17.10.22
Carregadas de histórias
Colecionadores recuperam parte da memória do campo com a restauração de picapes que marcaram época no Brasil
Por Irineu Guarnier Filho
Fotos: Eduardo Scaravaglione
Nos Estados Unidos, o carro mais vendido há décadas é a musculosa picape Ford F-150 (que está vindo para cá). No Brasil, uma picape menor, a Fiat Strada, também tem frequentado com assiduidade a liderança no ranking dos veículos mais comercializados. E, a cada ano, novos modelos são anunciados, em milionárias campanhas publicitárias, pelas montadoras. Com ou sem crise, o mercado para esse tipo de veículo tem se mantido bastante acelerado. O que comprova que as picapes caíram definitivamente no gosto dos brasileiros – do campo e das cidades.
Nas últimas décadas, os veículos espartanos de outrora se transformaram em automóveis de luxo, utilizados largamente também nas grandes capitais do País. Versáteis, as caminhonetes com caçamba atuais tanto podem carregar insumos agrícolas para as fazendas durante a semana e levar seus proprietários à missa aos domingos como conduzir famílias urbanas inteiras ao shopping.
Ferramenta imprescindível na lida do campo, as picapes tiveram forte protagonismo no desenvolvimento do agronegócio brasileiro. Robustas, projetadas para enfrentar lama, calor intenso, poeira, estradas precárias e transportar cargas pesadas (com pouca manutenção), as valentes picapes ajudaram a desbravar novas fronteiras agrícolas e têm levado a civilização e o desenvolvimento econômico a regiões remotas do Brasil desde os anos 1950. O País deve muito a essas guerreiras.
Não por acaso, uma legião de antigomobilistas brasileiros – ligados ou não ao agro – se dedica, atualmente, a preservar modelos icônicos do segmento, que marcaram época na paisagem rural brasileira. A nostalgia do campo, mesmo entre aqueles que já nasceram nas grandes cidades, se manifesta na proliferação de clubes de colecionadores de picapes por todo o País, nas redes sociais e nos encontros de veículos clássicos, eventos em que as caminhonetes atraem um público ávido por saber um pouco mais sobre a vida agropastoril de antigamente.
Os colecionadores
Dono de um pequeno criatório de cavalos crioulos em Guaíba, na região metropolitana de Porto Alegre, o empresário Cézar Augusto Maciel viveu a infância cercado por picapes. Seu pai era dono de uma oficina mecânica na pequena cidade de economia agropecuária e muitos de seus clientes eram ruralistas. Menino, brincava de “dirigir” as “possantes” em manutenção na oficina paterna.
Desde então, Maciel acalentava o sonho de possuir uma Chevrolet C10 – ícone rural dos anos 1970. O desejo se realizou em 2021, com a compra de um vistoso modelo 1974 marrom de seis cilindros em linha. “O avô de um dos meus amigos tinha uma C10 e sempre gostei muito delas. Trouxe para a vida adulta esta paixão pelo design, pela motorização robusta e pelo conforto da suspensão”, conta.
Diretor do Veteran Car Club do Brasil-RS, e integrante do Clube da C10 no Facebook, Maciel adquiriu o veículo já restaurado. Precisou apenas melhorar a parte mecânica, refazendo freios e ajustando o motor e a suspensão. “Não tive dificuldade para encontrar peças. O mercado ainda dispõe de muita oferta de componentes e tenho um mecânico, que já me atendia em outros carros antigos, que conhece a C10 e faz uma excelente manutenção.”
Paixão de criança. Assim o especialista em desenvolvimento de produtos Telmo Ricardo Wollmann, filho de produtores rurais em Cachoeira do Sul, na região central do Rio Grande do Sul, define o seu gosto por picapes. O avô teve uma Ford F1 “Woody” (parte da carroceria de madeira) americana nas cores amarela e creme que encantava o menino. Trocou por uma Chevrolet Brasil cabine dupla com quatro faróis. Depois, seu pai comprou uma F100 1962 “saia e blusa” (pintura em duas cores) – que agora pertence a ele.
A paixão pelas grandalhonas vem de longe, como se vê. “Adoro picapes pelo seu tamanho, pelo ronco do motor V8 e pelo cheirinho característico que têm até hoje. Depois da restauração, a F100 do meu pai ficou exatamente igual ao que era quando nova. Hoje temos mais uma C10 1974, que ainda está na fazenda para ser restaurada.”
E qual é a sensação de dirigir um veículo dos anos 1960 pelas ruas congestionadas de Porto Alegre, onde Wollmann vive hoje? “É muito divertido. No para e arranca do trânsito, chega a ser emocionante. As perguntas sempre aparecem: qual o ano? Gasta muito? Não vende, né? Meu vô tinha uma ‘Chevrolet’ dessas…”
Desde zero-quilômetro na família, a Ford F75 1976 do colecionador argentino radicado no Brasil Rodrigo Ruiz está, como todos os seus carros, em estado impecável. “Era a que tinha o melhor custo/benefício em sua época”, lembra o empresário, que a utilizou por muito tempo em sua transportadora e para abastecer uma propriedade rural em Tapes, a 126 quilômetros de Porto Alegre. Apesar de pegar no pesado regularmente, a picape da Ford sempre recebeu manutenção semelhante à dispensada aos reluzentes clássicos de sua coleção. “É muito fácil mantê-la. Ainda se encontram peças para ela”, diz Ruiz.
Com mecânica simples e resistente, e o carinho com que são tratadas por seus proprietários, essas relíquias dos primeiros tempos do agronegócio brasileiro certamente ainda vão muito longe. Mas, agora, merecidamente aposentadas do trabalho duro, sem precisar sacolejar por estradas esburacadas, transportar tonéis “nas costas” e atravessar atoleiros.
As picapes
As picapes desta reportagem estão entre as principais representantes do segmento entre 1960 e 1980. Eram o que de melhor a indústria automobilística brasileira produzia na época – e o sonho de consumo de qualquer produtor rural. Derivadas de modelos norte-americanos, foram tropicalizadas e adaptadas às difíceis condições rodoviárias brasileiras do período. Não tinham nenhum luxo. O design era simples e funcional (mas fica mais bonito a cada ano que passa). E mesmo a mecânica era bastante rudimentar. Contudo, foram as ferramentas certas para as necessidades do interior do Brasil de então.
“Trabalho não precisa ser sacrifício para ninguém.” Com este slogan, a General Motors do Brasil começou a vender a Chevrolet C10 em 1974, em substituição às antigas C14 e C15, lançadas dez anos antes. Com motor a gasolina de seis cilindros em linha, que gerava 151 cv, e suspensão traseira mais moderna, transportava até 1 tonelada de carga. Sucesso na época, podia vir equipada de fábrica com cabine dupla de duas portas, para seis passageiros. Também serviu ao Exército e à Marinha brasileiros, em versão sem o teto rígido e com para-brisa basculante. A sua produção só se encerrou em 1981.
Mais antiga das três, lançada no Brasil em 1957, a primeira Ford F100 – ainda com sotaque americano – tinha motor a gasolina V8 de 4.5 litros que produzia 167 cv. Nacionalizada um ano depois, a segunda geração da picape criada nos Estados Unidos chegaria em 1962. Em 1963, também ganhou cabine dupla com três portas (algo que só voltaríamos a ver no país com a contemporânea Fiat Strada). A terceira geração veio em 1971. Foi também a mais popular. A F100 atravessou toda a década de 1980 com boas vendas, fez uma sucessora, a F1000, equipada com motor Diesel, e chegou aos anos 1990.
Versão picape da Rural Willys (precursora dos SUVs no Brasil, derivada por seu turno da Jeep Station Wagon norte-americana), a F75 foi a primeira caminhonete com tração 4×4 no País, lançada em 1960 pela Willys Overland do Brasil, sob o emblema da Jeep americana. O motor a gasolina de seis cilindros e 2.6 litros gerava 90 cv. Em 1967, a Ford do Brasil adquiriu a Willys, mas manteve a picape em produção.
A partir de 1968, passou a ser equipada com o motor a gasolina de seis cilindros e 3.0 litros de 132 cv do luxuoso sedã Itamaraty. Dois anos depois, sai a marca Jeep e o carro passa a se chamar Ford F75 (o nome Jeep só voltaria ao Brasil em 2015, já sob o controle do grupo Fiat Chrysler Automobiles, com o SUV compacto Renegade). Com novos motores, a Ford F75 seria produzida até 1982. A versão militar foi o primeiro veículo deste tipo exportado pelo Brasil – 150 unidades, para Portugal.