Por Ana Lucia Silva e André Sollitto
A receita é simples. Manteiga é nata batida até quebrar a emulsão do leite. Parece pouco, mas o alimento está presente na história da humanidade desde o período Neolítico – quando começou a domesticação de animais ruminantes – e já era consumido na África, no Oriente Médio e na Ásia antes mesmo de se transformar em símbolo europeu. A manteiga já foi sustento de viúvas e mulheres solteiras, luxo com o selo Maria Antonieta e vilã das artérias. Agora, ganha novos significados com uma produção brasileira impulsionada pela valorização das padarias artesanais e da própria viennoiserie (a arte da massa folhada fermentada, como os croissants) nacional. O resultado é uma cadeia mais rica, que reconhece a qualidade desde o início, no produtor rural.
Para entender o momento atual, em que a produção artesanal começa a ganhar espaço no mercado, é preciso voltar no tempo. Historicamente, a manteiga sempre esteve ligada ao universo feminino. No livro Butter: A Rich History, a jornalista Elaine Khosrova conta que a ordenha das vacas e a produção de laticínios era uma função das mulheres, baseada em uma noção de pureza e fertilidade, e que dava certo prestígio e liberdade a quem produzia o ingrediente. Na Europa, o modo de fazer – e a receita de cada família – era passado entre as gerações de mães e filhas e englobava conhecimentos como a alimentação dos animais, o clima e o tempo de descanso para a formação da nata.
Tratava-se, de fato, de um produto artesanal. As manteigas produzidas pelo método de afloramento natural, em que a nata se separa do líquido do leite em um processo de 12 horas, eram temperadas com sal ou ervas e carimbadas com moldes decorados e enfeitados por fitas, como uma assinatura da produtora. As melhores já tinham destino certo, sendo enviadas para os clientes quase como um serviço de assinatura, enquanto outras vendiam suas produções nas feiras. O auge desse modelo ocorre entre os séculos 16 e 17, quando as cidades cresceram e a demanda pelo produto aumentou, assim como o surgimento de fazendas dedicadas à produção de laticínios.

Na cultura europeia, é recorrente a figura romantizada da dairy maid – a mulher leiteira –, retratada em pinturas bucólicas que encantavam a aristocracia. Também são comuns referências mitológicas a deusas do leite, símbolos de fertilidade e abundância. No século 18, na França, surgiram as laiteries ou pleasure dairies, os espaços luxuosos que simulavam ambientes de produção de manteiga e queijo, permitindo que damas da nobreza experimentassem, de forma idealizada, a vida rural e uma certa visão da feminilidade. Segundo o livro Dairy Queens, Maria Antonieta possuía uma dessas construções, que incluía até uma sala de degustação para ela e suas acompanhantes.
O protagonismo feminino, no entanto, foi relegado ao passado. Com o início da industrialização, as mulheres ainda utilizavam batedeiras manuais de madeira, acionadas por alavancas, que se tornavam cada vez maiores e mais pesadas, exigindo força física e dificultando a continuidade do trabalho feminino. Aos poucos, os homens passaram a assumir a dianteira da produção. A Revolução Industrial mecanizou o processo e introduziu o método de centrifugação, em que o leite é batido até que o líquido se separe e a manteiga se fixe nas paredes do recipiente. Essa nova dinâmica favoreceu a produção em larga escala e desestimulou os pequenos produtores, que passaram a vender seu leite para as indústrias.
Fato é que a manteiga ocupa um papel central na alimentação, especialmente em países como a França, onde é base fundamental da gastronomia. Além de dourar carnes e enriquecer molhos, ela é essencial na produção de folhados como o croissant e o pain au chocolat, feitos a partir de massas finas intercaladas com placas de manteiga laminadas, uma técnica que exige um tipo específico do ingrediente, conhecido como beurre de tourage. Foi justamente nesse nicho que a Manteigaria Nacional viu uma oportunidade. Regiane Rêgo, fundadora da empresa sediada em Luziânia (Goiás), prestava consultoria a um laticínio quando percebeu duas lacunas: a indústria tinha dificuldade para escoar a produção de creme de leite, e o mercado da panificação carecia de uma manteiga adequada para viennoiseries – com alto teor de gordura (acima de 82%) e baixa concentração de água, difícil de encontrar no Brasil. “Desenvolvemos uma técnica baseada na baratagem, que consiste em bater o creme de leite até separar a gordura da água, e conseguimos atingir umidade entre 5 e 10% apenas”, diz Regiane.

Mesmo sem uma receita herdada de família, Regiane chegou a uma fórmula de sucesso. “São necessários 100 litros de leite para produzir 1 quilo de creme de leite fresco, que resulta, em média, em 700 gramas de manteiga. Trabalhamos com creme de no máximo sete dias e não utilizamos aditivos químicos. Isso garante um sabor mais puro, além de um pH mais equilibrado e com menor acidez”, explica. Com o aquecimento do mercado de panificação e confeitaria artesanal, a empresa tem se beneficiado da crescente demanda por produtos de alta qualidade e produção controlada.
Com o crescimento do mercado de panificação artesanal e viennoiserie no Brasil, a Manteigaria Nacional vem se consolidando como uma alternativa nacional às marcas consagradas no segmento, como a francesa Isigny Ste Mère e a argentina La Serenissima, bastante popular entre os padeiros. Além do fornecimento para o mercado profissional, a empresa também expandiu sua atuação para o público final, com um portfólio voltado ao consumidor (B2C). Em sua loja na Vila Madalena, em São Paulo, a marca oferece itens de maior valor agregado, como ghee, manteigas saborizadas com ervas, alho negro, mel e até frutas.
Segundo Regiane, a Manteigaria Nacional foi construída com foco na sustentabilidade. “É uma empresa alinhada com os valores que o público busca hoje, como responsabilidade ambiental e compromisso social”, afirma. Além de utilizar sua própria fonte de água, desde outubro de 2024 a empresa conduz um projeto de reflorestamento em Luziânia (GO), onde está localizada sua sede. Batizada de Arvoredo Nacional, a iniciativa já plantou mais de 660 árvores e tem como meta alcançar 100 mil mudas. O objetivo é contribuir para a absorção de dióxido de carbono (CO?), reduzir os efeitos negativos das mudanças climáticas, melhorar a sensação térmica da cidade e aumentar a umidade relativa do ar. Para isso, foi criado um sistema que prevê o plantio em locais estratégicos como escolas, praças e canteiros durante o período chuvoso. Na estação seca, a empresa distribui mudas para parceiros interessados e participa do monitoramento e do acompanhamento do crescimento das plantas.
A Manteigaria Nacional foi a primeira empresa do País a obter o Selo Arte para manteiga. Concedido pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), o selo autoriza a comercialização interestadual de alimentos artesanais – como queijos, mel, embutidos e, agora, manteiga – produzidos por agroindústrias de pequeno porte. Trata-se de um reconhecimento importante para produtores que seguem métodos tradicionais e priorizam a qualidade artesanal.

O cuidado com a qualidade começa ainda no campo. “Trabalhamos como se fôssemos sommeliers de creme, selecionando os melhores produtores das principais bacias leiteiras do País, como Rio Grande do Sul, Goiás e Minas Gerais”, afirma Regiane. A Manteigaria Nacional adquire matéria-prima exclusivamente de fornecedores com certificação de origem. Os critérios variam conforme o selo, como o Programa Nacional de Qualidade do Leite (PNQL), do Ministério da Agricultura, mas, em geral, exigem boas práticas de manejo, controle sanitário e atenção ao bem-estar animal. Isso inclui desde instalações adequadas até uma alimentação balanceada para as vacas leiteiras, fator decisivo para a qualidade do leite. Afinal, é a boa nata que dá origem à manteiga – e, com ela, ao sabor inconfundível de um croissant quentinho.





