O desafio da virada

O desafio da virada Tudo indica que o agronegócio brasileiro seguirá em ritmo de expansão em 2023


24.02.23

O desafio da virada

Tudo indica que o agronegócio brasileiro seguirá em ritmo de expansão em 2023. Mas, para garantir o vigor de suas raízes e a colheita farta, será necessário acompanhar, ou até superar, o ritmo das transformações que ocorrem dentro e fora do País

 

Por Romualdo Venâncio

 

Um olho no campo e outro na geopolítica internacional. Assim deve ser o início de 2023 para o agronegócio brasileiro. E é só o começo. Os olhares também precisam estar voltados a diversos outros pontos: o clima, as questões ambientais, as movimentações econômicas e financeiras do mercado global, cada passo do novo governo, o poder de compra e os hábitos dos consumidores. Ou seja, como o gigante Argos, da mitologia grega, o setor vai precisar ter centenas de olhos para monitorar todas as questões que impactam seu desenvolvimento. A boa notícia é que há capacidade para isso e o Brasil tem potencial para liderar algumas das principais pautas mundiais, como sustentabilidade e segurança alimentar. 

Quando se fala em perspectivas para o agronegócio nacional no próximo ano, a geopolítica mundial aparece entre os trending topics. Mas não necessariamente de uma forma positiva. Ao final de fevereiro próximo, caso não ocorra alguma mudança significativa na atual situação do Leste Europeu, a guerra entre Rússia e Ucrânia completará um ano. E a persistência do embate aumenta o risco de o problema se ampliar. Segundo o diretor do Departamento de Energia e Agronegócio do Ministério das Relações Exteriores, o embaixador Alexandre Peña Ghisleni, é uma aposta de risco afirmar que a paz está sendo retomada. “Essa guerra não está resolvida, pode se estender e o fator mais relevante para nós é o impacto internacional”, afirmou Ghisleni durante o evento Perspectivas para o Agro 2023/2026, realizado pela Sociedade Rural Brasileira (SRB) no início de dezembro. 

O embaixador alerta para os efeitos colaterais das consequências desse confronto, como sanções à Rússia, a exemplo do que ocorreu com a Bielorrússia em 2020. “A Rússia é o maior exportador mundial de gás, segundo maior de petróleo e terceiro de carvão. Se for retirada do mercado, o abastecimento de energia será abalado”, disse. Segundo Ghisleni, o mercado internacional de energia pode se autorregular e estabilizar o fornecimento, “mas o tempo de maturação de investimentos é de cinco anos”. Tal cenário agravaria ainda mais a elevação dos preços globais, com reflexos diretos sobre os custos de produção por aqui.

Como grande exportador que é, o agronegócio brasileiro sofre influência direta de tais movimentações, até porque o mundo está diante de uma nova característica geopolítica e uma nova dinâmica macroeconômica. É o que destaca a sócia e líder para os mercados do agronegócio da KPMG, Giovana Araújo: “Não é mais uma questão pontual”. A antes tão desejada globalização agora vai perdendo espaço para uma revisão das cadeias locais, seja por meio de uma visão de Estado, seja pela ótica do setor privado, com o intuito de reduzir a dependência de insumos importados, como é o caso dos fertilizantes. No Brasil, por exemplo, cerca de 90% dos adubos vêm de outros países. “O País não vai zerar essa dependência, mas pode mitigá-la com produção própria e associação dos produtos químicos com biológicos”, afirmou Giovana. 

Para a ex-ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Tereza Cristina, a questão dos fertilizantes deve ser tratada como pauta de segurança alimentar, e em âmbito global. “Não pode sofrer sanções. A própria ONU [Organização das Nações Unidas] aderiu a esse conceito”, disse a agora senadora eleita por Mato Grosso do Sul, que tem planos de integrar a Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado. Tereza Cristina defende que o Brasil siga com a execução do Plano Nacional de Fertilizantes, “pois é um projeto de Estado e não de governo”. 

 

NOVA DIREÇÃO 

É impossível falar em perspectivas sem considerar a troca de comando no governo federal e a escolha das equipes ministeriais, que ainda não havia sido anunciada pelo presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, até o fechamento desta edição. Considerando-se que boa parte do agronegócio apoiou a reeleição de Jair Bolsonaro, é natural que exista apreensão quanto a essa transição. A sensação era semelhante em 2003, quando Lula assumiu o cargo pela primeira vez, mas os humores mudaram assim que Roberto Rodrigues foi convidado para conduzir o Mapa. Desta vez, essa transformação começou a ocorrer pelo cenário internacional, exatamente em pontos cruciais para o agronegócio, como as cobranças globais sobre sustentabilidade. “A presença do presidente eleito na COP 27, inclusive cobrando os compromissos assumidos por diferentes nações, deixa muito clara a tônica de posicionar o Brasil como protagonista mundial dessa agenda do meio ambiente”, disse Giovana Araújo, da KPMG. 

O novo governo pode ter uma grande oportunidade de alterar a posição do Brasil nesse debate global sobre preservação ambiental e mudanças climáticas. Atualmente, o principal alvo do questionamento de importantes players mundiais sobre o País é o desmatamento. Segundo dados do Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD) do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), entre janeiro e outubro de 2022, foram desmatados 9.696 km2 na Amazônia, área bem próxima dos 9.742 km2 registrados em 2021. No ano anterior, esse índice foi 7.298 km2.

Para o coordenador do Insper Agro Global e Núcleo Agro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), Marcos Jank, o País pode sair da mira da cobrança e abrir novas portas de negociações. “Temos uma chance de colocar o debate em outro nível. Podemos falar de clima não só pelo lado negativo do desmatamento, mas pelo lado positivo dos mercados de carbono”, afirmou. O Brasil já vem avançando nessa transição para uma economia de baixo carbono, mas precisa ganhar velocidade e relevância, movimento que também demanda investimentos e organização. 

Na opinião de Giovana Araújo, o agro brasileiro tem um potencial enorme de sequestro de carbono, valorizado por iniciativas como o Plano ABC+, que integra o sistema de Integração-Lavoura-Pecuária-Floresta (ILPF). “E ainda há um valor escondido, que é o carbono armazenado no solo. Isso já é mensurável, mas ainda não reconhecido internacionalmente”, disse a executiva da KPMG. “Temos de avançar com tecnologias que mensurem e comprovem esse ganho, que sirvam como uma certificação desse armazenamento para conquistar valorização.”

Um bom desafio para o novo governo, aproveitando o diálogo já aberto pelo presidente eleito com países da União Europeia, por exemplo, é acertar a sintonia sobre a definição de desmatamento ilegal, que é crime, e o desmatamento permitido por lei. Esse diálogo é urgente, pois o sarrafo das exigências internacionais está subindo. O embaixador Alexandre Ghisleni chama a atenção para a nova lei da União Europeia que impede a compra de commodities como soja, café, cacau, madeira, produtos pecuários, entre outras, cuja produção esteja relacionada a desmatamento. E a legislação será retroativa para a partir de dezembro de 2020. “Assim que for publicada, o que deve acontecer antes de março de 2023, também deve sair a lei britânica na mesma linha”, afirmou. “E os Estados Unidos já abriram consulta pública sobre uma lei semelhante.”

 

PRODUÇÃO

Para agricultores e pecuaristas, tão importante quanto acompanhar as definições dessas questões mercadológicas é garantir a máxima eficiência de lavouras e rebanhos. Do lado agrícola, a perspectiva para a safra 2022/23 é de superar as 300 milhões de toneladas de grãos. O segundo levantamento de safra da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), realizado em novembro, aponta para uma produção total de 313 milhões de toneladas, volume 15,5% maior do que o que foi colhido na safra anterior (271 milhões de toneladas). Na mesma comparação, a área plantada cresce 3,2%, passando de 74,4 milhões de hectares para mais de 76,8 milhões de hectares.

De maneira geral, o desempenho dependerá das condições climáticas. A safra passada apresentou um grande desafio nesse campo, por conta do La Niña e de enchentes. Na Região Sul e em Mato Grosso do Sul, houve prejuízo de R$ 83 bilhões nas lavouras de milho e soja, segundo dados da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). O sinal de alerta permanece em 2023. “Para o ano que vem, de novo o fator preponderante é o clima, e há sinais amarelos em relação ao sul do País”, disse o sócio da consultoria MB Agro, José Carlos Hausknecht, ao Broadcast Agro do Grupo Estado. “É cedo para falar, mas é difícil imaginar um ano de La Niña sem perdas na produção.” 

Outra preocupação que deve persistir para o próximo ano é o custo de produção. Em 2022 já foi um dos maiores dos últimos anos, conforme análise da CNA. Segundo o diretor técnico da entidade, Bruno Lucchi, os insumos comprados no início e no meio do ano, para as culturas de soja, milho e trigo, tiveram aumento acima de 40%. A soja, ainda a principal commodity agrícola do Brasil, pode ter esse impacto amenizado pelo volume, pois a estimativa é de que a produção passe de 153,5 milhões de toneladas na safra 2022/23, evolução de 22,3% sobre o período anterior.  

No caso do milho e do trigo, o peso do custo de produção pode ser suavizado pelas possibilidades de crescimento de ambos. O milho já vinha se transformando no grão de ouro com o expressivo avanço da segunda safra – que já não cabe mais chamar de safrinha, pois representa 76% do total – e ficou ainda mais valorizado com a produção de biocombustível e a abertura da exportação para a China. “O Brasil virou um grande player internacional com os chineses podendo comprar nosso milho. Essa cultura vai crescer ainda mais”, afirmou Tereza Cristina. A ex-ministra deixa, inclusive, uma sugestão para equilibrar o abastecimento do mercado interno, ao menos para a alimentação animal. “Eu já falava muito sobre a produção do sorgo, e agora pode se tornar nosso ‘milho caseiro’ para exportarmos o milho de fato.”

A pecuária vai mesmo precisar de alternativas, pois também registrou custo mais elevado. “Principalmente na suinocultura, que teve aumento de produção, mas queda de consumo no mundo”, disse Bruno Lucchi. A cadeia produtiva de carne bovina passa por uma virada de ciclo que pode espremer as margens de lucratividade do setor. O crescimento no abate de fêmeas em 2022, com provável continuidade no ano que vem, deve aumentar a oferta de cortes no mercado e, por consequência, reduzir o valor da arroba. 

 

< BOX >

FOGO AMIGO

O agronegócio vai começar 2023 pagando mais impostos no estado de Goiás. O governador Ronaldo Caiado, reeleito com o apoio do setor, passou a ser contestado e até confrontado por produtores goianos após a aprovação, no dia 23 de novembro, da lei que implementa a “taxação do agro” e passa a valer em 1º de janeiro. Trata-se de uma “contribuição” de até 1,65% sobre produtos do setor e a meta é arrecadar R$ 1 bilhão por ano, recursos que serão investidos em infraestrutura. 

Para o advogado tributarista e sócio do escritório Ferraz de Camargo e Matsunaga (FCAM), Gabriel Hercos, essa taxação cria insegurança jurídica para o setor, pois sinaliza que as regras do jogo podem ser alteradas com o jogo em andamento. Além de elevar os custos de produção, ainda pode reduzir o interesse de investidores estrangeiros. 

 

< BOX, INFO OU TABELA >

Projeções econômicas para 2023

PIB Brasil 0,75%

PIB Agronegócio 0% e 2,5%

Inflação 5,08%

Taxa Selic 11,75%

Câmbio R$/USD 5,25

Consumo das Famílias 0,8%

VBP Total 1,1%

VBP Agrícola 2,8%

VBP Pecuária -2,3%

Fonte: CNA

 

< TABELA >

Projeções de consumo para 2023

Mundo Países em Países 

desenvolvimento desenvolvidos

Trigo -0,17% 66,1% 33,9%

Milho 1,04% 60,4% 39,6%

Soja 1,37% 73,8% 26,2%

Carne bovina 0,98% 58,8% 41,2%

Carne de aves 1,29% 63,4% 36,6%

Carne suína 2,17% 66,0% 34,0%

Biocombustíveis 0,00% 46,2% 53,8%

Fonte: CNA