Edição 23 - 17.01.21
Por Luiz Fernando Sá
A startup Gaivota é um caso quase que único no ecossistema de inovação para o agronegócio. Enquanto a maioria das jovens companhias tenta a todo custo se fazer notar, seus sócios trabalham de forma quase sigilosa em sistemas de digitalização de processos relacionados à agropecuária, como automação para fazendas de gado leiteiro. Já possui clientes, mas não se apresentou ao mercado, não tem sequer site ou informações em redes sociais. Recebeu aporte (valor não revelado) de investidores, que não se importam com a discrição e não têm pressa de colher resultados.
É o cenário dos sonhos de qualquer empreendedor. Ainda mais quando se sabe que por trás desse investimento está um dos sobrenomes mais ilustres do mercado financeiro no Brasil. “A nossa base da capital é bem paciente, sem pressão”, afirma à PLANT Antonio Moreira Salles, sócio da Mandi Ventures, o fundo que fez a aposta na quase desconhecida Gaivota. Pelo menos para os outros. O herdeiro da família fundadora do Unibanco e acionista do Itaú – seu pai é Pedro Moreira Salles, atual presidente do Conselho de Administração, e o avô foi Walther Moreira Salles, um dos mais respeitados banqueiros do País.
João Moreira Salles desbravando terras no Noroeste do Paraná: comércio e plantio de café deram origem à fortuna do clã
O jovem Moreira Salles segue, assim, uma versão agtech da saga da dinastia. A fortuna de seu bisavô, João Moreira Salles, o fundador do Unibanco, foi erguida a partir do café. Primeiro, no início do século 20, na compra e venda dos grãos no interior de São Paulo e Minas. Depois, ele passou a oferecer crédito aos cafeicultores, que o pagavam, em parte, com a produção. Depois, passou a comandar algumas das maiores operações de cafeicultura do mundo. Entre os anos 1950 e 1960, com os filhos já comandando os negócios financeiros do grupo, o patriarca dedicou-se à expansão dos cafezais por áreas de terra roxa no Noroeste do Paraná. Também foi sócio dos Rockefeller, mítico clã de banqueiros americanos, na exportação de café e em fazendas de pecuária na região do Pantanal. A Cambuhy, holding que administra os investimentos de Pedro Moreira Salles, tem esse nome em referência a uma grande fazenda da família na região de Matão (SP), uma das últimas remanescentes do império agrícola.
Formado em administração de empresas pelo Ibmec (RJ), Antonio começou a carreira trabalhando na City de Londres, no Santander e no Morgan Stanley. Em 2015, mudou-se para Stanford, no coração do Vale do Silício, na Califórnia (EUA). Foi lá, em 2015, que ele conheceu Julio Benetti, nascido em uma família de produtores rurais que planta, soja, trigo e linhaça e criam gado em Ijuí (RS). Benetti havia se formado em Engenharia Mecânica (na Unicamp) e também seguiu para a Califórnia.
Em Stanford, em meio à efervescência do surgimento das primeiras agtechs e foodtechs – naquela época começava a se falar na produção de alimentos com base em proteínas alternativas e nasciam empresas como a Impossible Foods e a Beyond Meat – se aproximaram e compartilharam visões sobre vários temas, inclusive uma inquietação com a falta de sincronia entre a produção de alimentos e a mudança de comportamento dos consumidores. Identificaram oportunidades com a chegada de uma nova geração mais crítica aos meios de produção tradicionais e preocupada com a gestão de outros elos da cadeia de valor da indústria alimentícia, como sustentabilidade e logística. “Havia, e ainda há, muitas oportunidades em vários pontos da cadeia”, afirma Benetti.
Terminado o curso, porém, cada um seguiu um rumo. Benetti foi atuar na área de tecnologia em uma startup. Começou como estagiário na Samsara, especializada no de desenvolvimento de produtos para IOT em indústrias, onde pode compreender toda a área de logística da cadeia de alimentos. Quando deixou a empresa, ela já valia mais de US$ 5 bilhões e contava com mais de 1,5 mil pessoas no time. Moreira Salles voltou a Londres e começou a investir em startups de biotecnologia, agtechs e foodtechs. Depois, passou uma temporada na China, trabalhando na General Atlantic, até retornar à Inglaterra em 2019, para onde Benetti havia sido transferido para montar a operação local da Samsara. No reencontro dos amigos, as ideias compartilhadas afloraram e se transformara em sociedade na Mandi Ventures.
“São duas perspectivas diferentes e juntamos as duas para fazer essa jornada”, diz Benetti. “Não somos experts no agronegócio, mas temos visões particulares e criamos um grupo de conselheiros que conhecem a fundo”. Também aqui, discrição, nada de nomes. O máximo que Salles abre é que são quatro e que suas idades variam entre 30 e 60 anos. Tem gente do setor de suco de laranja, tem um biólogo e tem até um especialista em produtos oriundo do Google. As conversas são frequentes, quase semanais, e as decisões são maturadas lentamente.
Levou quase um ano, por exemplo, para que o primeiro investimento fosse feito. Mais de 300 empresas passaram pelo escrutínio dos sócios e conselheiros. “A gente estuda a empresa e o mercado. Se não entende, não entra”, resume Salles. “Tomamos muito mais tempo para decidir que um fundo de VC (venture capital) tradicional”. O foco é em empresas com produtos que possam ser aplicados em escala global. Assim como a pouco conhecida Gaivota, eles fizeram aporte (valores mantidos em segredo) em uma startup que ocupa posição de destaque na prateleira das startups, a americana Farmers Business Network (FBN). Potencial unicórnio do setor, a empresa atua como um misto de rede de conexões entre produtores e marketplace, já atua em três países (Estados Unidos, Canadá e Austrália) e observa o mercado brasileiro há algum tempo. Na FBN, os produtores compartilham dados sobre as operações de suas propriedades, indicando aos demais o que deu certo e o que não deu em determinadas condições. A troca de informações tem potencial para se transformar em recomendações para uso de sementes e outros insumos, que podem ser adquiridos no próprio ambiente digital.
A seletividade demonstrada na escolha das investidas também se aplica também à entrada de recursos no fundo. “Buscamos levantar dinheiro com gente que conhece o setor e suas características”, resume Moreira Salles. “Acreditamos que, assim, podemos trazer muito valor para as startups. Mais do que cobrar resultados no curto prazo, imaginamos que, como investidores, podemos trabalhar para que elas prosperem”. Se possível, à moda mineira, sem pressa e em silêncio.
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