Edição 4 - 15.10.17
Por Felipe Kleiman
Consultor especialista em abate e certificação Kosher
Investir na produção Kosher pode representar uma excelente estratégia para a indústria de carne brasileira no gerenciamento da crise de confiança pela qual estamos passando. Os alimentos Kosher detêm uma sólida reputação em todo o mundo por serem alimentos confiáveis, produzidos sob fortes critérios e controles de ordem religiosa. O cumprimento desse conjunto de normas transmite segurança ao consumidor em quesitos de qualidade, idoneidade e segurança alimentar.
acordo com as leis alimentares judaicas mostra números importantes. Nos Estados Unidos, esse segmento tem merecido a atenção de grandes corporações, devido ao seu crescimento consistente nas últimas décadas. A princípio, porque que tem a maior população judaica do mundo, depois de Israel. Mas basta examinar os dados estatísticos para perceber que o consumo Kosher transcende numericamente os membros da religião judaica nos Estados Unidos. Estima-se que o número de consumidores Kosher americanos que são observantes da Lei Judaica não ultrapasse 8% dos 14,5 milhões de consumidores Kosher habituais. Qualidade é a motivação de 62% do total de consumidores. O valor dessa demanda é de quase US$ 15 bilhões anuais, só nos Estados Unidos. Pesquisas apontam que 21% dos americanos consomem algum alimento Kosher por causa desse selo. Os 200 mil alimentos disponíveis nos pontos de venda têm valor de mercado de US$ 150 bilhões anuais, e a cada ano são lançados 9 mil novos produtos – três vezes mais que o número de alimentos orgânicos. Esses dados se referem a todos os alimentos certificados Kosher, industrializados em geral, incluindo carnes e derivados.
“A indústria que adotar um posicionamento ativo no segmento Kosher vai demonstrar ao mercado global a sua disposição à mudança”
Esses produtos Kosher têm grande apelo de público fora dos limites das comunidades judaicas americanas. Sanduíche de pastrami quente (tipicamente judeu) e hot dog Kosher são ícones da cultura gastronômica nova-iorquina, assim como de boa parte do país. Uma das grandes fábricas de salsichas Kosher dos Estados Unidos foi fundada em Nova Iorque por imigrantes judeus há mais de cem anos e hoje pertence a um grupo americano de indústrias de alimentos, de capital aberto, que fatura US$ 11,6 bilhões ao ano. Essa marca cobre todo o país, e 80% do público que consome anualmente mais de 100 milhões de salsichas produzidas por essa marca não é composto por judeus. Como diz o professor José Luiz Tejon, “isso explode alguns mitos”. Primeiro, mostra que alimentos Kosher não são necessariamente destinados a consumidores judeus. Segundo, prova que não é necessário ser judeu para ter um negócio de alimentos Kosher. Terceiro, mostra que uma certificação como essa pode entregar benefícios adicionais à conformidade religiosa.
A garantia de conformidade Kosher cabe às entidades certificadoras judaicas, e não ao dono da fábrica. Essas agências de certificação têm suas equipes de rabinos para atuar onde for necessário no processo produtivo, em qualquer parte do mundo. O controle religioso de um órgão independente contempla diretamente a demanda do consumidor – não religioso – por confiança e garantia da idoneidade do produto.
Na minha recente missão aos Estados Unidos, me reuni com os principais executivos do ramo da carne e embutidos Kosher, além de pesquisadores, rabinos e diretores de algumas das maiores certificadoras de alimentos Kosher. Alguns ainda não sabiam que estamos habilitados a exportar carne in natura. Outros olhavam incrédulos para os dados que eu lhes mostrava no relatório estratégico que produzi para essa missão, com mais de 130 páginas, em inglês. O capítulo intitulado “The Brazilian Beef Miracle” mostra dados como o volume e os destinos das exportações, e a evolução da pecuária brasileira e da indústria da carne nos últimos 50 anos. A missão resultou em alguns clientes potenciais dispostos a fazer negócios conosco e outros que podem se tornar mais receptivos diante de certas variáveis, como um eventual desarranjo da relação EUA-México a ponto de gerar uma suspensão da importação de carne Kosher do México.
O gado brasileiro tem um diferencial competitivo no abate Kosher: a porcentagem de aproveitamento de animais abatidos é muito maior do que nos Estados Unidos e no Uruguai. Estima-se que o volume daquele mercado é de 60 mil toneladas anuais. É crescente a dificuldade de abastecimento interno em função do perfil predominante de abatedouros cada vez maiores. A demanda por carne Kosher importada tende a seguir crescendo. Há pouco mais de uma década não havia importação Kosher do Uruguai e do México. Hoje há vários frigoríficos desses dois países exportando para os americanos.
O desafio de viabilizar a exportação de carne Kosher para os Estados Unidos demanda do frigorífico uma mobilização vertical da produção, independentemente do cliente, que ofereça um produto de valor agregado e conveniência, nas especificações comerciais, com a certificação Kosher, tudo incluso. O potencial cliente americano quer comprar apenas os cortes que lhe interessam, entregues na porta. E paga por isso. O importador israelense, ao contrário, normalmente se encarrega da equipe de rabinos e da certificação, e leva o mix completo do dianteiro casado, filé-mignon, contrafilé e alguns miúdos.
Redesenhar o modelo das operações Kosher no Brasil gera resultados mais abrangentes para os frigoríficos do que apenas viabilizar o acesso a novos mercados, como o americano. Esse novo modelo consiste em assumir o protagonismo nas operações Kosher – no volume que seja – e, assim, incorporar à cultura e governança da empresa a respeitada compliance que a carne Kosher possui. Estar alinhado a isso representa um importante ganho de reputação.
A credibilidade do alimento Kosher pode gerar grande valor para a indústria de carne brasileira, ao dotá-la com o atributo mais desejável de todos os tempos: confiança. Há um inconteste potencial de fortalecimento de marcas que construam vínculo institucional com a certificação Kosher.
No contexto atual, esse desafio comercial pode virar uma valiosa estratégia das indústrias de carne brasileiras para ajudar a gerenciar a crise de credibilidade gerada recentemente. A indústria que adotar um posicionamento ativo no segmento Kosher vai demonstrar ao mercado global a sua disposição à mudança, por explorar caminhos próprios nesse que é um dos sistemas de acreditação mais respeitados do mundo.
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