O MILAGRE DO TRIGO

Por Lívia Andrade Com forte investimento em pesquisa e introdução de novas cultivares, Brasil con


Edição 37 - 30.06.23

Por Lívia Andrade

Com forte investimento em pesquisa e introdução de novas cultivares, Brasil consegue domar o grão e adaptá-lo para o clima tropical

A primeira quinzena de maio é época de plantio do trigo de inverno no Planalto Central, uma região no Cerrado brasileiro situada a 800 metros de altitude, com dias quentes e noites frias. É lá que fica a Fazenda São Nicolau, propriedade de Paulo Bonato, situada na cidade de Cristalina (GO). Em 2021, o gaúcho tornou-se recordista mundial na produção de trigo (em quilos/dia por hectare) com 80,9 kg/dia/ha. Numa área irrigada de 51 hectares, a produção somou 9.630 kg por hectare, o equivalente a 160,5 sacas, produzidas em 119 dias. “Esta é a vantagem da nossa agricultura tropical”, diz Paulo Bonato.  “Conseguimos encaixar o trigo na rotação de culturas e plantar na mesma área três lavouras por ano.”

O feito só foi possível graças a muita ciência aplicada, desenvolvida pela Embrapa desde a sua criação, na década de 1970. A empresa sempre acreditou ser possível a produção de trigo com qualidade no Cerrado e vem conduzindo trabalhos de pesquisa tanto para a obtenção de novas cultivares quanto para o manejo agrícola. “Nos anos 1980, junto com a Embrapa Trigo, trouxemos cultivares específicas para o calor em parceria com o Centro Internacional de Melhoramento de Trigo do México”, diz o pesquisador Júlio Albrecht, especialista em melhoramento genético da Embrapa Cerrados.

Naquela década, os primeiros trigos lançados pela empresa tinham uma produtividade em torno de 1.500 kg/ha no sequeiro e cerca de 5.000 kg/ha no irrigado. De lá para cá, a seleção continuou e, nos anos 2000, a Embrapa colocou no mercado as cultivares BRS 264 – que garantiu a Bonato o recorde mundial – e BRS 254, ambas para culturas irrigadas. Em 2017, a empresa lançou a BRS 404 para plantios de sequeiro. “A produtividade média das nossas cultivares de trigo irrigado está em torno de 6.000 kg/ha, mas pode ultrapassar 9.500 kg/ha em produtores que usam alta tecnologia”, diz Albrecht. “No trigo safrinha, produzido no sequeiro, está em torno de 2.000 kg/ha, porque depende das condições climáticas. O pesquisador lembra que a média nacional gira em torno de 3.000 kg/ha. “Portanto, a média do Cerrado está bem mais alta do que a nacional”, ressalta.

Não por acaso, Celso Moretti, que esteve na presidência da Embrapa até fevereiro de 2023, insistia que, em cinco anos, o Brasil poderia se tornar autossuficiente na produção do cereal, uma das poucas commodities agrícolas que o País importa. O mercado doméstico do Brasil consome em torno de 12 e 13 milhões de toneladas de trigo por ano. De acordo com dados da consultoria Safras & Mercados, tirando os últimos dois anos (2021 e 2022), a produção nacional girava em torno de 6 milhões de toneladas. “Em 2021, o Brasil colheu 7,7 milhões de toneladas do cereal e, no ano passado, alcançou 11,2 milhões”, afirma Elcio Bento, especialista do mercado de trigo da Safras & Mercados.

O aumento foi motivado pela guerra entre Rússia e Ucrânia, que estão entre os cinco maiores produtores de trigo do mundo. “Os preços da tonelada chegaram a R$ 2.300 e agora acomodaram em R$ 1.350, mas a média dos últimos cinco anos estava abaixo de R$ 1.000”, diz Bento. Outros fatores também contribuíram: no ano passado, a Argentina – um dos principais fornecedores de trigo do Brasil – esperava colher 20 milhões de toneladas, mas teve uma quebra de safra e contabilizou apenas 11,7 milhões. Além disso, é preciso considerar o efeito câmbio. “O dólar acima de R$ 5 favorece a exportação e dificulta a importação, estimulando assim o plantio”, afirma o consultor.

Afinal, até onde a produção de trigo no Cerrado poderá chegar? Segundo previsões, o Brasil deverá colher 12,4 milhões de toneladas em 2023 – 817 mil delas serão produzidas no Cerrado. “A região tem plantado em torno de 250 mil hectares, somando trigo sequeiro e trigo irrigado”, afirma Júlio Albrecht, da Embrapa. “Ainda é uma área pequena, mas temos potencial para produzir até 3 milhões de hectares. Acredito que a autossuficiência de trigo do Brasil passa pela região do Cerrado à medida que lançarmos cultivares mais resistentes a doenças e mais tolerantes à seca. Albrecht acha que, em breve, o Cerrado deverá chegar a 1 milhão de hectares, o que vai contribuir para reduzir as divisas gastas pelo Brasil com a importação de trigo.”

Entre todos os especialistas e agricultores consultados pela reportagem, há uma unanimidade: é inquestionável o potencial agronômico do trigo no Cerrado. “A cultura traz melhorias no solo e uma série de benefícios para as lavouras seguintes, como o aumento de produtividade”, diz José Guilherme Brenner, produtor de trigo sequeiro no Distrito Federal e presidente da Coopa-DF, uma cooperativa com 190 cooperados – cerca de 40 deles plantam trigo no Planalto Central. “O trigo entra na rotação de cultura, numa janela em que você não consegue plantar o milho”, diz Brenner. “Ele condiciona o solo e consegue controlar bem as plantas invasoras, como o capim-amargoso e o capim-maçambará.”

O potencial agronômico não é o único benefício do trigo no Cerrado. Outro aspecto a se destacar é a condição climática. “Nós colhemos no período de seca, enquanto o Sul colhe na temporada de chuvas”, diz o pesquisador da Embrapa Cerrados. Os gaúchos costumam ter problemas com as micotoxinas, como são chamados os compostos químicos produzidos por fungos, por causa do excesso de tormentas. Por sua vez, a sequidão do Centro-Oeste na colheita estimula a qualidade do trigo, principalmente para panificação. A época da colheita é mais um aspecto favorável. “O trigo safrinha do Cerrado é um dos primeiros a ser colhido no Brasil: iniciamos a colheita em junho e, em agosto, começados a colher o irrigado”, afirma Albrecht. “São épocas em que os moinhos estão desabastecidos, então os produtores conseguem melhores preços no mercado brasileiro.”

Alguns analistas, contudo, consideram o otimismo exagerado. Eles lembram que há uma situação de preços internacionais elevados. “Será preciso ver se o aumento de plantio continuará quando os preços voltarem ao seu leito normal”, pondera o consultor Elcio Bento. Há ainda outras questões, como o custo Brasil. “O trigo que vem da Argentina para São Paulo pelo mar tem um preço mais competitivo em relação ao que vem do Cerrado, via transporte rodoviário. Além disso, há o entrave do ICMS. Seria preciso ter algum incentivo tributário para tirar o trigo do Cerrado e colocá-lo de forma competitiva em outras regiões.”

Para Rubens Barbosa, presidente executivo da Associação Brasileira da Indústria do Trigo (Abitrigo) e ex-embaixador do Brasil em Londres, é preciso definir melhor a questão da autossuficiência. “Segundo a Embrapa, a nossa produção vai dobrar, de 10 milhões de toneladas para 20 milhões de toneladas nos próximos anos”, diz. “Se isso ocorrer, será muito importante, porque o Brasil se tornará um produtor razoável, do tamanho da Argentina na produção de trigo.” Barbosa prossegue: “Vamos ter trigo numa quantidade maior do que consumimos, mas isso não quer dizer que não tenhamos de comprar o grão para complementar a produção interna”. Isso ocorrerá, diz ele, por causa do nível das exportações e da utilização do produto para outras finalidades.

Atualmente, há uma diversificação da demanda por trigo no Brasil. Parte do cereal vai para a produção de farinha, outra porcentagem segue para ração animal e o restante tem como destino a exportação. No ano passado, 3 milhões de toneladas de trigo nacional foram enviadas ao exterior. Levando em consideração a dimensão continental do Brasil, as exportações e importações deverão continuar ocorrendo. “Por causa de nossas distâncias, para o Nordeste é mais econômico importar trigo dos Estados Unidos do que importar da Argentina ou trazer do Rio Grande do Sul”, pondera Barbosa.  Além disso, a partir do próximo ano, o Brasil terá uma nova destinação para o trigo. A BSBIOS, uma empresa voltada à produção de biocombustíveis renováveis, deverá inaugurar a primeira usina de etanol de trigo no Rio Grande do Sul. “A ideia da companhia é operar três plantas industriais para fazer etanol, que demandarão 750 mil toneladas do grão.”

Os produtores de trigo no Cerrado deveriam se inspirar na notável trajetória do algodão. Até a década de 1970, o Brasil foi um grande produtor da pluma, mas, com a chegada da praga bicudo, viu a área plantada cair drasticamente. Na década de 1990, com a abertura econômica, o Brasil se tornou um dos maiores importadores de algodão. Graças ao trabalho de empresas de pesquisa, como a Embrapa, investimentos em novas tecnologias e expansão da cultura para o Centro-Oeste, o Brasil se tornou o segundo maior produtor mundial, só atrás dos Estados Unidos.

Para os especialistas, o Brasil poderia repetir essa trajetória com a ampliação da área cultivada do trigo no Cerrado. Na balança, há três aspectos a favor da região. O primeiro deles é o fato de a Embrapa Cerrados e outras empresas de sementes, como Biotrigo e BR Sementes, estarem focadas no melhoramento genético para o desenvolvimento de cultivares mais resistentes ao calor e a doenças, como a brusone, muito comum no trigo sequeiro. O segundo fator é igualmente relevante: o Centro-Oeste é um importante mercado consumidor de farinha de trigo e, se começar a ter uma produção constante do cereal, deverá atrair novas indústrias. Um terceiro ponto a se considerar é a busca por sustentabilidade. O trigo, afinal, ajuda a melhorar o solo e auxilia no combate de ervas daninhas.

Não faltam bons exemplos dentro das porteiras. Um dos mais emblemáticos é o do produtor gaúcho Paulo Bonato, que começou a produzir trigo irrigado no Cerrado em 1994 e, desde então, vem quebrando marcas históricas. Em 2021, Bonato produziu 160,5 sacas de trigo em 119 dias, o que rendeu a ele o recorde mundial, com 80,9 quilos de trigo/ha/dia, superando produtores da Nova Zelândia, que atingiram 54,8 kg/ha/dia. Em termos de eficiência produtiva, o Brasil é imbatível e tem a vantagem de poder utilizar a mesma área para outras duas safras.

Produtor de soja, milho, sorgo e trigo, Bonato planta anualmente 1.000 hectares de grãos – o trigo entra na rotação de culturas. O segredo do alto rendimento está na escolha da cultivar, manejo e gestão acurada. “Em qualquer área de atuação, para ter boa performance é preciso estar embasado por muita tecnologia”, diz Bonato. A área destinada ao cereal vai depender do tamanho do pivô, mas geralmente é algo em torno de 200 hectares. Da semeadura à colheita, tudo é monitorado. “Eu tenho sondas de solo que dizem o momento exato de irrigar e a quantidade de água”, diz o agricultor. “E ainda monitoro tudo isso pelo celular.”

Outro ponto favorável ao trigo no Cerrado é que muitos moinhos estão com capacidade ociosa. Se houver trigo numa região próxima, essas indústrias deverão absorver a produção. Mas há obstáculos a serem superados. Um deles é a questão da armazenagem. Em geral, quando o trigo do Cerrado é colhido, os silos ainda estão com soja ou milho da safra verão, o que gera uma sobreoferta momentânea do cereal, prejudicando o preço pago ao produtor. No entanto, não há dúvida: com planejamento e políticas de incentivo, o Brasil poderá se tornar protagonista do mercado mundial de trigo.