Por André Sollitto
O ano de 1970 foi agitado no Brasil. Enquanto movimentos populares sequestravam embaixadores estrangeiros em resposta ao avanço da repressão da ditadura militar, a seleção brasileira brilhava no México ao conquistar sua terceira Copa do Mundo. No mundo das artes, o cenário também era efervescente. Alguns dos artistas mais populares estavam no exílio, como Caetano Veloso e Gilberto Gil, ao passo que outros seguiam atuando no País e divulgando obras que mais tarde seriam reconhecidas como fundamentais para a história da música brasileira. Foi o caso do décimo disco de Roberto Carlos, do primeiro LP de Candeia (1935-1978) e de Legal, de Gal Costa (1945-2022). Nas artes plásticas, era tempo de experimentação. Cildo Meireles, Hélio Oiticica (1937-1980), Lygia Clark (1920-1988) e outros nomes rompiam não apenas com as convenções da produção artística, mas também com as formas tradicionais de exibição, levando seus trabalhos para além dos museus.
Nesse contexto tão intenso, outra iniciativa surgiu fora do eixo Rio–São Paulo: o Movimento Armorial. Idealizado pelo escritor paraibano Ariano Suassuna (1927-2014), o movimento lançou as bases para uma valorização inédita da cultura popular nordestina e se tornaria, nas décadas seguintes, cultuado pela diversidade e sofisticação de suas manifestações artísticas. Em 2025, o Armorial completa 55 anos – e segue vivo, de forma surpreendente, no universo da alta gastronomia brasileira.

A inspiração para o movimento veio das artes e saberes tradicionais do Nordeste brasileiro. É o caso da literatura de cordel, estilo tão característico e de forte conotação popular. Ou ainda das xilogravuras, ilustrações feitas a partir de gravações em blocos de madeira, facilmente reproduzíveis em larga escala. Havia, também, uma forte recusa em aceitar a produção cultural de massa, principalmente norte-americana, que começava a dominar o mercado. As críticas ao poderio cultural continuariam como um dos pilares da atuação de Suassuna. “Antigamente, quando os Estados Unidos queriam dominar um país, eles mandavam um ou dois porta-aviões e ameaçam aquela nação com seus fuzileiros navais”, disse o escritor, em um célebre discurso que há anos circula pelas redes sociais. “Hoje, eles mandam Michael Jackson e Madonna. É muito mais barato e muito mais eficaz.” O próprio nome do movimento, Armorial, era uma referência às insígnias, brasões, estandartes e bandeiras de um povo. A heráldica, ou seja, o estudo desses símbolos, seria um fator determinante na construção de uma identidade poderosa e orgulhosa de sua própria origem.
Quando divulgou o manifesto, em outubro de 1970, Suassuna já era um escritor reconhecido. Dramaturgo de mão cheia, havia publicado alguns de seus principais trabalhos, como O Auto da Compadecida, em 1955; O Santo e a Porca, em 1957; e A Farsa da Boa Preguiça, em 1960, considerada pelo próprio autor sua peça mais importante. Tinha publicado também um romance, A História de Amor de Fernando e Isaura, em 1956, e volumes de poesia. Mas foi com o lançamento de Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, em 1971, que foi lançada a base para o Movimento Armorial.
A trama é baseada em um episódio real de 1836, quando uma seita tentou fazer ressurgir o rei Dom Sebastião, transformado em lenda em Portugal depois de desaparecer na África. Misturando elementos da cultura popular, como o cordel, e as emboladas, o trabalho foi considerado um marco fundamental da literatura nordestina, em especial após o ciclo do romance regional dos anos 1930, composto por títulos como Vidas Secas, de Graciliano Ramos; Menino de Engenho, de José Lins do Rego; e O Quinze, de Rachel de Queiroz.
Depois da publicação de A Pedra do Reino, outros artistas passaram a integrar o movimento e ampliar o escopo para diversas manifestações. O Quinteto Armorial, por exemplo, foi um dos pilares da cena. A partir da música popular regional, o grupo foi pioneiro em desenvolver uma música de câmara erudita que sintetizava a tradição clássica europeia, as raízes populares nordestinas e a influência galego-portuguesa. Foi, sobretudo, uma união de elementos folclóricos medievais com os cantadores nordestinos, mesclando instrumentos como rabeca, pífano, viola caipira, violão e zabumba com violino, viola e flauta transversal.

O primeiro LP do Quinteto, Do Romance ao Galope Nordestino, lançado em 1974, hoje disponível em qualquer plataforma de streaming, mostra exatamente a sonoridade que buscavam. Essa mescla seria revisitada por outros artistas anos mais tarde, como Alceu Valença na trilha sonora que fez para o filme A Luneta do Tempo. O próprio músico Antônio Nóbrega, líder do Quinteto Armorial, fez anos mais tarde a trilha sonora da minissérie A Pedra do Reino, da TV Globo, uma adaptação do romance de Suassuna.
A música não foi a única manifestação artística do Movimento Armorial. As artes plásticas tinham destaque, em especial a xilogravura, da qual Gilvan Samico (1928-2013) foi o maior expoente. Tradicionalmente, a xilogravura é usada para ilustrar os cordéis em preto e branco, mas também pode dar origem a gravuras coloridas. Samico tinha um estilo próprio. “É uma linguagem clara, límpida, mas plena de ecos”, definiu o poeta Ferreira Gullar em uma crítica publicada no livro Relâmpagos, de 2003. Samico ilustrou as capas de livros de Suassuna, bem como alguns dos discos do Quinteto Armorial. O também artista plástico Francisco Brennand (1927-2019) foi outro participante. Conhecido principalmente como ceramista, trabalhou também com diversos suportes. Outras vertentes também ganharam notoriedade, como o teatro, a poesia e até a tapeçaria.
Com o passar dos anos, o período áureo do Movimento Armorial – especialmente durante a década de 1970 e no início dos anos 1980 – passou a ser revisitado por meio de exposições temáticas. Um exemplo é Movimento Armorial 50 Anos, realizada em 2020, com curadoria de Denise Mattar e consultoria de Manuel Dantas Suassuna, que percorreu diversas unidades do Centro Cultural Banco do Brasil. Em 2025, é a vez do Espaço Cultural da Universidade de Fortaleza receber a mostra Armorial 50, idealizada pela produtora Regina Godoy, com acervo composto por peças originais e reproduções de obras marcantes. Alguns artistas daquele período continuam em plena atividade, como Antônio Nóbrega, integrante do histórico Quinteto Armorial, que segue lançando discos solo. Seu espetáculo Lunário Perpétuo, aliás, inspirou o samba-enredo da escola Unidos do Porto da Pedra no Carnaval de 2024.
Para além das artes plásticas, a cultura armorial encontrou um campo fértil e inesperado de desenvolvimento: a gastronomia. No início do movimento, a culinária não era sequer mencionada, apesar de ser uma área rica em possibilidades de cruzamento entre o erudito e o popular. O chef paraibano Onildo Rocha, um dos principais nomes da nova gastronomia brasileira, sempre questionou essa ausência. Em uma conversa com Ana Rita Suassuna, prima de Ariano e profunda conhecedora da cozinha sertaneja, compartilhou sua inquietação. Ana Rita refletiu por um instante antes de responder: Ariano não comia por prazer, mas por necessidade. Para ele, o alimento não fazia parte do debate estético e simbólico que norteava o movimento. Ainda assim, Rocha enxergou na Cozinha Armorial um paralelo evidente com sua própria prática: a fusão entre as técnicas clássicas da gastronomia francesa e os ingredientes, narrativas e rituais da culinária popular nordestina. Com a bênção de Ana Rita, apresentou oficialmente o conceito de Cozinha Armorial no evento Mesa Tendências, em 2017 – e, desde então, tem contribuído para manter vivo, à sua maneira, o espírito do manifesto original.

Onildo Rocha conta que começou a cozinhar ainda jovem, por necessidade. Mais tarde, trabalhou em restaurantes em João Pessoa e Recife, até que decidiu ampliar seus horizontes na Europa, onde estudou e trabalhou com grandes nomes da gastronomia. “Foi uma oportunidade de conhecer outras culturas e técnicas, o que ampliou muito minha visão sobre comida”, diz. Hoje, ele comanda as cozinhas do Notiê – restaurante indicado pelo prestigiado Guia Michelin – e do Abaru, ambos localizados no complexo Priceless, na cobertura do Shopping Light, em São Paulo. Lá, seus menus são criados a partir de expedições culinárias por diferentes biomas brasileiros. Depois de percorrer o Sertão, a Amazônia e a Mata Atlântica, seu cardápio mais recente nasceu de andanças pela Chapada Diamantina. Entre os pratos servidos estão o abará, shissô e castanha-do-brasil, além do canolo de godó de banana verde, releitura refinada de um ensopado popular de subsistência transformado em elegante entrada. As origens são populares e as técnicas e a apresentação, sofisticadas. E é justamente nessa fusão que a Cozinha Armorial encontra seu sentido, mantendo viva, à mesa, a alma do movimento criado por Ariano Suassuna.





