Edição 27 - 16.11.21
Em novembro de 2020, Natalia Welker e Marcelo Conserva deram um novo passo na evolução da Bodega Oceánica José Ignacio, uma vinícola boutique fundada pelos dois em Maldonado, no Uruguai. Na verdade, não foi exatamente um passo, foi um mergulho – no Oceano Atlântico, a menos de 20 quilômetros da propriedade. O casal já vinha conquistando espaço com rótulos refinados e decidiu agregar mais valor à produção e oferecer ao público uma nova experiência a partir de uma armazenagem não convencional. Um lote de 120 garrafas de seus vinhos rosé – uvas albariño e tannat – foi lançado ao mar, dentro de uma gaiola de aço inoxidável, a uma profundidade de 14 metros e a um quilômetro da costa. O período ainda é de pesquisa e experimentação, mas as provas vêm agradando até o momento. “Os resultados estão sendo excelentes”, comenta Natalia, que é a CEO da empresa.
As primeiras retiradas de garrafas, com 45, 75 e 180 dias após a armazenagem, mostraram certa singularidade. “São muito mais delicados, mais sofisticados”, diz Natalia, acrescentando que o diferencial vai além do aspecto sensorial, de aroma e paladar com uma taça nas mãos. “As garrafas cobertas de corais são verdadeiras obras de arte.” A ideia é que cada garrafa conte a história por trás desse vinho e revele a essência da empresa como um todo, e que dessa forma possam agregar valor ao produto.
O projeto de armazenagem dos vinhos no oceano, batizado de Ultramar, resulta de uma série de pesquisas da empresa. Segundo Natalia, foi formada uma equipe de trabalho específica para lidar com essa inovação, que levou alguns meses de estudo até definir qual seria o modelo ideal de gaiola e como as garrafas seriam armazenadas. Também foi preciso avaliar as questões legais para utilizar o fundo do mar como adega, tanto que o local onde ficam as garrafas é identificado e apenas mergulhadores profissionais têm acesso. “Foi necessário averiguar com as autoridades uruguaias se já havia algo assim no país. E não havia, o que tornou o Ultramar ainda mais desafiador, pois cada decisão, cada passo, exigia muita investigação”, conta Natalia. Esse levantamento amplo e detalhado também leva a empresária a acreditar que a José Ignacio seja a primeira vinícola da América do Sul a adotar uma cave submarina. “Sabemos que há outros exemplos pelo mundo, como na Espanha e nos Estados Unidos.”
Extensão do terroir
A propriedade de Natalia e Marcelo tem 52 hectares, dos quais 23 são dedicados ao plantio de oliveiras e somente 8 destinam-se às uvas. A produção de azeites veio primeiro, dando origem à linha O’33. Mas a de vinhos já estava no projeto desde o início. “Só precisávamos de mais tempo para poder avançar com a implementação da Bodega Oceánica José Ignacio. Inicialmente, plantamos 3 hectares com vinhedos, e preparamos os outros 5 hectares para ampliação”, diz Natalia. O primeiro rótulo da vinícola a entrar no mercado foi o Pinot Noir Rosé, “um vinho fresco e mineral”, como descreve a produtora. “É um vinho muito elegante e equilibrado, que pode ser apreciado em diversas combinações.”
A proximidade com o Oceano Atlântico já garante um terroir diferenciado, por conta do solo composto por areia, limo e argila, e consequentemente características únicas aos vinhos que saem dali. Além disso, a região tem clima quente e temperado, com temperatura média de 16,5 °C, oferecendo uma boa amplitude térmica durante o período de amadurecimento da uva. Com todos esses pontos favoráveis, por que o casal ainda precisaria investir em um armazenamento submarino? A resposta acabou sendo outra pergunta: E por que não?
Natalia diz que estão sempre em busca de inovações para produzir, e quando souberam de algumas descobertas submarinas começaram a pensar no assunto. Juntaram o fato de que deixar o vinho descansar após o engarrafamento é uma prática muito comum e a proximidade com o Atlântico. “Se estamos tão perto do oceano, por que não usá-lo como cave para experimentar vinhos do fundo do mar?”, questiona. Segundo ela, os vinhos armazenados no mar apresentaram um desenvolvimento mais rápido do que aqueles guardados em caves tradicionais.
Embora não seja comum, o processo de envelhecimento de vinhos no fundo do mar já vem sendo utilizado – e rendendo notícias – por causa de algumas condições que favorecem o processo de maturação da bebida. No armazenamento submarino, dependendo da profundidade em que as garrafas são guardadas, a temperatura é constante, com graduação benéfica ao vinho. Assim como a luminosidade ideal e a pressão marítima, outras características benéficas ao processo. Há quem afirme que dentro do mar já ocorra naturalmente a necessária movimentação das garrafas, o giro para manter a bebida em contato com a rolha.
Experiência faz diferença
Toda a produção de vinhos da José Ignacio é realizada sob o olhar técnico de Hans Vinding Diers, especialista que já nasceu em uma região vinícola: Stellenbrosch, na África do Sul. “Ele está conosco desde que começamos, e é quem toma as decisões em relação aos vinhos. Sua maior contribuição é que consegue interpretar a essência da fruta e trazer à tona o melhor de cada uva”, comenta Natalia. Para se ter ideia da vivência de Hans Diers com o segmento, ainda na infância se mudou com a família para Bordeaux, cidade francesa conhecida como a “capital do vinho”, e cresceu em meio à vinícola de seu pai.
O especialista passou ainda por Itália e Austrália e, em 2021, chegou à América do Sul, mais precisamente na Patagônia argentina, onde fundou a Noemía, uma vinícola biodinâmica. São dezenas de safras de experiência, atuando em quatro continentes, que garantiram ao enólogo uma visão única sobre a produção de vinhos. Essa larga experiência foi primordial para que os vinhos da José Ignacio conquistassem o público uruguaio a partir dos restaurantes e das lojas especializadas, as “vinotecas”. Também são comercializados pelo site da empresa e em supermercados específicos.
Hoje, a produção anual da vinícola, que tem sede em Montevidéu, sob o nome de Casa O’, é de 90 mil garrafas de vinho, incluindo todas as variedades, tanto dos tintos (merlot, pinot noir e tannat) quanto dos brancos (albariño e chardonnay). E a ideia é seguir como uma vinícola boutique, que prioriza a qualidade ao volume. Da mesma forma com o azeite virgem, cuja produção chega a 40 mil litros. Em fevereiro deste ano, Natalia foi convidada para compartilhar a história de sua empresa, como case de sucesso de novas gerações, no evento Field Days NZ + UY, uma já tradicional parceria entre Nova Zelândia e Uruguai, promovido pela New Zealand Trade and Enterprise, a agência neozelandesa para o desenvolvimento de comércio internacional.
A equação que reúne o espírito inovador do casal Natalia e Marcelo, a experiência de Hans Diers, os vinhos que surgem dessa parceria e todo o ambiente em torno dessa produção também abrem espaço para o enoturismo. A José Ignacio abre suas portas para receber o público em visitas à propriedade, passando tanto pelos vinhedos quanto pela vinícola. E é somente nessas oportunidades, quando o público desfruta do convidativo ambiente da vinícola, que se pode provar o Ultramar. Essa experiência acabou se tornando um privilégio dos uruguaios durante a pandemia da Covid-19, pois as restrições em relação a doenças impactaram a participação de estrangeiros na programação de visitas.