Os caminhos do biodiesel 

Produção recorde de 9 bilhões de litros em 2024 projeta novo salto para o biocombustível no Brasil, mas futuro exige inovação e diversificação para reduzir dependência da soja e aguentar os sustos regulatórios
Edição: 49
18 de agosto de 2025

Por Lucas Bresser 

A indústria brasileira do biodiesel está em ritmo acelerado. Em 2024, o País produziu um recorde de 9,07 milhões de metros cúbicos do combustível renovável – o equivalente a mais de 9 bilhões de litros, segundo a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). Trata-se de um crescimento de 20,4% frente aos 7,52 milhões de metros cúbicos fabricados em 2023 e o segundo ano consecutivo com expansão superior a 20%. Os números, por si sós, impressionam. Mas ganham ainda mais relevância diante de um cenário global de busca por soluções de baixo carbono e de uma política energética que, no Brasil, tem reforçado seu compromisso com os biocombustíveis como ferramenta de desenvolvimento sustentável e segurança energética. 

Parte significativa desse avanço se deve a fatores regulatórios: o aumento da mistura obrigatória de biodiesel ao diesel fóssil, o chamado diesel B. Em março de 2024, entrou em vigor o B14 – ou seja, uma mistura de 14% de biodiesel. Apenas essa elevação, que sucedeu ao B12 vigente em 2023, explica um incremento técnico estimado em 17% na demanda por biodiesel, segundo cálculos da ANP. O restante se deve, principalmente, ao crescimento do consumo total de diesel, que somou 67,2 milhões de metros cúbicos em 2024, alta de 2,6%. Para 2025, a expectativa da consultoria StoneX é que o consumo de diesel B chegue a 69,3 bilhões de litros, um novo recorde. A previsão anterior era ainda maior, mas foi revisada para baixo diante de uma estimativa de crescimento mais tímido da produção industrial. 

A mistura de biodiesel ao diesel fóssil é definida pelo Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) e regulada pela ANP. Em março de 2023, o governo retomou a trajetória de elevação dos teores após um período de estagnação e cortes, estabelecendo um cronograma progressivo que previa a chegada ao B15 em março de 2025 e, eventualmente, ao B20 até o fim da década. No entanto, em fevereiro deste ano, o CNPE adiou a implementação do B15, que previa elevar para 15% a mistura. A medida ocorreu como resposta a pressões inflacionárias, com o governo buscando conter a alta nos preços dos alimentos, especialmente derivados de soja, principal matéria-prima do biodiesel. A notícia foi recebida com preocupação por boa parte do setor produtivo, que já vinha se preparando para o novo patamar de demanda. Ainda não há nova data definida para a adoção do B15. 

“A cadeia produtiva do biodiesel está fortemente vinculada ao agronegócio, sobretudo ao óleo de soja, que representa quase 70% da matéria-prima utilizada”, afirma Valdemir Alexandre dos Santos, coordenador do Laboratório de Tecnologias Ultrassônicas no Instituto Avançado de Tecnologia e Inovação (Iati) e líder do Grupo de Pesquisa em Engenharia Ultrassônica Aplicada a Processos Sustentáveis, certificado pelo CNPq. “Essa dependência gera riscos para a segurança alimentar e a estabilidade da cadeia.” Segundo o especialista, a diversificação de matérias-primas, com inclusão de oleaginosas alternativas – como dendê, macaúba e pinhão-manso – e resíduos (óleos usados e gorduras animais) é essencial para fortalecer a produção regional e promover maior sustentabilidade.  

Valdemir dos Santos, do Iati: “A cadeia produtiva do biodiesel está vinculada ao óleo de soja”

Dados da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) indicam que o óleo de soja representou 69,15% da matéria-prima utilizada na produção de biodiesel em 2023. Gorduras animais responderam por 11,2%, enquanto o óleo de cozinha usado ainda tem participação incipiente, abaixo de 3%. O governo pretende mudar esse cenário. Em dezembro de 2024, o CNPE aprovou uma resolução para estimular o uso de óleos e gorduras residuais na produção de biocombustíveis. Uma portaria conjunta do Ministério de Minas e Energia e do Meio Ambiente, prevista para ser publicada em junho deste ano, deverá estabelecer um percentual mínimo de uso desses insumos alternativos na composição do biodiesel brasileiro. 

Apesar do adiamento temporário do B15 e da frustração setorial, representantes da indústria entrevistados por PLANT PROJECT permanecem otimistas. Medidas como a aprovação da Lei do Combustível do Futuro, que estabelece metas progressivas até 2030, e o fortalecimento da agenda energética internacional dão fôlego de longo prazo aos produtores. Para líderes do setor, o biodiesel será um dos protagonistas na transição energética do País. “Estamos diante de uma grande oportunidade de avançar em sustentabilidade e segurança energética”, afirma Daniel Furlan Amaral, diretor de Economia e Assuntos Regulatórios da Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove). “O Brasil já tem escala produtiva, cadeia estabelecida e uma matriz de matérias-primas que pode ser ainda mais diversificada. Com previsibilidade regulatória, o setor está pronto para contribuir ainda mais.” O cronograma está previsto em lei, mas os produtores acompanham com atenção a implementação efetiva das metas. Segundo Amaral, há diálogo constante com o governo e a expectativa é que medidas complementares, como melhoria de infraestrutura, incentivo ao cultivo de oleaginosas e ampliação da capacidade de esmagamento, sejam adotadas. 

A perspectiva de crescimento se apoia também na expansão de novos mercados e aplicações. Além do uso em veículos pesados e na mistura obrigatória ao diesel, o biodiesel tem sido testado com sucesso nos modais ferroviário e marítimo, bem como em aplicações estacionárias, como geradores e usinas termelétricas. “Locomotivas e navios podem se tornar ainda mais sustentáveis com o uso de biocombustíveis”, diz Julio Minelli, diretor superintendente da Associação dos Produtores de Biocombustíveis do Brasil (Aprobio). “Já existe autorização da ANP para comercialização de combustível marítimo com até 24% de biodiesel.” A ampliação do uso de biodiesel puro (B100) também avança entre grandes empresas. Grupos como Be8, Amaggi, JBS, Potencial e Martelli já utilizam o produto em parte de suas operações logísticas. Segundo Minelli, essas experiências demonstram que o uso de 100% de biodiesel é viável e eficaz para metas de descarbonização de curto prazo. 

A Be8, uma das principais produtoras do País, desenvolveu um biodiesel de alta performance – o Be8 BeVant – que pode ser usado puro em motores a diesel convencionais, com redução de até 90% nas emissões de gases de efeito estufa no ciclo do tanque à roda. Em 2025, o biocombustível será testado em veículos terrestres do Aeroporto de Congonhas (SP) e em operações de empresas como Gerdau, Randon, Ambipar e John Deere. “Estamos apostando em soluções tecnológicas que agreguem valor e ampliem o mercado para o biodiesel”, afirma Erasmo Carlos Battistella, presidente da Be8. “Outro bom exemplo é o projeto que lançamos com a Cemvita para transformar glicerina, subproduto do biodiesel, em matéria-prima para combustíveis sustentáveis de aviação.” A empresa também está construindo, no Paraguai, a biorrefinaria Omega Green, com previsão de investimento de US$ 1 bilhão e início de operação em 2028, voltada à produção de combustível sustentável de aviação (SAF), diesel verde, GLP verde e green nafta

O Grupo Potencial é outro que tem investido na evolução do biodiesel no Brasil. “Somos a única usina de biodiesel que produz um óleo sintético, que é feito a partir dos subprodutos gerados no tratamento da matéria-prima”, diz Robson Rodrigues Antunes, diretor de Operações Industriais do Grupo Potencial. “Com isso, conseguimos obter rendimento de praticamente 100%, muito alinhado com a economia circular e com o protagonismo em evolução sustentável.” A empresa também tem apostado em melhorias próprias de tecnologia a fim de aumentar a eficiência na produção do biodiesel, elevando os níveis de competitividade. O grupo ainda busca diversificar as aplicações a partir do diálogo com fabricantes de geradores de energia e da negociação para o fornecimento de biodiesel para abastecimento marítimo. 

Robson Rodrigues Antunes, do Grupo Potencial: investimentos na evolução do biosiesel brasileiro

Essa diversificação é vista como crucial para a expansão do uso do biodiesel. A exploração de aplicações, além do transporte rodoviário, passa pela geração de energia elétrica descentralizada (especialmente em comunidades isoladas), navegação fluvial e marítima, maquinário agrícola e pelo uso como precursor para a produção de SAF. Tais aplicações podem fortalecer o papel do biodiesel como fonte energética estratégica em contextos de difícil acesso à eletricidade. 

Além disso, os líderes setoriais consultados não veem com especial preocupação a competição com o diesel verde, biocombustível produzido a partir do hidrotratamento de óleos vegetais – transformando-os em hidrocarbonetos semelhantes ao diesel fóssil –, que pode ser aplicado em sua forma pura (R100) ou misturado ao diesel fóssil. Amaral, da Abiove, afirma que os dois produtos são complementares no esforço de descarbonização e que o biodiesel tem uma vantagem importante: custo mais acessível. “O Brasil precisa de todas as rotas tecnológicas disponíveis. O biodiesel já tem uma cadeia consolidada e pode expandir rapidamente a produção”, diz. Minelli, da Aprobio, reforça que o setor tem capacidade instalada e autorizada pela ANP para atender a evolução da mistura obrigatória, com geração de empregos e integração com o agronegócio. “O setor acredita que há mercado para todos os biocombustíveis, mas confirma que o biodiesel é a solução mais econômica e pronta para atender a transição energética do ciclo diesel”, afirma o executivo. 

Essa visão, no entanto, não é unanimidade entre os especialistas. Valdemir dos Santos, do Iati, afirma que há risco de canibalização do mercado de biodiesel com o avanço do diesel verde, especialmente diante da entrada de grandes refinadoras nesse setor. “O diesel verde apresenta vantagens operacionais significativas: pode ser utilizado em qualquer proporção nos motores a diesel sem necessidade de adaptação, possui maior estabilidade oxidativa, melhor desempenho em baixas temperaturas e é totalmente compatível com a infraestrutura de distribuição existente”, afirma. Essas características, segundo o pesquisador, fazem com que ele seja tecnicamente mais atrativo, sobretudo para grandes distribuidoras e frotas industriais. Contudo, enquanto o diesel verde tende a se consolidar como um biocombustível de alta performance voltado ao mercado premium, a indústria de biodiesel convencional seguirá tendo espaço relevante, principalmente pela sua inserção em cadeias de valor mais amplas. “O biodiesel possui externalidades positivas que o diferenciam: promove a inclusão da agricultura familiar, gera emprego e renda em regiões interioranas, estimula a produção descentralizada de energia e tem potencial de fomentar biorrefinarias integradas”, diz Santos. 

Para seguir crescendo, o setor do biodiesel deverá enfrentar os desafios regulatórios – a exemplo do recente adiamento do aumento de proporção de mistura obrigatória com o diesel fóssil –, a forte dependência do óleo de soja como matéria-prima, deficiências logísticas e limitações tecnológicas nas plantas industriais. Para isso, a indústria precisa de metas claras e estáveis, incentivo à diversificação de insumos (como resíduos e oleaginosas nativas), valorização de seus impactos socioambientais, investimentos em infraestrutura e apoio à inovação tecnológica. Com uma abordagem integrada, o biodiesel pode se consolidar como vetor de desenvolvimento regional, segurança energética e sustentabilidade no País. 

Os líderes no Brasil 

Os estados que mais produzem biodiesel no País:

Posição Estado Produção estimada (litros/ano) Região 
1º Rio Grande do Sul ~1,55 bilhão Sul 
2º Mato Grosso ~1,5 bilhão Centro-Oeste 
3º Goiás ~1,2 bilhão Centro-Oeste 
4º Paraná ~1,0 bilhão Sul 
5º Mato Grosso do Sul ~0,8 bilhão Centro-Oeste 

Fonte: ANP (2023) 

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