Edição 38 - 05.10.23
Desenvolvidas para o trabalho no campo, as botas country foram incorporadas pela cultura pop e agora brilham até nas passarelas
Por André Sollitto
Elas estão nos pés de estrelas da música sertaneja, como Chitãozinho e Xororó, e de ícones da nova geração, como a cantora Ana Castela. Criadas como calçados de trabalho, as botas country, ou cowboy boots, como são conhecidas nos Estados Unidos, onde também são extremamente populares, há tempos deixaram o ambiente exclusivamente rural para se tornar um acessório de moda. Mais recentemente, passaram a ser reconhecidas como afirmação cultural, uma forma de retratar a conexão com o campo. Guardam, também, uma rica história que remete à expansão das fronteiras dos Estados Unidos, ao trabalho dos vaqueiros espanhóis e às tradições artesanais na confecção de calçados.
A origem das botas country é antiga. Ainda no século 16, os vaqueiros espanhóis adotaram modelos de cano alto e salto não pelo visual, mas pela praticidade e proteção que ofereciam. Além de resguardar os pés e as canelas de quem andava em regiões inóspitas, o salto facilitava a cavalgada graças ao encaixe no estribo. Depois, eles levaram os calçados para as Américas, onde foram incorporadas características locais. O hábito de usar as peles de animais nas botas, por exemplo, surgiu no norte do México. Originalmente, eram feitas de modo artesanal, mas a Revolução Industrial possibilitou que alguns modelos fossem produzidos em larga escala. É o caso das Wellington Boots, inspiradas em calçados de cavalaria, que depois dariam origem às modernas galochas de plástico.
Nos Estados Unidos, a partir do século 18, elas se tornaram o calçado oficial dos cowboys, os desbravadores que viajavam rumo ao oeste em busca de ouro e terras. Ideais para quem passava dias na sela dos cavalos, eram resistentes e ofereciam a proteção necessária. Sapateiros profissionais passaram a desenvolver técnicas para aprimorar a fabricação das botas, e nenhum local se destacou tanto na produção quanto o estado do Texas. Lá, imigrantes italianos que dominavam as técnicas relacionadas à confecção de sapatos sob medida e o manejo do couro encontraram um lucrativo negócio, com alta demanda. Hoje em dia, empresas centenárias, fundadas entre o final do século 19 e o início do século 20, continuam na ativa, como a Tony Lama e a Lucchese, ambas instaladas na cidade de El Paso, considerada a capital mundial das botas.
Com o passar do tempo, surgiram variações de altura do cano, além de versões com bicos quadrados, redondos, finos ou largos, e saltos maiores ou menores, a depender da necessidade do cliente. O uso de peles de animais e a realização de complexos entalhes no couro tornaram-se uma forma de mostrar o talento dos fabricantes e exibir poder econômico. O couro de canguru é muito resistente, assim como o de porco. Já o de crocodilo e o de jacaré são procurados pela textura, que confere às botas uma personalidade única. Búfalos também são requisitados pela qualidade do couro.
Embora continuassem a ser usadas para trabalhos no campo, as botas entraram no imaginário do público com a ajuda do cinema, que viu no Velho Oeste americano a oportunidade de fisgar audiência. Nas décadas de 1940 e 1950, filmes de faroeste estrelados por John Wayne (1907-1979) e Clint Eastwood criaram uma associação entre os calçados e a imagem dos cowboys durões. Entre as décadas de 1960 e 1970, o movimento hippie, que surgiu nos Estados Unidos e se espalhou por outras regiões do mundo, incorporou a bota como parte de sua mistura de estéticas diferentes. “Isso se potencializou na virada do milênio, quando todas as modas de todas as épocas e procedências começaram a se misturar”, afirma a stylist e consultora Manu Carvalho.
Nos últimos 20 anos, as botas country estiveram mais ou menos em evidência nas passarelas e nos pés das estrelas, e foram adotadas de vez pelo público feminino. Entre os homens, também se consolidaram como o único modelo com salto usado por públicos bastante variados. Atualmente, elas seguem em alta. Da cantora Gwen Stefani à socialite Kendall Jenner, famosas costumam ser fotografadas usando os modelos. No final do ano passado, a revista Vogue britânica elegeu a cowboy boot como a principal tendência de calçados de 2022. Até grifes importantes, como a Bottega Veneta, têm modelos inspirados na moda country. No Brasil, as atrizes Bruna Marquezine e Juliana Paes são algumas das adeptas dos modelos de cano alto. “As botas country cabem em qualquer situação casual”, afirma Manu Carvalho. “Só não vão funcionar em situações mais corporativas. A versatilidade é que garante a sua longevidade.”
Na música country e no sertanejo, elas sempre foram peça fundamental do visual das duplas, cantores e cantoras, assim como o chapéu e as calças jeans. Nos Estados Unidos, existem até linhas de botas assinadas por astros da música. Em junho, o cantor Chris Stapleton, vencedor de oito prêmios Grammy, lançou uma coleção em parceria com a tradicional fabricante Lucchese – os modelos são caros, custando até US$ 1.200 em versões mais caprichadas. Astros da música, como Willie Nelson, ou atores de Hollywood, como Tommy Lee Jones, mandam fazer modelos personalizados em oficinas especializadas, como a Texas Traditions, do artesão Lee Miller. Os valores por uma bota sob medida, com entalhes escolhidos pelo cliente e feitos à mão, começam em US$ 3 mil.
No Brasil, a afirmação da pujança do agro passa pela recuperação de símbolos associados à vida no campo e ao trabalho nas fazendas, como as botas. Assim, elas tornaram-se orgulhosos lembretes da conexão com o trabalho agrícola, ao mesmo tempo que transcendem esse universo. Um trecho da música Welcome to the Mato, sucesso na voz de Marco Brasil Filho, traduz a onipresença do calçado: “Peguei o meu chapéu e a minha bota/E não foi pra trabalhar”.