Por Romualdo Venâncio
O surgimento da tecnologia USB (Universal Serial Bus), em meados dos anos 1990, revolucionou a comunicação entre computadores e seus diversos periféricos, como impressoras, scanners e discos externos, padronizando a conexão entre equipamentos de diferentes fabricantes. Quem viveu aquele momento certamente vibrou com tal versatilidade ao conectar seus dispositivos eletrônicos, uma praticidade que evoluiu para a transferência de dados e até de energia, incluindo o carregamento de baterias. Agora, cenário semelhante vem sendo construído no segmento de máquinas agrícolas com o protocolo universal ISOBUS, que possibilita o “diálogo” entre tratores e implementos de montadoras distintas, por meio da transferência de dados entre sistemas e softwares.

Dessa forma, o operador pode controlar o conjunto de máquinas a partir de um único painel digital, facilidade sem a qual seria necessário instalar uma tela ou um painel de botões para cada equipamento acoplado ao trator. “Se o agricultor tiver seis implementos diferentes, a cabine do trator vai parecer uma nave espacial”, diz o pesquisador da Embrapa Instrumentação, Ricardo Inamasu. Segundo o especialista, até mesmo a decisão dos investimentos em maquinário é beneficiada, pois o agricultor não precisa ser frotista de uma só marca nem lidar com uma “Torre de Babel”, com equipamentos de diferentes fabricantes e que não se entendem.
Esse desafio de comunicação levou ao surgimento da tecnologia ISOBUS, regulamentada pela Norma ISO 11783, publicada em 2007 e estabelecida pela Agricultural Industry Electronics Foundation (AEF), entidade global sediada na Alemanha que conta com membros de vários países, inclusive do Brasil. A iniciativa começou na Europa, tanto pela maior variedade de fabricantes de máquinas agrícolas no continente quanto pela consequente necessidade de um diálogo padronizado entre seus diversos equipamentos. No Brasil, a norma do protocolo ISOBUS em língua portuguesa foi publicada pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) em 2012.
A solução é inspirada no sistema CAN bus (Controller Area Network), um padrão de comunicação entre veículos que permitiu substituir uma grande quantidade de fios individuais por um único par de fios para transmitir mensagens entre todos os dispositivos interligados. Além de otimizar a transmissão de dados, a mudança diminuiu o peso dos veículos e reduziu custos. No caso do ISOBUS e das máquinas agrícolas, abre-se ainda mais caminho para a aplicação da IoT, a inteligência das coisas.

Mais do que uma linguagem universal entre máquinas, o ISOBUS é visto como um passaporte definitivo para a agricultura digital e de precisão. “Isso porque possibilita a utilização de tecnologias relacionadas a essas duas áreas”, afirma o gerente de Marketing e Produtos para América Latina da Fendt, Elizeu dos Santos. Estima-se que, no Brasil, 20% das máquinas agrícolas já utilizem esse protocolo, parcela que tende a crescer. A Fendt, marca do grupo AGCO, já traz todos seus equipamentos dotados de ISOBUS. “Do ponto de vista de negócio, também é benéfico, pois oferecemos equipamentos que podem trabalhar com outras marcas. O agricultor tem mais liberdade”, avalia o executivo. Na opinião de Santos, a consolidação dessa plataforma é inevitável. “O mundo vai para um caminho no qual é praticamente impossível fazer tudo sozinho”, diz, acrescentando que o Brasil evolui em sintonia com o que ocorre globalmente.
O especialista de Marketing e Produto da PTx Trimble, Bruno Sartori, reforça essa ideia, dizendo já não haver delay entre o lançamento das novidades em outros países e por aqui. “Antes, existia a ideia de recebermos tecnologia que já era ultrapassada lá fora. Hoje é diferente, a democratização das soluções é muito mais rápida”, afirma.

Entre as vantagens do protocolo ISOBUS está o melhor aproveitamento da telemetria, que viabiliza a visualização e o processamento das informações em tempo real e permite acompanhar o desempenho dos equipamentos de qualquer lugar, além de gerenciar a manutenção preventiva, entre outras ações. Nesse ponto, a mudança de mentalidade do agricultor quanto ao uso da tecnologia faz muita diferença. “A telemetria não é um dedo-duro, mas uma ferramenta para mostrar se a máquina está entregando o que se espera, para dizer se o agricultor consegue extrair o máximo de seus equipamentos”, diz o especialista de Produto de Plantio e Semeadoras da Kuhn, Fabricio Crestani.
Esse avanço depende, no entanto, de uma conectividade mais abrangente e da maior disponibilidade de sinal de internet pelo País. Com isso, a vantagem será bem maior, sobretudo para grandes extensões. “Pensando em um talhão de longa distância, a exemplo de Mato Grosso, você nem vê o maquinário trabalhando. Muitas vezes, sabe onde está por causa da poeira que levanta”, diz Inamasu, da Embrapa.
Ainda que o protocolo ISOBUS em si não tenha dependência direta da internet, a conexão é essencial para a telemetria. Crestani é otimista quanto à abrangência da cobertura de sinal de banda larga, apesar da ampla extensão territorial do Brasil e de ainda haver muitas áreas isoladas, principalmente na Região Norte. “Têm aumentado os investimentos no segmento e as parcerias para fornecer conexão”, afirma o executivo da Kuhn, empresa que é membro fundadora do Competence Center ISOBUS (CCI).
O CCI foi criado em 2009, por diversos fabricantes, com o intuito desenvolver soluções inovadoras dedicadas ao protocolo ISOBUS, especificamente para o controle de equipamentos, como terminais e joysticks, além de softwares para automatizar funções via GPS, atendendo as demandas tecnológicas para a agricultura de precisão e o registro de trabalho.

Dispositivos como as antenas de GPS, essenciais para o processo de geolocalização e de automação, ganharam espaço também no processo de evolução do ISOBUS. “Temos pelo menos seis produtos que atendem as normas ISOBUS”, afirma o diretor de Engenharia para Agricultura na divisão de Autonomy & Positioning da Hexagon, Adriano Naspolini. As antenas de GPS são destaque entre os itens citados pelo executivo.
Segundo Naspolini, a Hexagon é uma das empresas que integram a iniciativa do conceito ISOBUS junto à AEF. “Temos muito engajamento em relação à tecnologia, inclusive com dois membros que participam diretamente das reuniões”, diz, destacando que a entidade já trabalha de forma intensa nos próximos temas relacionados ao uso desse protocolo. “O grupo está envolvido em definir quais são os limites da aplicação da autonomia nos veículos. Há um grau de dificuldade em relação à engenharia que uma empresa sozinha não seria capaz de resolver”, acrescenta. O desenvolvimento passa ainda pela integração das inteligências.
A Fendt e o Grupo AGCO têm estreita relação com a AEF, tanto que seus representantes acompanham de perto a entidade para entender a direção dos passos futuros. Santos lembra que algumas discussões em andamento podem, por exemplo, levar à automação total do maquinário. Outra pauta é o aumento da velocidade na comunicação. “Essa maior agilidade pode ser decisiva, por exemplo, no caso da necessidade de uma parada imediata da máquina, por causa de uma pedra ou um buraco”, afirma. Daí o avanço para o High Speed ISOBUS (HSI), conceito apresentado em 2022 que se encontra em estágio avançado de desenvolvimento, sendo inclusive implantado em sistemas agrícolas de última geração.
Um desafio considerável para o máximo aproveitamento dessa revolução tecnológica está na preparação da mão de obra, ou seja, na capacitação de quem vai lidar com tantas novidades. Sartori chama a atenção para a necessidade do equilíbrio entre o patamar tecnológico do maquinário da fazenda, o nível da complexidade dos processos e o potencial dos operadores. “É preciso investir bastante em treinamento”, diz o executivo da PTx Trimble. Se essa relação for tratada com a devida atenção, o desafio tende a se transformar em oportunidade – a começar pelo melhor desempenho, com resultados superiores na mesma área, o que se traduz em sustentabilidade da fazenda.
O avanço do ISOBUS pode ainda ampliar o mercado para novos profissionais e pequenas empresas. A existência de um padrão de comunicação aumenta as chances de uma fábrica menor de implementos, com pouca gente, colocar seus produtos em um cenário no qual grande parte está buscando a automatização. “Se uma nova startup decide fazer uma plantadeira com ferro dobrado, que é comum hoje, terá muito mais chances de conquistar mercado se tiver esse protocolo”, diz Naspolini. “Mesmo que compre a tecnologia de outra empresa.” Um ponto comum na opinião dos especialistas é o vasto horizonte para a expansão do ISOBUS, com saltos significativos nos próximos anos. E a quase obrigatoriedade de os profissionais do campo embarcarem nessa transição.

Outro ponto favorável é a relação entre o avanço tecnológico e as gerações de agricultores, conforme aponta o analista de Engenharia de Produtos da Kuhn, Guilherme Rodrigues e Silva: “Antigamente, o que mais se via era o agricultor operando suas máquinas, enquanto os filhos buscavam faculdades de engenharia para se tornarem desenvolvedores de tecnologia, com o intuito de estar um passo à frente. Hoje, esses jovens estão na hype de trabalhar com a engenharia na agricultura”.
Para o movimento ganhar mais força e velocidade, é preciso concentrar os esforços. O pesquisador da Embrapa Instrumentação aposta na construção de um centro nacional de inteligência sobre o ISOBUS como solução. “Seria importante a criação de um mutirão, um grupo que formasse um centro de pesquisa, junto com a academia e com investimento de empresas”, diz Inamasu. Segundo o especialista, esse passo conduziria à integração da gestão agronômica à operacional. Agilidade é uma variável importante nessa equação, porque a era da informação não pode esperar.





