Uma vida dedicada à ciência

Quem é Mariangela Hungria, vencedora do World Food Prize, o “Nobel da Agricultura”, por seu trabalho de 30 anos nas pesquisas de novas técnicas para combater a fome mundial
Edição: 49
24 de julho de 2025

Por Mário Sérgio Venditti

Escrito em 1926 pelo microbiologista americano Paul Henry de Kruif, o livro Caçadores de Micróbios transformou-se em peça obrigatória na estante de uma geração de futuros médicos e cientistas. Entre eles, estava uma criança brasileira de 8 anos, que, fascinada com as histórias de pesquisadores dedicados ao combate de doenças infecciosas, resolveu trilhar o mesmo caminho.

Dona Edina, a avó que presenteou a menina Mariangela Hungria da Cunha com o clássico, era professora de Ciência, mas mal podia imaginar que seria responsável pelo impulso decisivo para definir a trajetória profissional da neta. Felizmente, ela teve tempo de acompanhar muitas conquistas de Mariangela antes de morrer, há 20 anos.

Nascida em São Paulo há 67 anos e criada na cidade paulista de Itapetininga, Mariangela Hungria tornou-se uma celebridade da comunidade científica mundial e já perdeu a conta dos prêmios que recebeu ligados à sustentabilidade na agricultura, como o Frederico de Menezes Veiga, concedido a quem se destaca no campo da pesquisa agropecuária, e o Prêmio Mulheres e Ciência, promovido pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

A principal honraria, porém, foi anunciada em 13 de maio. A pesquisadora da Embrapa Soja conquistou o World Food Prize (WFP), o Prêmio Mundial da Alimentação, considerado o “Nobel da Agricultura”. “É areia demais para o meu caminhãozinho”, brinca a cientista. “Nunca imaginei alcançar um degrau tão alto, ainda mais em um país sem tantos recursos para pesquisas e com tantas dificuldades para manter as equipes.” Ela prossegue: “A premiação celebra o empenho da ciência brasileira por uma agricultura mais sustentável. Chegamos até aqui graças ao trabalho contínuo de meio século de pesquisas.” O reconhecimento na edição 2025 do WFP é fruto, de fato, do incansável trabalho de 30 anos de Mariangela no desenvolvimento de insumos biológicos para a agricultura, no sentido de melhorar a qualidade, quantidade e disponibilidade de alimentos no mundo.

Ela soube da premiação em fevereiro, quando recebeu uma ligação de Mashal Husain, presidente da Fundação World Food Prize. No início da conversa, achou que estava sendo convidada para uma palestra e ficou feliz com a distinção. “Quando estou contente, falo pelos cotovelos e demorou para cair a ficha do real motivo do contato”, diz. Entre uma respiração e outra, a interlocutora achou a brecha. “Calma, você terá a chance de falar à vontade, não em uma palestra, mas na solenidade de entrega do prêmio que você acaba de ganhar.”

Quando entendeu exatamente do que se tratava, Mariangela começou a chorar e, a pedido de Husain, prometeu manter a informação em segredo até o anúncio oficial. Agora, ela já prepara o emocionado discurso que fará na cerimônia em Des Moines, capital do estado de Iowa, nos Estados Unidos, em 23 de outubro. Em posse da premiação de US$ 500 mil e da escultura criada pelo designer Saul Bass, a cientista prestará homenagem às mulheres que, muitas vezes, têm papéis invisíveis em suas pesquisas voltadas à agricultura.

Mariangela foi classificada entre os 100 mil cientistas mais influentes do mundo segundo estudo da Universidade de Stanford (EUA)

Graduada em Engenharia Agronômica na Esalq/USP (Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da Universidade de São Paulo), com mestrado em Solos e Nutrição de Plantas, doutorado em Ciência do Solo e pós-doutorado em três universidades (Universidade Cornell, Universidade da Califórnia em Davis e Universidade de Sevilha), Mariangela ingressou na Embrapa em 1982 e, nove anos depois, passou a atuar na Embrapa Soja, em Londrina (PR).

Os títulos vieram um atrás do outro e seriam suficientes para ornamentar uma parede inteira de diplomas e certificados, expressando a relevância do trabalho da pesquisadora. Ela é comendadora da Ordem Nacional do Mérito Científico e integrante da Academia Brasileira de Ciências, da Academia Brasileira de Ciência Agronômica e da Academia Mundial de Ciências. No ambiente acadêmico, é professora e orientadora da pós-graduação em Microbiologia e em Biotecnologia na Universidade Estadual de Londrina. Além disso, sua experiência também é requisitada pela Sociedade Brasileira de Ciência do Solo e Sociedade Brasileira de Microbiologia.

Com a autoridade de quem foi classificada entre os 100 mil cientistas mais influentes do mundo – segundo o estudo da Universidade Stanford (EUA), em 2020 –, Mariangela também já participou por dez anos do comitê coordenador do projeto N2Africa, financiado pela Fundação Bill & Melinda Gates para projetos de fixação biológica do nitrogênio em solos africanos.

Tanta vivência e o respeito que desperta no meio científico global ajudam a pesquisadora a transitar em um cenário polarizado. “Vivo em um ambiente muito polêmico, partidário mesmo. Desde o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) até o superagronegócio, é tudo extremo. Mas há uma linha comum que une esses setores: hoje, todos buscam a sustentabilidade”, afirma.

A sustentabilidade na produção de alimentos permeia as pesquisas bem-sucedidas de Mariangela Hungria, que desenvolveu sistemas de fixação de nitrogênio no solo no cultivo da soja. De acordo com a Embrapa, a técnica fez o Brasil economizar entre US$ 25 bilhões e US$ 40 bilhões por ano na compra de fertilizantes e insumos, além de aumentar a produtividade das lavouras. O meio ambiente também agradece. No ano passado, por exemplo, 230 milhões de toneladas de CO? deixaram de ser emitidas na atmosfera graças à redução no uso de fertilizantes. “Atualmente, a solução é empregada em 40 milhões de hectares cultivados no País”, comemora.

O resultado das pesquisas ainda não conseguiu modificar uma triste realidade enfrentada pelo País. “Atualmente, 30% do que o Brasil produz é perdido ou desperdiçado. Estamos entre os dez países que mais desperdiçam alimentos no mundo”, lamenta. A fome é um dado que martiriza a pesquisadora. “Apesar da contribuição do terceiro setor, o Brasil tem muitas limitações nesse sentido e um longo caminho a percorrer. Como imaginar que alguém consiga trabalhar sem ter um pãozinho para comer de manhã?”

A cientista destaca que a produção de alimentos para reduzir os impactos da fome no mundo deve acontecer de maneira sustentável. Mas faz questão de ressaltar: “Não sou inimiga número um dos fertilizantes, porém sempre defendi a utilização de microrganismos naturais para nutrir as plantas e melhorar a saúde do solo, mesmo quando me diziam que isso não me levaria a nada. Nunca aceitei o argumento de que a adoção dos fertilizantes químicos era o caminho mais simples. O WFP é a vitória da resistência”, diz.

A persistência adotada na pesquisa com o nitrogênio é um traço que mais chama atenção na personalidade contestadora de Mariangela, que não se permite aceitar “verdades absolutas” goela abaixo. Essa forma de agir lhe trouxe algumas dores de cabeça na vida, como as reprimendas nos tempos em que estudou em colégio de freiras na juventude. “Todas as minhas notas eram 100, menos a de comportamento. Eu não era indisciplinada, mas questionadora e, por isso, constantemente frequentava a sala da diretora”, lembra, com bom humor. Uma das visitas à diretoria se deu porque a futura pesquisadora ousou perguntar, em plena aula de catecismo, como a baleia poderia ter comido Jonas, segundo a história bíblica, se esse tipo de mamífero só se alimenta de peixes pequenos.

A leitura certamente ajudou a moldar seu temperamento. Com o mesmo apetite com que devorou na infância Caçadores de Micróbios, que direcionou sua vida profissional, Mariangela acumulou outros livros de cabeceira. Apaixonada por Monteiro Lobato, ela guarda com carinho um exemplar de Reinações de Narizinho e se diz indignada com o revisionismo proposto nas obras do escritor.

Fora da Embrapa Soja, a pesquisadora fica mais tempo em casa, em Londrina, assistindo a filmes infantis na companhia da filha especial, Marcela – a outra filha, Ana Carolina, mora em São Paulo –, e do cachorro Frederico. “Também adoro cuidar das minhas plantas. Tenho de tudo, menos soja”, diverte-se. Nem sempre é fácil dividir a agenda entre família, profissão e atividades extras. A convite de Helena Nader, presidente da Associação Brasileira de Ciências, Mariangela organizou o livro Segurança Alimentar e Nutricional: OPapel da Ciência Brasileira no Combate à Fome, lançado em janeiro passado e que reúne artigos de 40 cientistas brasileiros. As quatro décadas vividas em meio às pesquisas também renderam farto material para escrever livros que descrevem a metodologia de seus estudos e publicar mais de 500 artigos.

Quando não trabalha, a pesquisadora fica mais tempo em casa assistindo a filmes infantis na companhia das filhas

Ultimamente, Mariangela está um pouco afastada de sua principal paixão: os laboratórios. Isso porque o crescimento na profissão até chegar a gerente de pesquisa da Embrapa Soja tem lá suas desvantagens, como assumir funções mais burocráticas, que ocupam boa parte do seu expediente. “Não pego mais na massa como antes, mas aos poucos quero voltar às minhas raízes e retornar aos laboratórios, mexer com minhas bactérias”, diz. E, quem sabe, encontrar novas soluções sustentáveis para caçar – e ajudar a abater – a fome no Brasil, com o mesmo ímpeto dos caçadores de micróbios. De quebra, enriquecer o vasto banco de dados das pesquisas do Embrapa, um dos maiores do mundo. Certamente, com as bênçãos de vovó Edina.

No pódio

Outros três brasileiros também ganharam o “Nobel da Agricultura

O World Food Prize é apontado como o “Nobel da Agricultura” e foi idealizado em 1986 pelo ganhador do Prêmio Nobel da Paz de 1970, o engenheiro agrônomo americano Norman Ernest Borlaug. A ideia era dar o merecido reconhecimento aos trabalhos científicos que buscavam melhorar a distribuição de alimentos no mundo. Borlaug é chamado de “pai da Revolução Verde”, alusão ao conjunto de práticas e tecnologias agrícolas – adotadas a partir dos anos 1940 – que levou ao aumento da produção de grãos e alimentos em escala global, a fim de superar a escassez provocada depois da Segunda Guerra Mundial. Com pesquisas sobre insumos biológicos, Mariangela Hungria é a primeira mulher brasileira agraciada com o “Prêmio Nobel da Agricultura”. Mas três conterrâneos também já receberam essa honraria.

Em 2006, os agrônomos Edson Lobato e Alysson Paolinelli foram homenageados, juntamente com o cientista americano Andrew Colin McClung, por suas intervenções na transformação na região do Cerrado brasileiro. Cinco anos depois, o presidente Lula faturou a honraria ao lado do ex-presidente ganense John Agyekum Kufuor pela atuação no combate à fome.

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