Edição 10 - 11.09.18
Por Ivana Ramacioti, de Salvador/Fotos de Tarciso Albuquerque
Quando se fala em lavouras tradicionais da faixa litorânea de alguns estados do Nordeste, a resposta é quase automática: o cinturão do milho em Sergipe, a cana-de-açúcar em Alagoas e a cultura de citros na Bahia. O que a história conta e o que vem à mente é a imagem do reinado dessas monoculturas que, durante séculos, construíram verdadeiros impérios, passados de geração em geração, desbravadores de uma região próspera desde os tempos do descobrimento do Brasil, quando Pero Vaz de Caminha descreveu suas primeiras impressões sobre a terra nova ao rei Dom Manuel I no ano de 1500.
O fato é que nem Caminha imaginava que o litoral nordestino fosse tão promissor. Hoje as monoculturas de milho, cana-de-açúcar e citros estão dando espaço a uma atividade bem diferente. O cultivo de grãos na faixa das terras de transição entre o Agreste e o Semiárido vem se mostrando uma alternativa viável e surpreendente para a superação dos grandes problemas enfrentados pelas monoculturas tradicionais. Para quem gosta de desafios e não tem medo de mudanças, a rotação de culturas dos grãos no Sealba – acrônimo dos estados de Sergipe, Alagoas e Bahia – tem despertado interesse de diversos produtores de todo o País.
Esse novo oásis do grão brasileiro, em verdade, foi iniciado em solo alagoano no ano de 2003, quando um pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa Soja) de Londrina fez experimentos no município de Arapiraca e Coruripe. Mas, com o pouco incentivo das iniciativas públicas e privadas, o projeto caiu no esquecimento apesar dos relatos de bons resultados.
Somente em 2013 a Embrapa retomou as pesquisas, estabeleceu políticas territoriais e promoveu uma rede de experimentos capaz de renovar o fôlego dos produtores. No ano seguinte a instituição consolidou o conceito regional do Sealba, mapeando 171 municípios nos três estados. “Nós percebemos que na faixa litorânea, abrangendo regiões próximas à Caatinga, que chamamos de Agreste, existiam diversas cidades com características interessantes para a produção de grãos, com capacidade de, pelo menos, uma safra por ano”, explica Sérgio Procópio, pesquisador da Embrapa.
Ao observar aspectos como topografia, solo e levantamento histórico de chuvas dos últimos 30 anos, os pesquisadores da Embrapa chegaram à conclusão de que, no Sealba, o plantio de grãos seguiria uma lógica diferente do que acontece em outras do País. A principal característica é que, ali, eles seriam uma cultura de outono/inverno, enquanto na maior parte do Brasil ocorre na primavera/verão. “O período tipicamente chuvoso do Sealba se inicia na segunda quinzena de abril e termina na primeira quinzena de setembro”, explica Procópio. “Os produtores plantam, normalmente, em maio. A soja se desenvolve no começo do outono, se estende pelo inverno e é colhida no finalzinho dessa estação.” Além disso, diz, as pesquisas apontaram que havia uma gama de municípios do Sealba com histórico de precipitação pluviométrica, solos férteis e topografia favorável.
A partir desses dados, a Embrapa fez o zoneamento das áreas, comunicou aos governos estaduais sobre a intenção da promoção de políticas territoriais de fortalecimento e atração de investimentos para o negócio, além de políticas públicas de desenvolvimento da cultura de grãos. “Assim, entre 2014 e 2015, nasceu o conceito regional do Sealba, com uma rede de experimentos de soja inicialmente voltada para cultivares, estabelecendo alguns polos na Bahia, Sergipe e Alagoas”, conta o pesquisador. A proposta do Sealba foi apresentada aos governos e os primeiros municípios a aceitar o novo desafio foram Paripiranga (BA), Rio Real (BA), Umbaúba (SE), Nossa Senhora das Dores (SE), Frei Paulo (SE), São Miguel dos Campos (AL), Campo Alegre (AL), Porto Calvo (AL), Jundiá (AL) e Anadia (AL).
Último estado a aderir à proposta, o governo de Alagoas decidiu formar uma Comissão Estadual de Grãos, trazendo uma rede de pesquisa com unidades demonstrativas sediadas em solo alagoano. “Esse apoio foi fundamental para dar continuidade aos trabalhos e, a partir daí, pudemos procurar respostas mais específicas para o bom desenvolvimento da atividade como cultivares mais adaptadas, aspectos relacionados à adubação, controle de pragas e doenças, até criar um sistema de produção eficiente.” Procópio não esconde a satisfação de poder constatar que uma região, antes considerada não apta para a soja, esteja respondendo tão positivamente.
Após o intenso trabalho de zoneamento de risco climático, o fornecimento de documentação para a Embrapa e para o Ministério da Agricultura (Mapa), os 171 municípios mapeados passaram a ter direito a seguro agrícola, financiamento, além de outras ferramentas de incentivo para dar segurança e condições de desenvolvimento às lavouras. “Nas últimas cinco safras, tivemos três muito boas e duas ruins, com problemas de déficit hídrico. Então, calculamos a média da produtividade desses anos e comparamos com a média dos estados do Nordeste, sul do Maranhão, sul do Piauí e oeste da Bahia. E chegamos à conclusão de que a média de produtividade do Sealba não está distante da média registrada no Matopiba, mesmo com as oscilações climáticas registradas nos últimos tempos”, ressalta Procópio.
VANTAGENS COMPETITIVAS
Na avaliação da Embrapa Tabuleiros Costeiros, além dos solos férteis, topografia e histórico de chuvas favoráveis, quem produz no Sealba tem outras vantagens competitivas, como amplitude térmica. Durante o dia as temperaturas alcançam entre 28 °C e 29 °C, e no período da noite, chegam a 19 °C ou 20 °C. “Considerando a parte fisiológica da soja, essa amplitude térmica é perfeita para a cultura porque as noites não são quentes. Já na região do Matopiba, as temperaturas de cultivo são muito altas, tornando a necessidade hídrica muito maior”, salienta.
O Sealba é dividido em duas grandes regiões: os Tabuleiros Costeiros, mais próximos do litoral, e o Agreste. Boa parte da região Agreste do Sealba possui solo ácrico, um dos mais férteis do Brasil, com altos teores naturais de potássio, magnésio e cálcio. Falta apenas um pouco mais de chuva. “Nesse caso, quando os índices pluviométricos são considerados normais, a consequência da união desses fatores é uma alta produtividade no Agreste”, frisa Procópio. Por outro lado, nos municípios dos Tabuleiros Costeiros há uma incidência maior de chuva. O solo, porém, é menos fértil. “Nessa região, temos argissolos, onde a camada superficial é mais arenosa e ocorre o adensamento de argila em subsuperfície. Então, são solos que exigem investimento maior em adubação e inserção de braquiárias para produzir raízes que melhorem a infiltração de água no solo”, pondera o pesquisador.
Em função desses fatores e diferenças regionais, os números de produção ainda são muito variáveis. Segundo Procópio, em condições ideais, alguns produtores já alcançaram 75 sacas/ha em áreas comerciais e em anos ruins conseguiram apenas 30 sacas/ha. “Trata-se de uma cultura nova. O produtor do Sealba, em sua maioria, não tem tradição nesse agronegócio e vem de um histórico familiar de cultivo bastante diferente. O desafio deles é ainda maior se considerarmos a quebra do paradigma da monocultura tradicional”, avalia.
Ainda assim, Procópio acredita que o cultivo de grãos é promissor porque há uma grande demanda por farelo de soja, componente importante para a alimentação animal, tanto na bovinocultura quanto na avicultura da região. “Outra vantagem do Sealba é o período de colheita das sementes. Enquanto o Matopiba e outras regiões estão plantando em novembro ou final de outubro, o Sealba colhe entre setembro e começo de outubro”. Com isso, o Sealba produz semente de alta qualidade para ser comercializada logo em seguida, sem necessidade de armazenamento ou irrigação. “O produtor faz sua colheita, leva as sementes para uma unidade de beneficiamento para ensacar e distribuir. Algumas grandes empresas já perceberam essa característica da região, o que torna o cultivo de grãos bastante competitivo.”
Tudo isso sem falar das vantagens logísticas. A localização do Sealba é estratégica pela proximidade com terminais portuários dos três estados, o que garante uma redução significativa nos custos com frete para entrega e exportação da produção.
O pesquisador lembra, entretanto, que o cultivo da soja não deve ser encarado como monocultura. “Esse tipo de lavoura cresce dentro de um sistema de produção, utilizando plantas com finalidade de melhoria de solo como milho, sorgo, braquiárias, numa perspectiva de rotação e de consórcio. Assim o produtor do Sealba terá sustentabilidade sob o ponto de vista da fitossanidade e da qualidade de solo”, finaliza.
DESAFIOS
Mesmo com tantas vantagens, a nova cultura também tem seus desafios no Sealba. Ainda são escassas as unidades de armazenamento e secagem de grãos, poucas cooperativas de produtores rurais e a limitação de políticas agrícolas precisam ser melhoradas. Como a monocultura tradicional ainda prevalece, o preparo convencional do solo é predominante nas áreas de produção de grãos. Assim, a conservação de água em função da camada adensada nos argissolos põe em risco o desenvolvimento das lavouras com os encharcamentos. Outro ponto de vulnerabilidade é o residual de herbicidas nas antigas regiões de cana-de-açúcar, que traz prejuízos para os grãos cultivados em sucessão.
As revendas agropecuárias regionais, também acostumadas com as monoculturas, ainda não possuem estoque de insumos direcionados aos grãos e a assistência técnica deverá ser ampliada. “O que temos visto são produtores de outros estados interessados em fazer a segunda safra no Sealba e, se essa movimentação continuar aumentando, a região precisará de infraestrutura para atender às necessidades”, analisa o pesquisador.
DESBRAVADORES
Assim como Pero Vaz de Caminha e Pedro Álvares Cabral adentraram no litoral brasileiro para descobrir e relatar as riquezas do País, o Sealba precisou de desbravadores para mostrar que um novo oásis dos grãos poderia surgir na faixa litorânea dos estados de Sergipe, Alagoas e Bahia.
Entre eles, Sérgio Papini de Mendonça Uchôa, engenheiro e economista, 57 anos, junto com seu cunhado Alexandre Gondim da Rosa Oiticica, produtores de Porto Calvo (AL). O cultivo de cana-de-açúcar e pimenta-do-reino na Fazenda Surubana, há quatro anos, deu lugar aos grãos, totalizando 210 hectares plantados de uma área inicial de 55 hectares. “Já tínhamos vontade de testar o plantio de soja, mas os sojicultores que eu conhecia de outras regiões sempre falavam que ela não se adaptaria às características de solo e clima da nossa região”, diz. Decidido a tirar essa dúvida, em 2014, Papini foi conhecer a plantação de soja de um amigo em Goiás e se surpreendeu ao saber que já estavam plantando soja até no Maranhão, local cujo regime pluviométrico e altitude eram muito próximos aos de Alagoas, e que tinha tudo para dar certo.
O maior desafio foi calibrar as variedades que mais se adaptassem à região e definir a melhor janela de plantio. “Mas, hoje, participamos ativamente da Comissão Estadual de Grãos e dispomos de um campo experimental da Embrapa em nossa fazenda, o que muito nos ajuda na escolha das variedades mais adequadas à nossa região”, garante o produtor. Nos últimos dois anos a produtividade alcançou 60 sacas/ha. Outra dificuldade apontada pelo produtor é a falta de estrutura para secagem e armazenamento dos grãos. Mas, ainda assim, Papini pensa em ampliar a produção.
Na Bahia, a aposta de Hildebrando Ferreira Neto, 53, administrador de empresas, foi o milho. Há quatro anos ele cultiva 500 hectares do grão e já está na terceira safra, com uma produtividade de 130 sacos/ha na Fazenda Catu Grande, município de Itapicuru. “Apesar de todas as dificuldades relacionadas à infraestrutura e da pouca assistência técnica, a cultura de grãos na região dos Tabuleiros Costeiros tem tudo para prosperar”, avalia o produtor.
Segundo ele, a alternância de culturas é importante não apenas para o aspecto econômico, mas também para a qualidade do solo. Pensando nisso, na última safra, ele resolveu plantar 20 hectares de soja a título de experimento para consumo interno. “Estamos numa curva de aprendizado e as vantagens competitivas da nossa região não deixam dúvidas de que o cultivo de grãos vai ocupar um espaço cada vez maior, até se tornar mais uma opção de agronegócio para o produtor”, destaca Ferreira, ressaltando que o zoneamento agrícola coordenado pela Embrapa em 2016 e publicado pelo Ministério da Agricultura abriu o caminho para a criação do seguro agrícola e de linhas de financiamento junto aos bancos, dando mais solidez para a cultura dos grãos.
“Nossas grandes barreiras, no entanto, não são as questões econômicas ou estruturais. Acredito que o maior desafio é cultural. Por isso, entendo que vai sair na frente quem apostar no novo e for mais ousado”, diz Ferreira. Diante desse cenário tão promissor, a Carta de Pero Vaz ainda é um documento bem atual já que “nesta terra, em se plantando, tudo dá” mesmo.
TAGS: Alagoas, Bahia, Milho, Sealba, Sergipe, Soja