Edição 7 - 06.02.18
Por Daniela Fernandes, do Vale do Loire (França)
A ilustre família “de Broglie” – nobres de origem italiana instalados na França desde o século 17 – já teve marechais, ministros, inúmeros deputados, cientistas, escritores e até um prêmio Nobel de Física. Atualmente, a tradição é perpetuada por um “príncipe jardineiro”, Louis Albert de Broglie. O apelido, dado por amigos, está longe de se referir a um simples hobby: o príncipe, de verdade, criou em seu castelo, no Vale do Loire, um Conservatório Nacional do Tomate, que reúne 700 variedades do fruto. É uma coleção considerada única no mundo, realizada com o objetivo de promover a diversidade vegetal.
Perestroika, abacaxi negro, mamilo de Vênus, green zebra, black cherry, portuguesa, mel do México ou ainda Miss Kennedy são alguns dos nomes insólitos de tomates antigos e raros que podem ser vistos na perfumada horta do castelo renascentista de La Bourdaisière, em Montlouis-sur-Loire. Construído em 1520, ele fica perto de Tours, a cerca de 230 quilômetros de Paris. Cores, formas e tamanhos inusitados ilustram a riqueza esquecida – ou desconhecida – de variedades e sabores desse fruto.
“É preciso preservar a biodiversidade para compreendê-la e, sobretudo, poder transmitir esse patrimônio”, diz Broglie, aristocrata ecológico que trocou o mundo das finanças pelo da terra. Após quase uma década no banco francês BNP Paribas, lidando com investimentos, fusões e aquisições – que o levaram a morar dois anos na Índia e a realizar inúmeras viagens na América Latina –, o príncipe comprou, em 1991, o castelo de La Bourdaisière. Desde então, vem plantando ideias e multiplicando iniciativas em defesa de pequenos produtores, da agricultura local e sustentável e de uma alimentação de qualidade.
Parisiense, o príncipe costumava, na infância, passar seus finais de semana no imponente castelo da família na cidade que leva o seu nome, Broglie, na Normandia, com apenas mil habitantes. Ali, participava das atividades na horta da propriedade, onde também havia animais e produção de cidra. “Sempre estive em contato com o maravilhoso mundo agrícola.” Foi com a ideia inicial de resgatar as sensações da época em que era criança, as lembranças de tomates saborosos – degustados apenas com uma pitada de flor de sal e um fio de azeite de Baux-de-Provence – que Broglie criou a horta no castelo da La Bourdaisière.
Quando começou, em 1992, havia “apenas” 50 variedades do fruto. As sementes foram encontradas em viagens mundo afora e junto a associações francesas especializadas, como a Kokopelli, que reúne pequenos produtores e fornece sementes, livres de direitos, de mais de 2 mil variedades ou espécies de plantas, algumas bem raras. “Os tomates têm algo espetacular”, diz ele, enquanto caminha pela horta colhendo os frutos nos pés para comê-los, com um método bem particular: antes, esfrega nas mãos alguma das 21 variedades de manjericão também cultivadas ali. O descontraído príncipe, vestido com calça vermelha, camisa rosa e colete lilás, não hesita em andar descalço pela terra.
Ao se lançar no plantio, há 25 anos, Broglie descobriu a imensa quantidade de tipos de tomates. “Laranja, amarelos, verdes ou pretos, isso pode parecer algo mais banal hoje, mas era incomum na época”, diz ele, que viu em um catálogo científico que existem 10 mil variedades. Ao mesmo tempo, também constatou que nem mesmo produtores que atuam no ramo há várias gerações estavam a par das variedades antigas, caídas no esquecimento. “As pessoas conhecem um fruto vermelho, redondo, com cada vez menos qualidades gustativas devido aos métodos industriais de cultivo”, ressalta, acrescentando que nos supermercados não há mais do que meia dúzia de opções para o consumidor. Isso porque outros fatores, como o visual, tamanhos e tempo de conservação (que leva a colheita a ser feita mais cedo), passaram a ser privilegiados por razões comerciais, uniformizando os produtos.
“A diversidade de tomates dava sinais de esgotamento. Era preciso reagir”, diz o príncipe. Daí a ideia, para reconquistar o campo perdido, de um conservatório nacional do fruto, aberto ao público. Criado em 1996, ele tem certificação do Conservatório de Coleções Vegetais Especializadas da França. Naquela época, a horta do castelo tinha 300 variedades. Hoje já são 700, graças também à contribuição de jardins botânicos de vários países. Toda a produção é orgânica. Foi também em 1996 que estourou a crise da vaca louca na Europa, provocando forte abalo na confiança dos consumidores em relação à qualidade dos alimentos. Segundo Broglie, isso despertou maior interesse por iniciativas voltadas à preservação da biodiversidade. O local passou a atrair mais visitantes. “As pessoas me perguntavam se era OGM (organismo geneticamente modificado). Eu dizia não, é a riqueza da natureza.”
O objetivo do conservatório, diz Broglie, é duplo: científico, para identificar e reconstituir as variedades de tomates, e, ao mesmo tempo, educativo, com a transmissão dos conhecimentos semeados ali. A horta, com estilo de jardim à francesa, possui ainda uma coleção com centenas de plantas aromáticas, entre elas 30 variedades de hortelã, além de flores e alguns legumes antigos, cujo plantio é necessário para fazer rotações entre as parcelas e regenerar o solo, evitando doenças que afetam o tomate.
Os produtos da horta são servidos no “bar de tomates” do local, que funciona durante o verão, de julho a setembro. Os frutos, plantados em meados de maio, são, claro, a estrela do cardápio. Para quem está acostumado a comer tomates produzidos em grandes escalas, a descoberta de sabores é garantida. O restaurante é uma simples tenda com vista para um colorido campo de dálias, com mais de 200 variedades dessa flor. Em setembro, o castelo organiza o “festival do tomate”. Ele reúne produtores franceses que respeitam uma carta de qualidade. O próximo passo, conta o príncipe, será criar no castelo uma incubadora que fará pesquisas voltadas para a utilização do tomate em produtos cosméticos e medicinais. “A abordagem científica terá como foco as diferentes variedades do fruto, que são nossa especialidade”, afirma.
O Conservatório Nacional do Tomate tornou o castelo de La Bourdaisière conhecido na França, mas não é a única atração do local, que é também um hotel com 30 quartos. Ele fica a apenas uma hora de trem-bala (o TGV) de Paris. Há um parque de 550 mil metros quadrados com majestosas árvores centenárias, como sequoias gigantes e ciprestes da Califórnia. Em um caminho arborizado, há um arco atribuído a Leonardo da Vinci, que teria sido realizado pelo mestre italiano durante sua estada em Amboise, nos arredores. Outros castelos famosos do Vale do Loire, como Chenonceau, ficam nas proximidades.
O príncipe engajado criou ainda em La Bourdaisière uma microfazenda de frutas e legumes em sistema de permacultura. O projeto é cofinanciado pela União Europeia e acompanhado por um comitê científico. Na prática, é um sistema que não usa insumos químicos nem máquinas e visa criar um sistema de produção sustentável, viável em termos econômicos e socialmente justo. Ao mesmo tempo, amplia a oferta de produtos locais. “É importante saber como se alimentar e se reconectar à natureza”, ressalta Broglie. A produção da “Fazenda do Futuro”, como é chamado o projeto, é vendida no castelo e também a restaurantes, cantinas, supermercados de orgânicos e outras lojas nos arredores. “O objetivo é inspirar a criação de outras microfazendas desse tipo na França e medir seu impacto sobre os solos, a saúde, a economia da região e o emprego”, acrescenta o príncipe.
Os projetos não param por aí. Broglie prevê, a partir do próximo ano, abrir um museu em La Bourdaisière sobre a alimentação e a maneira como o corpo humano absorve os alimentos. Exposições artísticas irão questionar os modos atuais de consumo. O príncipe também atua em outras frentes. Ele é proprietário, desde 2001, da Deyrolle, em Paris. Fundada no século 19, a instituição é uma referência na área de ciências naturais. É a mais célebre loja de animais empalhados da França (mortos de doença ou velhice em zoológicos) e possui uma vasta coleção de insetos, além de minerais e fósseis. Uma das cenas do filme Meia-Noite em Paris, de Woody Allen, foi filmada na butique,considerada por alguns uma atração na cidade com seus ursos, tigres e outros bichos.
A Deyrolle é ainda conhecida por seu material pedagógico e antigos pôsteres científicos utilizados, no último século, em escolas e universidades para ilustrar assuntos que vão de botânica a anatomia humana, geografia ou geologia. Broglie ampliou a coleção da editora, com material de ensino e livros sobre os desafios do século 21, a “Deyrolle para o Futuro”, com temas como mudanças climáticas, reciclagem do lixo ou energia eólica.
“Le prince jardinier”, seu apelido, virou uma marca de luxo de ferramentas e acessórios para jardinagem, móveis para jardim e peças de roupas, como os coletes que Broglie costuma usar. “Deve ter alguns ancinhos no palácio do Eliseu (sede da presidência francesa) e no castelo do príncipe Charles, um amigo da família.” Apesar da origem aristocrática, Broglie defende valores de simplicidade e critica com fervor o consumo desenfreado. “Nossa sociedade é torturada pelo modo de vida atual, o lucro e o consumo uniforme e linear (extrair, produzir e descartar). Não sabemos bem para onde vamos.” Ele afirma ser um adepto da filosofia “menos é mais”, reforçada na época em que passou meses caminhando pelas montanhas na Índia.
“O que me interessa é o que liga a natureza a inspirações para viver de outra maneira. A transmissão desses conhecimentos e inovações também é fundamental para mudar os paradigmas da sociedade atual.” A meta do “príncipe jardineiro” é continuar desenvolvendo projetos que se assemelham a laboratórios de biodiversidade e possam inspirar empresas, governos e particulares. Uma maneira de colocar em prática a divisa de sua família,
que integra o brasão dos Broglie: “Para o Futuro”.
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