito têm colaborado para o financiamento da nova safra, que se inicia em um cenário de volatilidade de preços e alta nos fertilizantes. Lidar com essas questões de custeio será, porém, mais simples para os produtores gaúchos do que o enfrentamento dos problemas verificados em maio. É certo que, apesar da dimensão da tragédia, eles mostraram toda a sua fibra para extrair resultados que pareciam impossíveis.