O arsenal de guerra do general do agronegócio

Por Luiz Fernando Sá Por fora, o ambiente é bélico. Uma zona militar de Campinas, no interior de


Edição 8 - 26.04.18

Por Luiz Fernando Sá

Por fora, o ambiente é bélico. Uma zona militar de Campinas, no interior de São Paulo. Cruza-se com soldados fazendo exercícios, veículos do Exército, alguns antigos blindados dispostos ao longo da estrada. No alto da colina, um prédio envidraçado. Ali está o quartel-general. O comandante é um homem falante, entusiasmado com as armas de que dispõe: “Numbers, maps and facts”, diz em inglês. Não por arrogância, mas por precisão – afinal, não raramente o inimigo é estrangeiro. Evaristo de Miranda gosta das batalhas. À frente do batalhão de pesquisadores e técnicos da Embrapa Territorial, tem sido um dos principais estrategistas dos embates que o agronegócio brasileiro enfrenta em diversos fronts.

Com números, mapas e fatos, o exército de Miranda fornece munição para as autoridades nacionais defenderem, interna e externamente, posições importantes relacionadas à produção agropecuária. O mais recorrente combate acontece no terreno ambiental. O Brasil é frequentemente acusado de negligenciar a preservação de nossas reservas de vegetação nativa e fechar os olhos para o desmatamento da Amazônia. Não raramente o agronegócio – assim, de forma genérica – é apontado como vilão. Com números, mapas e fatos, Miranda contra-ataca. Abre, na tela da TV de sua ampla sala no QG do agro encravado a poucos quilômetros da Escola Preparatória de Cadetes do Exército, uma apresentação em PowerPoint de onde saltam imagens e dados garimpados por sua equipe nas mais diversas fontes, dos registros do Cadastro Ambiental Rural aos computadores da Nasa. “O que está sendo produzido aqui está mudando a narrativa do agronegócio brasileiro”, afirma.

“O objeto da Embrapa Territorial é o território da agricultura. Nosso objetivo é conhecer a dinâmica do uso e ocupação das terras no Brasil. Como elas estão sendo usadas e ocupadas, especialmente pela agropecuária. Fazemos isso para orientar o Estado brasileiro nas políticas públicas e para orientar o agronegócio. Temos a pretensão de ser quem mais entende de agricultura no Brasil, os que mais estão a par de tudo.”

Na mesma manhã em que Miranda recebia a PLANT, o ministro da Agricultura, Blairo Maggi, duelava com grupos ambientalistas no Fórum Econômico Mundial, em Davos. O general do agro falava com satisfação de quem venceu uma batalha.

“O ministro falou em Davos com dados que saem daqui. A imagem de que a agricultura do Brasil desmata, destrói, é tudo territorial. O questionamento que sofremos lá fora é territorial. Não adianta falar que determinada soja é orgânica, sustentável. Logo vão nos perguntar: ‘Ah, é na Amazônia? Então não quero’.

A narrativa de que nossa agricultura desmata, não é sustentável, está caindo por terra com os números, quando mostramos, no uso, que as culturas agrícolas ocupam 7,8% do território do Brasil. Quase 9 milhões de hectares de cana, 7,8 milhões de hectares de eucalipto, toda a área de fruticultura, 240 milhões de toneladas de grãos. Tudo isso em 7,8%. Se o sujeito falar que isso aí está destruindo o planeta, realmente é uma falácia.”

A sensação de vitória, pelo menos parcial, provém do fato de que muitas vezes as autoridades brasileiras deixaram de usar a munição preparada na Embrapa Territorial e se calaram diante de críticas nem sempre justas. A mais notória delas aconteceu no ano passado na Noruega. Em uma visita ao país, o presidente Michel Temer foi alvo de protestos e recebeu críticas até da primeira-ministra norueguesa, Erna Solberg. Ela se disse preocupada com os movimentos no Brasil para “reduzir a força favorável ao meio ambiente” e anunciou a redução da contribuição da Noruega ao Fundo da Amazônia. O presidente não respondeu.

“Há cerca de dois ou três anos, temos levado esses dados em encontros internacionais. Ninguém contesta, porque é Embrapa. Numbers, maps and facts. A Embrapa é números, mapas e fatos. Se for contestar, mostre onde está errado.

Outro dia apresentamos os dados do Mato Grosso, em Cuiabá, para 80 formadores de opinião. Gente importante, de mídia, ongs, com várias perspectivas. Aí alguém levantou e falou que não era bem assim, que os números eram maiores. Repliquei: agricultura no Mato Grosso é 10% do territóriodo estado. Tem mais de 60% do território protegido. Os produtores preservam 38% do estado. É o estudo mais completo já feito. E disse: se o meu dado está errado, me diga onde eu errei. Então me diga onde o dado está errado. Se alguém me apresentar um dado melhor, eu dou graças a Deus e bato palma. Já teve um estagiário que me corrigiu há alguns anos e até hoje eu agradeço, porque ele viu um erro que nós pesquisadores não tínhamos visto.

Encerrei com uma frase do finado senador americano Patrick Moynihan, ex-embaixador dos Estados Unidos na ONU: ‘Nas democracias, todos têm direito a ter sua opinião pessoal. Mas ninguém tem direito a ter fatos pessoais’. Fato é fato.”

Miranda é uma metralhadora de dados e frases contundentes. Ele volta ao PPT e a narrativa avança com o apoio da sobreposição de mapas. O tema é a atribuição de terras pelo Governo brasileiro, a imensidão destinada, por lei, a parques federais, estaduais e municipais, reservas indígenas e muito mais. Não se posiciona contra o fato, mas combate quem ignora a amplitude do que é preservado, oficialmente ou pela iniciativa privada.

“O Brasil acabou. Não tem terra para mais nada. A terra está caríssima. O pessoal está indo para o Paraguai, para a Austrália, até para a África. E por que aqui acabou? Primeiro porque atribuímos terras para as unidades de conservação. Hoje o Brasil tem 1.871 unidades de conservação, que são 18% do País. São áreas que, na maioria dos casos, você não consegue nem entrar. Outras, como as Apas, têm um plano diretor que regulamenta. Critério da ONU. Tenho banco de dados de cada uma delas.

Também atribuímos terras aos índios. Hoje temos 600 terras indígenas. Mantemos arquivos completos de cada uma. São 14% do Brasil. Seguimos o critério da ONU para terras protegidas. Os dados estão todos lá, do mundo todo. Na Rússia, todos os parques mais as terras dos índios deles. No Canadá, parques mais as etnias tradicionais. Descontamos as sobreposições.”

Ele clica e os mapas se sucedem, como numa animação. E ressalta como eles se encaixam.

“Tudo coincide, parece planejado para fechar, como por obra do Espírito Santo. É um planejamento incrível. Uma muralha verde para impedir o avanço da agricultura. Quando você cria unidades como muralha verde, elas não têm sustentação.”

Então pipoca na tela um gráfico com barras. E a artilharia avança.

“Baixamos os dados de todos os países com mais de 2 milhões de quilômetros quadrados. E fui ver quanto eles protegem e quanto a gente protege. Os outros (China, Índia, Austrália, EUA, Canadá, Rússia), em média, 10% do território. O Brasil, 30%. Três vezes mais. Grande parte, no caso deles, é área sem potencial, desertos.

Não sei se 30% é muito ou pouco, mas apanhar dizendo que a gente não protege, como é a narrativa que está lá fora, não dá. Estamos indo para cima disso porque não corresponde à verdade. A Austrália pode falar alguma coisa? OS EUA podem abrir a boca? O Brasil já fez a escolha, disse que 30% não vai usar. Se tratar o Mato Grosso como um país, só perde para o Brasil, ganha de qualquer outro país. E o Brasil só perde para os estados da Amazônia. Nossas áreas são efetivamente protegidas. Juntas, equivalem a 15 países da Europa.”

Diante da grande mancha verde de áreas preservadas no mapa brasileiro, o comandante Miranda recalibra a mira. Não é um gesto belicoso, mas de civil indignado. Interrompido por uma pergunta sobre frequentes invasões da área manchada, sobre a fragilidade da fiscalização no que a lei manda manter intocado, não se esquiva e procura a resposta no seu território: números, mapas e fatos.

“Há uma questão de gestão dessas áreas. Tem dinheiro destinado a isso, muito dinheiro para cuidar dessas áreas. Nossos parques não são desertos, não é Sibéria, não são o Alaska. Têm madeira, têm minério, têm um monte de coisa. Quando você toma a decisão de, mesmo assim, abrir mão dessa riqueza, é como pegar uma praça, encher de dinheiro e dizer: ‘A partir de agora é proibido entrar nessa praça’. Então, ou coloca uma guarda pretoriana em torno ou vai ser muito difícil evitar que entrem. Temos que ter ciência disso. Ao criar unidades que têm potencial econômico enorme, vai ser difícil mantê-las intactas. Isso tem de ser cobrado, porque o dinheiro que é gasto com isso todo ano é grande. Tem dinheiro da Noruega, do mundo todo para isso. Se pegar o ICMBio, a Polícia Florestal, o gasto por hectare é de 5 a 10 reais por ano. Precisa mais dinheiro (para a fiscalização)? Não, o dinheiro foi gasto em viagem, reunião, ong, seminário. Tem que discutir o recurso.

A maioria dos parques está bem cuidada, porque é o fim do mundo. O parque do Jaú, que é o maior do Brasil, só tem três bocas de rio para entrar nele. Tem três flutuantes do Ibama lá. Ninguém entra no Jaú.

Os agricultores preservam 177 milhões de hectares por ano, de graça. Se dessem esse dinheirinho aos agricultores todo ano… Estamos fazendo essa conta, só para dizer que o agricultor precisa receber alguma coisa para manter esse negócio. Os agricultores reservam 21% do Brasil para manter a vegetação nativa. Quanto eles recebem?”

Engenheiro agrônomo com mestrado,e doutorado em Ecologia pela Universidade de Montpellier, na França, Miranda estuda há quase 40 anos as relações entre ambiente e atividade econômica, sobretudo a agricultura. Tem 45 livros publicados, nos quais trafega pela antropologia,pela religiosidade e, é claro, pelo universo rural. Como cientista, seu olhar é sempre crítico.

“Criam parque em cima de gente. O parque invade o agricultor. Ele já estava lá. Tem uma teoria no meio ambiente que é da desantropização. Ele diz que tem de desantropizar, tirar as pessoas de lá. Já fiz cálculos mostrando o impacto disso em algumas áreas em que haviam milhares de pequenos agricultores. Faz o quê? Eles vão morrer. Já o burocrata, esse não precisa desantropizar. Tem salário do Governo, salário que vem de fora.

Sócrates, Platão, Heidegger, Hegel. Na história da filosofia, sempre se vê duas linhas, os realistas e os idealistas. Os idealistas são daquela linha que diz: ‘Tenho uma ideia, que é muito bacana, e a realidade
tem de se adaptar a ela. Essa minha ideia tem de mudar a realidade’. É o que a gente vive nessa área. Os realistas, como o nome diz, partem da realidade para ver como melhorar, para onde a gente vai.

Nos Estados Unidos há movimentos que dizem que se você quer defender a agricultura local tem de ter florestas no Brasil. Mais do que dar dinheiro para subsídios, tem de dar dinheiro para ongs impedirem o avanço da agricultura no Brasil. Não é teoria da conspiração. As grandes federações de produtores americanos têm documentos sobre isso. Existe um mercado de US$ 70 bilhões a mais em produção de alimentos nos próximos 30 anos e quem tem de ficar com esse dinheiro são os Estados Unidos. Só tem dois países que podem ficar com isso aí. E a pergunta que fica é: É só a proteção da natureza ou tem coisa a mais?”

A reflexão é rápida e mais dados o esperam. E mapas. Ele está diante de novos fatores: a reforma agrária e a questão quilombola.

“O Estado atribui terra também para a reforma agrária. Para o meio ambiente, foi Fernando Henrique. Mas no governo Lula foi muita coisa para a reforma agrária. Temos hoje 9.349 assentamentos. Somam 88,5 milhões de hectares. Toda área de plantio no Brasil é de 60 milhões de hectares. Já demos para a reforma agrária mais terra que temos cultivada no País. Já demos 10% do Brasil, ou 20% do Brasil que dá para usar.

O Incra e os institutos de terra dos estados têm o maior latifúndio do Brasil. Terrabras, como alguns falam. Não dão título para ninguém. São quase 1 milhão de famílias. Muitos assentamentos são verdadeiras favelas rurais. Temos uma situação de gestão territorial enorme.

Na Constituinte de 1988, havia de 8 a 12 quilombos. Hoje isso é autodeclarado. São 296 e ocupam 3 milhões de hectares e reivindicam uma área que dá o estado de São Paulo.”

O PPT avança até o slide crucial. A soma de todas as terras que, pelas leis criadas pelos brasileiros, foram atribuídas à conservação ou a grupos que não têm como utilizá-las economicamente. Miranda não baixa as armas. Aponta para um espaço ainda disponível, cercado de reservas por todos os lados, em Rondônia. Volta à muralha verde que divide o Brasil.

“Ninguém gosta de ver esse mapa. Fizemos isso com o Brasil. Alguém está olhando tudo isso? Tenta passar uma estrada por aqui… O País está fragmentado, cada um na sua lógica. Isso também está no território e acaba impedindo os projetos de planejamento de logística de produção agropecuária. Os leitores da sua revista não podem ignorar a atribuição de terras no Brasil. Quem ignorar vai acabar batendo de frente no dia seguinte.

Onde tem terra barata para comprar aqui? Tem bastante, só que você não entra nem sai. Você chega e se depara com acampamentos do MST, invasões em volta, tudo conflagrado.

Essas são as terras baratas e problemáticas do nosso País. Hoje, quando tratamos da questão de distribuição de terra, é incontornável o tema da atribuição de terras no Brasil e é um esforço nosso de tentar aqui colocar esses dados disponíveis.Quando você vai fazer algum negócio, uma ferrovia, porto, algo ligado ao agro, não é possível, pois cada discussão sobre um investimento assim acaba virando quase um debate para o Congresso Nacional de tantas dificuldades burocráticas no Brasil.

Esse planejamento é muito sério. Os investidores acabam se desanimando por causa das atribuições. Hoje, 30% da área do Brasil é protegida e a demanda só aumenta. Hoje tudo acaba caindo sobre a agricultura.”

O arsenal de Miranda é inesgotável, diferentemente das páginas da revista. Há mais números, mapas e fatos a serem contados. Naquela mesma manhã, ele e sua equipe faziam revisões em um enorme estudo que daria origem ao Sistema de Macrologística Agropecuária Brasileira, lançado oficialmente no dia 6 de março, com o objetivo de oferecer ferramentas para o planejamento eficiente do escoamento da produção. Do alto da colina, na sede da Embrapa Territorial, pode-se ter visões de futuro. O comandante, combatente, oferece caminhos para se chegar a ele.

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