Edição 25 - 10.06.21
Por Lívia Andrade
A corrida para impedir que a temperatura mundial aumente mais que 1,5 °C até o fim do século 21 vem pautando a agenda econômica mundial. Em território nacional, tal preocupação tem sido o catalisador de uma série de mudanças rumo a uma agropecuária cada vez mais sustentável. No entanto, para avançar nessa agenda, não basta ter produtores conscientes de que precisam implantar práticas socioambientais mais modernas e responsáveis em suas propriedades. De questões regulatórias ao incentivo financeiro para que eles adéquem suas fazendas, há uma longa lista de desafios que precisam ser encarados, dentro e fora das porteiras, para que a produção sustentável seja reconhecida como um atributo indiscutível do agronegócio nacional.
Um dos principais e mais antigos pontos a serem tratados, nesse sentido, é a questão fundiária. “A terra é um ativo em disputa no mundo e está suscetível a permanentes conflitos, além de ser palco de crimes ambientais, como o desmatamento”, diz Richard Torsiano, diretor executivo da R.Torsiano Consultoria Agrária, Ambiental e Fundiária e consultor da FAO para assuntos fundiários na América Latina e Caribe.
A resolução dos conflitos agrários passa obrigatoriamente pela governança de terras, uma lição que o País ainda não fez. “Não é possível governar aquilo que não se conhece. E, para conhecer, é preciso ter um cadastro de terras eficiente e integrado com as instituições que produzem informações fundiárias como o Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária], a Receita Federal, o Serviço Florestal Brasileiro (SFB), o Cadastro Ambiental Rural (CAR) e os cartórios de registros de imóveis”, diz Torsiano.
Mesmo alguns avanços que já conseguimos ainda não podem ser totalmente contabilizados como positivos. Um dos mais modernos instrumentos legais do gênero no mundo, o Código Florestal brasileiro ainda precisa ser implementado por completo. Esta foi, inclusive, uma das ações propostas pela Coalização Brasil Clima Floresta e Agricultura, movimento que envolve mais de 280 representantes do agro, sociedade civil, setor financeiro e academia, em carta endereçada ao presidente Jair Bolsonaro, no início de abril, cobrando metas mais ambiciosas em relação ao clima. No documento, a Coalização diz que “os governos federal e estaduais deveriam iniciar já a análise dinamizada e validação do CAR, permitindo agilização da implementação dos Programas de Regularização Ambiental (PRAs) e das Cotas de Reserva Ambiental (CRAs)” e suspendendo os registros de CAR que incidem sobre florestas públicas.
Na opinião de Renata Nogueira, gerente de Sustentabilidade do Negócio Agrícola da Cargill na América do Sul, “o Brasil é um país gigantesco e as demandas são diferentes em cada região”, mas a implementação do Código Florestal é o ponto de partida. “Sabemos que uma pequena parcela de produtores não cumpre as leis ambientais e isto impacta a reputação de toda a produção agropecuária brasileira”, diz.
Não por acaso, a Cargill se comprometeu em transformar suas cadeias de suprimentos globalmente para serem livres de desmatamento até 2030. No Brasil, a multinacional já identificou a localização de todos os fornecedores diretos em biomas de alto risco, como Amazônia e Cerrado. “Com base em dados de satélite, vamos monitorar o uso da terra nessas cadeias de abastecimento”, diz. A Cofco International, trading de commodities agrícola da estatal chinesa de alimentos Cofco, foi outra gigante que anunciou a meta de rastrear 100% da soja que compra diretamente de fazendas do Brasil até 2023.
CONHECIMENTO E CUSTO A insegurança jurídica não é, entretanto, o único problema. Quando se trata de pequenos e médios estabelecimentos rurais, a falta de assistência técnica, de conhecimento sobre práticas sustentáveis, de conectividade no campo e acesso às ferramentas da agricultura digital é o grande gargalo. “Está cada vez mais evidente que, sem adotar tecnologia, sem inovar, nenhuma atividade produtiva vai para a frente”, diz Rodrigo Lima, diretor da Agroicone, empresa de pesquisa aplicada em agronegócio.
Atender às determinações do emaranhado de normas técnicas que regulam a proteção ambiental e também o trabalho no campo não é tarefa fácil. A legislação traz muitos detalhes e os órgãos oficiais responsáveis costumam fazer atualizações frequentes dessas normas, dificultando o acompanhamento por parte do produtor. Por esse motivo, empresas como as grandes traders, que fazem originação de produtos agrícolas, têm investido em parcerias para fazer chegar ao produtor esse conhecimento. Reunidas no Soft Commodities Forum (SCF), as seis maiores tradings do mundo – ADM, Bunge, Cargill, Cofco, Glencore e Louis Dreyfus – desenharam um projeto-piloto em parceria com o Instituto PCI (Produzir, Conservar e Incluir), do governo de Mato Grosso, para orientar e dar assistência técnica a produtores na adequação de suas propriedades. Numa primeira fase, foram selecionadas 50 fazendas nos municípios de Campos de Júlio e Planalto da Serra. Elas receberão diagnósticos socioambientais e orientações para elaborarem planos de ação de melhorias e serão assistidas pela Produzindo Certo, empresa escolhida como parceira técnica no programa.
Outro grande obstáculo dessa parcela de produtores é o valor das certificações, que asseguram uma produção de acordo com as boas práticas socioambientais. O custo da auditoria para conseguir esses selos oscila entre R$ 4 mil e R$ 24 mil, dependendo da certificação desejada. A quantia pode ser inviável para muitos proprietários rurais, sobretudo os de menor porte. Para driblar a barreira financeira, muitos agricultores têm buscado alternativas em programas públicos ou de organizações sem fins lucrativos. Hortifrutigranjeiros de Parelheiros, na periferia da cidade de São Paulo, por exemplo, se uniram e criaram a Cooperativa Agroecológica dos Produtores Rurais e de Água Limpa da Região Sul de São Paulo (Cooperapas). Eles seguem os protocolos de boas práticas agrícolas da Secretaria de Agricultura do Estado de São Paulo e recebem assistência técnica de agrônomos da prefeitura, que estimulam os produtores da região – que é cercada de mananciais e das represas Billings e Guarapiranga – a fazer a transição para a agricultura orgânica.
Como a certificação é algo caro e nem todos têm recursos, parte dos produtores da Cooperapas tem a chancela da Organização de Controle Social (OCS), que fornece o documento de conformidade de produção orgânica participativa. É uma espécie de certificação social, em que um produtor fiscaliza o outro. Este modelo foi abraçado por chefs de cozinha, como Paola Carossela. Desde 2016, a argentina tem parceria com a Cooperapas e, na pandemia, criou pratos vegetarianos só com produtos desses pequenos agricultores. Resultado: a chef quase quadruplicou o valor da compra de legumes e hortaliças do grupo, que saltou de R$ 36 mil em 2019 para R$ 140 mil em 2020.
Os fundos sociais são outra iniciativa relevante. Várias entidades certificadoras, como o Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora), trabalham com essa ferramenta, que funciona da seguinte forma: parte dos recursos de contratos firmados pelo instituto se transforma em subsídios para certificações de pequenos produtores.
CEGUEIRA DO ESTADO Um dos principais obstáculos da produção agropecuária sustentável é a omissão do Estado, assunto que veio à tona com o desmatamento de mais de 10 mil km2 registrado na Amazônia Legal entre 2018 e 2019. Segundo o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), 40% do desmatamento observado na região em 2018 ocorreu em terras públicas, ou seja, em reservas indígenas, em unidades de conservação e nas chamadas florestas públicas não destinadas (terras federais e estaduais).
A lacuna da presença do Estado é agravada pela falta de conexão entre as informações dos diversos órgãos que deveriam analisar e regulamentar as propriedades rurais, como Incra, Receita Federal, SFB, CAR e até mesmo os cartórios de registros de imóveis. “Os guardiões dos direitos de propriedade, que são os cartórios, em sua maioria, especialmente nas regiões mais pobres, até hoje guardam esses direitos em livros velhos e precários, que nem minha avó guardava as receitas [culinárias]”, diz Torsiano, consultor da FAO.
E não é só isso, há títulos antigos expedidos em terras federais na Amazônia nas décadas de 1960 e 1970 que não têm sequer uma planta, ou seja, não há informação sobre a sua localização. Isso resulta em outro problema. “Hoje, você tem mais 100 mil lotes georreferenciados [na região], prontos para titular. Mas o servidor federal, quando vê que naquela terra já foram dados títulos, recua com medo de processos administrativos por conta da possibilidade de sobreposição de títulos”, explica.
Tal fragilidade na administração de terras não é algo restrito ao Norte do Brasil. Os títulos precários são uma realidade do Oiapoque ao Chuí e há muitos “vazios”, terras públicas dos estados que não foram delimitadas. “São terras devolutas estaduais, em que os estados não operaram as devidas arrecadações, não trouxeram para o seu patrimônio”, diz o consultor. “Ali, certamente existem milhares de agricultores vivendo. Têm comunidades com todo o direito de serem regularizadas, sobrevivendo em condição vulnerável porque o Estado não conhece sequer a ocupação. Mas tem também grileiro se aproveitando da cegueira do Estado para se apropriar dessas terras e operar desmatamento e crime ambiental”, acrescenta.
Para Torsiano, a regularização fundiária é essencial para os produtores terem o seu direito protegido e acessar as políticas públicas e as linhas de financiamentos. Assim, é fundamental resolver com urgência a governança de terras. “Se é necessário regularizar é porque foi possível a ocupação irregular e isso acontece porque o Estado não tem controle sobre a ocupação que ocorre sobre suas terras e isso é reflexo da debilidade na governança”, diz.
Hoje as discussões sobre regularização fundiária no Brasil estão muito focadas no marco legal, data-limite da ocupação para que seja possível a titulação da terra. A lei em vigor estabelece o ano de 2008 como limite, mas o Projeto de Lei nº 510, de 2021, do senador Irajá Silvestre Filho (PSD/ TO) propõe que seja 2012. “Esta mudança do marco temporal só fragiliza, traz insegurança jurídica e sinaliza para os oportunistas que podem entrar que depois o governo dá um jeito de regularizar”, afirma Torsiano. Mas ele frisa que a questão da regularização fundiária não está circunscrita a esta discussão. “O marco legal foto: Divulgação 36 trata de terras públicas federais. Se formos para a Amazônia, a lei está tratando de 10% do território, que é uma área relevante em extensão. Mas o maior problema do Brasil são milhões de hectares de terras públicas e devolutas [não destinadas] que estão sob a responsabilidade dos estados, inclusive na Amazônia”, explica.
NOMENCLATURA Outro desafio da produção sustentável é a nomenclatura. “Muitos produtores não entendem o que é e têm a visão que sustentabilidade é possuir uma certificação socioambiental, com reconhecimento internacional, ou participar do programa de alguma empresa”, diz Oséias Mendes, coordenador de projetos do Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora), uma das organizações credenciadas para certificação de agricultura sustentável Rainforest Alliance no Brasil.
A falta de conhecimento é mais recorrente nos pequenos agricultores. “Os grandes procuram abrir novos canais de vendas e, na busca, recebem muita informação sobre sustentabilidade”, diz Mendes. Sem contar que eles costumam ter consultores e profissionais debruçados a entender certas temáticas.
Mas a história é diferente com os pequenos e médios produtores. É comum eles adotarem práticas sustentáveis sem saber que aquilo é uma técnica de agricultura regenerativa, que cuida do solo, da água, da biodiversidade. O Cerrado Mineiro é um bom exemplo. A região concentra mais de 50% das fazendas cafeeiras com certificação Rainforest no Brasil, mas nem sempre o agricultor tem a visão do todo. “Eles plantam capim braquiária entre as ruas do cafezal, porque traz matéria orgânica, cobre o solo e evita erosão, mas muitos não sabem dos outros benefícios”, diz Mendes, que acompanha projetos de cafeicultura na região.
Ele se refere a ganhos como atração de insetos, que são inimigos naturais de pragas do cafezal; maior aeração do solo pela raiz do capim, o que ajuda na infiltração da água; manutenção de uma temperatura amena no terreno; inibição de plantas daninhas, entre outros. Tal lacuna de conhecimento holístico poderia ser suprida por um órgão de assistência técnica e extensão rural. Mas as instituições voltadas a esta finalidade andam com poucos braços. Quem tem feito a “catequese” é o corpo técnico de cooperativas. Na cafeicultura do Cerrado Mineiro, Mendes ressalta que o principal gargalo para uma produção sustentável é o manejo hídrico. “A região é dependente de irrigação. Mas são raros os produtores rurais que têm um manejo apurado. A maioria [dos cafeicultores], enquanto tem água, está molhando”, diz.
A diminuição do recurso hídrico no contexto de mudanças climáticas é uma grande preocupação. Por isso, Mendes defende que as cooperativas deveriam contratar um técnico em irrigação. “Hoje, quando o produtor recebe informações de irrigação, elas vêm de empresas [do ramo] que prometem coisas mirabolantes. Eles ficam com medo”, explica. Com o intuito de ajudar nesse processo, o Imaflora fez um estudo pioneiro com 34 propriedades rurais (pequenas, médias e grandes) de cooperados da Cooperativa dos Cafeicultores do Cerrado Monte Carmelo (Monteccer) para mensurar o balanço das emissões de carbono da produção de café dessas fazendas. “Levantamos as práticas sustentáveis que mais contribuem para o sequestro de carbono. Agora a ideia é disseminá-las na região”, completa.
AS PEDRAS NO MEIO DO CAMINHO Mesmo para as fazendas que estão na vanguarda da sustentabilidade no Brasil, não é tarefa simples estar 100% dentro das regras. “Nunca está tudo certinho, sempre há situações em que você precisa correr atrás das adequações”, diz Dulce Ciochetta, dona da Fazenda Morena, propriedade de 6.900 hectares em Campo Novo dos Parecis (MT), voltada à produção de soja, milho, eucalipto e gado no sistema de integração lavoura-pecuáriafloresta (ILPF).
Romeu Ciochetta:
“Tudo isso é custo,
demanda tempo e dá
muito trabalho, mas
ser sustentável é sair
da zona de conforto
e saber que está
fazendo sua parte
pelo planeta”
Para a professora, que desde 2006 cuida da gestão do grupo Morena, os dois principaisempecilhos são as mudanças constantes nas leis, que exigem constantes adaptações, e a morosidade de órgãos públicos, que demoram para analisar um simples pedido de renovação da outorga para o uso da água. Mas Dulce não reclama.
“Sustentabilidade é uma prática, eu mudei minha mente, vou me adaptando, me organizando”, conta. A paranaense reconhece que tem uma situação privilegiada, com recursos e pessoas para implementar mudanças. “Quando o agricultor é pequeno não é simples, ele precisa do apoio de cooperativas, de entidades e grupos de trabalho para viabilizar”, diz.
Ela cita um fato corriqueiro na Fazenda Morena. Toda vez que é feita a troca do óleo lubrificante dos maquinários da propriedade, Dulce designa um motorista para recolher o material e levar de caminhão até a cidade mais próxima que tenha uma empresa para fazer a destinação correta do resíduo. O mesmo acontece com as seringas usadas para a vacinação do gado. “Coloco dentro de galões e levo para o escritório em Tangará [da Serra (MT)]. Uma pessoa pega e leva para Cuiabá, onde tem uma empresa que incinera”, diz. “Tudo isso é custo, demanda tempo e dá muito trabalho, mas ser sustentável é sair da zona de conforto e saber que está fazendo sua parte pelo planeta”, complementa.
Nem tudo são ônus, no entanto. Estar antenado com as práticas socioambientais e de governança tem um impacto no lado financeiro, a fazenda aprimora a gestão e consegue aumentar a produtividade e, consequentemente, a rentabilidade. “Eu tenho que ser sustentável, senão estou fora do processo. Para ter mais lucratividade, é uma obrigação fazer mais com menos, cuidar dos recursos naturais, do solo e da água”, diz Dulce.
A conectividade é outro catalisador de uma produção sustentável. “Estamos vivendo a agricultura 4.0, que é uma agricultura movida a dados, que ajudam na tomada de decisão”, diz a gestora. Hoje as máquinas vêm com tecnologias embarcadas, fazem aplicação de fertilizantes em taxa variável, têm recursos para diminuir o gasto de combustível e dessa forma emitir menos gases poluentes, mas sem internet não é possível usar tais ferramentas. Na Fazenda Morena, conectividade já foi um problema, hoje não é mais. “Colocamos fibra ótica”, diz Dulce.
A fazenda hoje coleciona certificações. Na soja, o grupo Morena tem os selos: RTRS (Round Table on Responsible Soy) e o 3S (Soluções para Suprimentos Sustentáveis) da Cargill, do programa de sustentabilidade da multinacional, que avalia requisitos como desmatamento zero, gerenciamento de gases do efeito estufa, boas práticas agrícolas e o bem-estar do trabalhador rural. “E estamos há três anos no processo para conseguir a certificação B-Corp, que
engloba as questões socioambientais, mas é voltada a oferecer melhores produtos para o mundo”, finaliza.
O pecuarista Alcindo Schinoca: “Meu lema hoje é: ‘Aqui se produz, aqui se preserva’”
PECUÁRIA: UM CAPÍTULO À PARTE Os desafios que já são grandes na agricultura ficam ainda maiores na pecuária. A grande dificuldade é rastrear o animal do nascimento ao abate, porque são poucos os pecuaristas que fazem o ciclo completo (cria, recria e engorda). A maioria atua em apenas uma ou duas das etapas da cadeia, o que dificulta o monitoramento de fornecedores indiretos, que – muitas vezes – são acusados de criar bezerros em áreas desmatadas ilegalmente.
O grupo Morena tem sentido na pele essa dificuldade. No processo para conseguir uma nova certificação, a B-Corp, Dulce Ciochetta foi indagada sobre a procedência dos bezerros que compra, já que a fazenda trabalha só com recria e engorda. Ela chegou à conclusão de que não conhece a fundo seus fornecedores. Sim, ela sabe quem são eles, mas não os pormenores da fazenda, se a propriedade tem práticas sustentáveis, se não desmata, se respeita as leis trabalhistas. “Isso nos fez iniciar um trabalho para conhecer o nosso fornecedor de gado”, explica Dulce.
No Brasil, há dois processos de rastreabilidade. No primeiro, o pecuarista adota o Serviço Brasileiro de Rastreabilidade da Cadeia de Bovinos e Bubalinos (Sisbov), que identifica com um brinco, uma espécie de documento de identidade com um número oficial, os animais logo após o desmame. A ferramenta permite acompanhar a vida da rês desde os 10 meses até o abate. Geralmente, este tipo de rastreabilidade é para animais que preenchem a Cota Hilton, para exportação de cortes bovinos de alta qualidade destinados à União Europeia.
Para quem não utiliza o Sisbov, a rastreabilidade é feita nos últimos 120 dias do animal, ou seja, a etapa final (engorda) do ciclo produtivo. “Pela legislação, toda indústria é obrigada a ter a rastreabilidade da última propriedade onde o animal foi hospedado e atender todos os protocolos sanitários vigentes”, diz Orlando Negrão, diretor de operações do Frigol, frigorífico brasileiro com foco em produtos de maior valor agregado.
De acordo com a assessoria de imprensa da Marfrig, uma das maiores empresas de carne bovina do mundo, “a empresa está ciente do desafio a ser enfrentado, que é obter informações dos fornecedores indiretos”. Nesse sentido, desde 2013 a empresa tem a Request for Information (RFI), uma ferramenta que solicita aos pecuaristas de quem a empresa compra o animal para o abate, as informações dos produtores e das fazendas das quais as reses foram adquiridas, caso a propriedade não seja de ciclo completo. A adesão é voluntária e tem por objetivo “promover a transparência e fortalecer ainda mais os dados sobre a origem dos animais fornecidos à empresa”
Hoje, o rebanho bovino nacional é de 220 milhões de cabeças. “Temos 13 milhões de bovinos rastreados, o que dá cerca de 6% da população bovina brasileira”, diz Nabih Amin El Aouar, presidente da Associação dos Criadores de Nelore (ACNB). “Destes 13 milhões de bovinos rastreados, abatemos anualmente entre 3,5 milhões e 3,7 milhões de cabeças, o que dá um pouco menos de 10% dos animais abatidos”, explica.
Mas a rastreabilidade é apenas um dos desafios da O pecuarista Alcindo Schinoca: “Meu lema hoje é: ‘Aqui se produz, aqui se preserva’” PLANT PROJECT Nº25 39 atividade. Considerada por muitos a vilã do agronegócio, a pecuária é um universo bastante heterogêneo. De acordo com o IBGE, a produtividade média do produtor brasileiro é de 4,26 arrobas por hectare/ano em propriedades que fazem o ciclo completo (cria, recria e engorda). No entanto, dados do Rally da Pecuária – expedição técnica privada organizada pelas consultorias Athenagro e Agroconsult, que avalia as condições da bovinocultura de corte no País – apontam uma produtividade média de 12,81 arrobas por hectare/ano no público visitado pelo rally. “A gente estima que 90% dos produtores do Brasil estejam operando com prejuízo, com um baixo nível de tecnologia. Mas os 10% que conseguem ter lucro representam a pecuária profissional e movimentam 75% das vendas de gado do País”, diz Maurício Palma Nogueira, coordenador do Rally da Pecuária.
Tal raio X evidencia o abismo de conhecimento. De um lado, produtores extremamente tecnificados, que cuidam das pastagens e investem em tecnologias para aumentar a produção por hectare. Do outro, pecuaristas que continuam presos ao passado, tocando a propriedade de forma rudimentar, como o avô tocava meio século atrás. Nesta parcela de pecuaristas precários, há muitos com problemas fundiários, sem o título da terra, o que os impede de usufruir das políticas públicas, ter acesso ao crédito e investir na melhoria da propriedade. Outro problema recorrente é a falta de afinidade dos filhos com a atividade exercida pelos pais. Muitos herdam a propriedade e não têm dinheiro nem conhecimento para investir e vão deixando as pastagens se degradar ou, na melhor hipótese, vendem ou arrendam para terceiros.
DESTAQUE POSITIVO A história é diferente para os pecuaristas de ponta, como Alcindo Jorge Schinoca, que tem 5,5 mil cabeças de gado em Jaciara (MT). O proprietário da fazenda Agropecuária Schinoca, hoje com 71 anos, vem acompanhando a evolução do agronegócio nacional. No passado, Schinoca não era um preservacionista. Chegou a desmatar muitas áreas e levar os resíduos paras os córregos d’água. Mas sua forma de pensar mudou por completo. “Meu lema hoje é: ‘Aqui se produz, aqui se preserva’”, diz.
Hoje, na Agropecuária Schinoca, as nascentes e córregos d’água são todos cercados e protegidos e ai daquele que ousar depredá-los. O recurso hídrico da maior mina é bombeado para um grande reservatório e abastece todas as famílias da fazenda e também os animais da propriedade, que trabalha com ciclo completo, mas em tempo curto. Em outras palavras, os machos são abatidos com cerca de 18 meses e as fêmeas, novilhas precoces, vão para o abate com 30 meses, depois de deixar um bezerro.
A fazenda trabalha com cruzamento das raças Nelore e Angus e tem 700 hectares dedicados à Integração LavouraPecuária-Floresta (ILPF). “Fazemos a RIP, Recria Intensiva a Pasto. Pegamos o bezerro que foi desmamado e levamos para a melhor pastagem e ainda damos uma ração especial para ele não perder peso”, explica o pecuarista. Depois da RIP, os animais vão para a Terminação Intensiva a Pasto (TIP) e lá ficam até chegarem a 450 quilos. “Eles só vão para o confinamento nos últimos 45 a 60 dias para ganhar uma cobertura de gordura”, explica Schinoca. O esmero com as pastagens e com os animais resulta numa produtividade muito acima da nacional. “Nossa média está em torno de 25 a 30 arrobas por hectare/ano”, diz.
Todo o rebanho da propriedade é rastreado pelo Sisbov, e a fazenda, além de vender para Marfrig e frigorífico Estrela, exporta para União Europeia e China. “A partir do ano que vem, vamos pleitear a Cota Hilton”, diz o proprietário da Agropecuária Schinoca, que está em fase final do processo para ter a fazenda certificada, com o apoio da Produzindo Certo. Quem vence os desafios da produção sustentável percebe que ela é o caminho para a preservação do ambiente, mas, sobretudo, do negócio para as próximas gerações.
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