Edição 7 - 02.01.18
Por Lívia Andrade
Tudo começou despretensiosamente. Em 1995, Roberto Irineu Marinho, presidente das Organizações Globo, comprou a Sertãozinho, uma fazenda na cidade de Botelhos, Sul de Minas Gerais. A ideia era ter um lugar de descanso, e nada mais propício que uma linda propriedade incrustrada nas montanhas da Serra da Mantiqueira, região tradicional no cultivo de café arábica. A fazenda tinha um cafezal, com algumas lavouras de 1948, e o dono resolveu contratar José Renato Gonçalves Dias, um agrônomo recém-formado, para cuidar da plantação. Sexta geração de cafeicultores de sua família, Zé Renato, como é conhecido, começou a mapear a fazenda. Ele dividiu a propriedade em talhões de acordo com a variedade de café, tipo de solo, altitude e insolação. “Foi a primeira fase do Café Orfeu, etapa de entender o terroir, saber qual variedade vai bem e aonde, e de obter certificações e responsabilidade socioambiental”, diz Amanda Capucho, diretora-geral da Orfeu Cafés Especiais.
A família Marinho, porém, não planta nada que não possa se transformar em uma grande colheita. Após anos de trabalho e investimentos, o Café Orfeu se tornou em um ambicioso projeto de construção de marca dentro de um segmento competitivo. A brincadeira ficou séria, como demonstra a recente entrada da empresa no segmento de cápsulas de café espresso, com uma versão biodegradável das embalagens. “Foram investidos 4 milhões de reais num pacote que inclui a campanha televisiva e toda a pesquisa e desenvolvimento das novas cápsulas”, afirma Amanda.
O roteiro desse trabalho de sucesso começa a ser contado com a reestruturação da Sertãozinho, que aconteceu nos cinco primeiros anos após sua aquisição por Marinho. Durante esse período, o café era colhido manualmente, depois lavado, colocado para secar no terreirão (processo que leva até 14 dias) e armazenado em tulhas de madeira. “Tínhamos quatro tulhas, uma de café cereja descascado, duas de café natural e outra de café de varrição”, diz Zé Renato. A partir de 2000, os donos resolveram investir nos chamados cafés especiais, categoria que engloba os grãos
da variedade arábica que atingem uma nota superior a 80 pontos, segundo critérios da Associação Americana de Cafés Especiais (SCAA, na sigla em inglês). A nova etapa demandou investimentos e muito capricho. “Cada talhão começou a ser colhido separadamente e, de quatro tulhas, fomos para 30”, diz o agrônomo, que fez cursos de prova de café para conseguir classificar os grãos. No momento em que o café vai para a tulha, uma amostra segue para a sala de testes e o lote é pontuado. Dessa forma, Zé Renato passou a acompanhar ano a ano a pontuação de cada talhão, o que lhe ajudou nas decisões de quais áreas manter, de quais áreas renovar.
SÍMBOLO MILENAR
Com o novo foco vieram as premiações. A Fazenda Sertãozinho ganhou diversas vezes o concurso de qualidade Cup of Excellence, realizado pela Associação Brasileira de Cafés Especiais (BSCA, na sigla em inglês). Seus lotes premiados sempre foram muito disputados em leilões, sobretudo pelos japoneses, que chegaram a pagar mais de 10 mil dólares por 19 sacas de café bourbon amarelo, variedade que resulta numa bebida muito doce e aromática.
O reconhecimento pelo bom trabalho – do plantio do café até o armazenamento do grão – levou os donos a dar o próximo passo. “Eu tenho qualidade, rastreabilidade, certificação, agora quero um produto acabado”, disse à época Marinho. Assim, em 2005, foi criado o Café Orfeu. O logo da marca é inspirado no imponente jequitibá-rosa, com idade estimada em 1.500 anos, que reina soberana em pleno cafezal. Já o nome é uma homenagem a Orfeu, deus grego conhecido por hipnotizar plantas, pássaros e pessoas ao tocar sua lira. “O dono inventou o nome, sua esposa criou a embalagem e Ana Cecília [mulher de Zé Renato] montou a torrefação”, diz Amanda.
O intuito era ofertar um café de qualidade aos brasileiros. Tudo era feito com muito esmero, o que abriu caminho para a marca entrar em lugares como a churrascaria Fogo de Chão e o restaurante Figueira Rubayat. Mas, a princípio, os Marinho não tinham grandes ambições comerciais e não possuíam uma equipe de apoio aos clientes, com logística, treinamento e reciclagem de baristas. “Às vezes, chegava alguém com um café inferior, mas com um serviço melhor e ganhava o ponto de venda”, conta a diretora. A única ambição dos Marinho era manter a qualidade, a consistência e a credibilidade do Café Orfeu. Nessa época, a fazenda fornecia os grãos verdes para grandes empresas do nicho de cafés especiais: a italiana Illy; a suíça Nespresso e a Starbucks Reserve, uma loja-conceito da rede americana de cafeterias que oferece ao consumidor os melhores cafés do mundo.
O prestígio que o café da fazenda Sertãozinho conquistou levou a família a comprar mais quatro propriedades na região: uma em Poços de Caldas (MG), duas em São Sebastião da Grama (SP) e outra em Botelhos (MG). O investimento dobrou a capacidade de produção e hoje as propriedades somam 1.000 hectares de lavoura, com 3 milhões de pés de café, que renderam este ano 25 mil sacas do grão, sendo que 70% da produção são cafés especiais. Nas novas terras, Zé Renato implementou o mesmo trabalho de diagnóstico de talhão por talhão. “Estamos arrancando as lavouras antigas, de 1.000 plantas por hectare, e plantando no lugar 5 mil pés de café no sistema semiadensado”, explica o agrônomo. A variedade de café para cada nova área é escolhida pelascaracterísticas de solo, altitude, insolação, amplitude térmica da gleba e também em função da demanda de mercado. “Os donos de cafeteria procuravam o Café Orfeu e perguntavam se não tínhamos orgânicos para oferecer”, lembra Zé Renato.
Essa procura motivou o plantio do Arara, uma variedade de café orgânico desenvolvida pela Fundação Procafé e resistente às principais doenças do cafezal, phoma e ferrugem. Foram plantados apenas 5 hectares numa área de 1.300 metros de altitude na Fazenda Sertãozinho. No entanto, havia um receio quanto ao desempenho da variedade, porque os cafés orgânicos tinham fama de baixa produtividade e de originar uma bebida de péssima qualidade. Mas o resultado foi surpreendente. “A produtividade foi fantástica, o café teve uma pontuação de 90 pontos e nos levou a ampliar a área primeiro para 17 hectares e agora para 22”, diz Zé Renato.
Todas as fazendas do Café Orfeu estão situadas acima de 1.000 metros. Se por um lado a altitude confere à bebida complexidade e aromas únicos, por outro ela encarece o custo de produção. Toda colheita e tratos culturais são feitos manualmente. Ao todo, 200 famílias trabalham nos cafezais e, nos momentos de pico, funcionários temporários são contratados para ajudar nas tarefas. No entanto, de uns anos para cá, Zé Renato iniciou um processo de melhorias, que inclui mecanizar tudo que é possível. “A idade média dos nossos funcionários é de 50 anos. Daqui a dez anos, eles vão estar com 60 anos e os jovens não querem ficar no campo”, diz o diretor.
Antevendo o problema, as novas lavouras estão sendo plantadas em terraços, sistema usado em plantações de uva na Europa para diminuir as rampas e barrar a velocidade da água da chuva. A tecnologia facilita o manejo da lavoura. “Acredito que, num horizonte próximo, vamos ter máquinas para colher em terraços”, diz Zé Renato. Hoje,
as derriçadeiras motorizadas de operação manual, conhecidas como mãozinhas mecânicas, é o máximo de automação possível. Usando uma delas, um trabalhador chega a colher o volume colhido por 2 a 4 pessoas. Outra melhoria implementada foi a irrigação por gotejamento. “Há 21 anos, chovia em média de 1.600 a 1.800 milímetros por ano. Esse índice caiu para 1.000 a 1.200 milímetros, uma queda grande”, explica o agrônomo.
As mudanças climáticas passaram a provocar veranicos prolongados, principalmente em janeiro e fevereiro, meses de enchimento do grão, quando a planta mais precisa de água. “Eu só ligo o sistema de irrigação quando preciso,
se ficar mais de duas semanas sem chover”, diz Zé Renato.
O investimento em novas propriedades possibilitou a fase atual do Café Orfeu, o relançamento da marca. “O proprietário constatou que todo ano conseguia estar entre os Top 10 cafés do Brasil, que tinha qualidade, consistência, escala e resolveu investir em penetração”, explica Amanda, que foi contratada para estruturar a parte comercial do Café Orfeu. Nessa etapa, o e-commerce ganhou força e o portfólio de produtos, novos itens. Entraram o café intenso, o orgânico, além do blend clássico e do suave. Todos eles encontrados nas categorias: grãos torrados, torrado e moído e cápsulas. Detalhe: 100% dos cafés Orfeu são especiais, o que não se enquadra na categoria é vendido para cooperativas.
A estratégia comercial para ampliar a participação de mercado foi entrar em restaurantes, cafeterias e hotéis. “A ideia é que, nesses lugares, as pessoas degustem nosso café, vejam o logo na xícara, depois reconheçam no supermercado e levem o produto para casa”, diz a diretora, frisando que a marca tem clientes como a rede de padarias Benjamin Abrahão, os restaurantes Santinho e os hotéis Grand Mercure. Além disso, de tempos em tempos, o Café Orfeu convida renomados nomes da gastronomia para lançar microlotes limitados e promover a marca. “No último, nós chamamos a chef Morena Leite, do restaurante Santinho, para apresentar ao público o Beija-Flor, uma variedade nova de café”, diz Amanda.
No âmbito do varejo, o Café Orfeu está presente no Pão de Açúcar, grupo Carrefour, rede St. Marche, Zaffari, entre outros. Para dar assistência aos pontos de venda e aos clientes Business-to-Business (B2B), a equipe conta com 30 pessoas, o que inclui operadores logísticos, baristas que dão treinamento, vendedores e repositores de gôndola. Na parte industrial, a torrefação recebeu aportes para compra de novas máquinas, incluindo uma encapsuladora, que produz cápsulas compatíveis com a cafeteira Nespresso. “Hoje uma saca de café commodity é vendida por 450 reais, se o café for especial e certificado o valor sobe para 600 reais. Mas eu consigo fazer 8 mil cápsulas com uma saca e agregar muito mais valor”, explica Zé Renato. Por isso, o Café Orfeu investiu no desenvolvimento da cápsula biodegradável, que, quando destinada ao lixo orgânico, se degrada e se transforma em adubo em quatro meses. O produto recebeu o Rótulo Ecológico da ABNT, único programa de rotulagem brasileiro aprovado pelo Global
Ecolabelling Network (GEN). A novidade é uma resposta a uma preocupação que começou na Europa e também uma estratégia para aumentar a penetração. “Muitos países estão banindo as cápsulas de alumínio e plástico por conta dos resíduos que elas geram”, diz Amanda. O fato é que o Café Orfeu voltou com fôlego para conquistar novos clientes.
O que é um café especial?
São cafés da espécie arábica que atingem uma nota superior a 80 pontos, segundo os critérios da Associação Americana de Cafés Especiais (SCAA). Em cada lote, separa-se uma amostra de 350 gramas de café cru cujo teor de umidade não deve ultrapassar 11%. A primeira fase da avaliação é física, observa-se o tamanho dos grãos, se há defeitos: má formação, grãos quebrados etc. Na sequência, a amostra é torrada e um degustador faz a análise sensorial da bebida, pontuando características como aroma, doçura, acidez e corpo.
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