Um tesouro no Douro

Por Luiz Fernando Sá, de Santa Marta de Penaguião _______________________________________________


02.09.22

Por Luiz Fernando Sá, de Santa Marta de Penaguião

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O sinuoso trajeto da rodovia N2 é para se percorrer sem pressa. As vistas da Serra do Marão são generosas, com encostas banhadas de sol e geometricamente desenhadas pelas linhas de parreirais. A subida lenta gera expectativa, assim como a promessa plantada no solo xistoso das montanhas de Santa Marta de Penaguião, um nome que aos poucos ganha destaque no mapa da enologia do Alto Douro, em Portugal. O destino é autoexplicativo: Cumieira, ponto mais alto do município. 

A vila de algumas centenas de habitantes vive um dia quente e de agitação incomum naquele início de maio. As atenções estão na Quinta do Pontão, uma antiga casa de pedras – numa delas, logo na entrada, a data 1791 denuncia sua idade. Ali viveu, durante séculos, a família Horta Osório, que durante 300 anos vislumbrou lá do alto as vinhas das quais extraía as uvas usadas na produção de seus vinhos. Mas naquele fim de tarde o anfitrião vinha de longe, das montanhas de Minas Gerais. “Estamos aqui com a missão de sermos fieis fiéis depositários dessa tradição. Um bom vinho tem de ter história”, afirmou o empresário Cristiano Gomes, um dos novos donos do local, a um pequeno grupo de convidados. “Você não compra o passado, mas pode valorizar esse passado.”.

O evento na Cumieira marcou, assim, uma transição e um renascimento. A família Horta Osório deixou o antigo negócio, assumido pela Menin Wine Company (MWC), uma jovem empresa com apenas cinco anos de vida, mas grande capacidade de investimento. Gomes, que agora vive em Portugal, é o CEO. Seu sócio na empreitada permanece em Minas, onde comanda um dos maiores impérios empresariais do Brasil. Trata-se de Rubens Menin, dono da MRV, maior construtora do paísPaís, do Banco Inter e da CNN Brasil.

Desde 2018 Gomes – que havia deixado uma bem-sucedida carreira de executivo do mercado financeiro, que culminou com a posição de CFO do Inter – e Menin têm se dedicado ao projeto de deixar sua marca no mercado internacional de vinhos. A H.O, nova identidade da antiga Horta Osório lançada no evento, é apenas mais um passo nessa direção. Até o momento, a MWC já investiu 32 milhões de euros em aquisições, instalações, equipamentos e reformas de vinhedos. “Já temos anunciados outros 30 milhões para os próximos anos”, disse Gomes à PLANT. 

 

SEM PRESSA PARA COLHER

A empreitada começou em uma conversa despretensiosa durante uma reunião do Conselho de Administração do Banco Inter. Gomes havia deixado o mercado para um período sabático e mudado para Bordeaux, na França, para estudar sobre vinhos, uma de suas paixões. Menin perguntou-lhe sobre o tema e o papo acabou em plano de negócios. 

A tese do investimento era a de produzir vinhos nobres, mas não em regiões viníferas mais consagradas, “onde o custo de exploração era altíssimo e a sensação era a de que estaríamos rasgando dinheiro sem conseguir gerar valor”, segundo Gomes. Durante mais de um ano o empresário pesquisou propriedades em regiões como Piemonte e Toscana, na Itália, ; Bordeaux e Borgonha, na França, ; Napa Valley, na Califórnia (EUA), ); e até na África do Sul.

Até que o Douro apareceu no mapa. “Velho mundo ainda é velho mundo. Dá mais trabalho, é mais caro e é mais artesanal. Mas os preços nas outras regiões eram estratosféricos. Paga-se uma fábula e não tem o que fazer. É só fluxo de caixa, não há lugar para crescer e inovar. No Douro ficamos convencidos de que já existem bons vinhos, mas ainda sem o devido reconhecimento. Aqui ainda podíamos comprar uma propriedade e experimentar, testar cada pedaço de vinha. Não é um projeto de curto prazo, mas com payback em décadas.”

O primeiro cheque foi assinado há exatos quatro anos, em junho de 2018, para a aquisição da Quinta Costa de Cima e da Quinta do Sol, ambas na região de Gouvinhas, no Alto Douro. Eram propriedades com vinhas bastante degradadas, sem marca e sem equipamentos de vinificação. Dedicavam-se apenas à venda de suas uvas para a produção de terceiros. Mas havia algo especial: 11 hectares de vinhas velhas, algumas com mais de 120 anos.

Era, na definição de Gomes, ao mesmo tempo um tesouro e um problema doloroso do ponto de vista financeiro. Vinhas como essas são muito pouco produtivas, podem não dar uvas em alguns anos ou chegar a 200 gramas por cacho em outros, enquanto uma videira saudável produz de 4 a 5 quilos. “Era difícil justificar, mas mais do que retorno do investimento, buscávamos qualidades únicas”, diz o empresário. “Encontramos as videiras em que poderíamos buscar esse valor. As raízes, por exemplo, têm de 8 a 15 metros e atingem lençóis freáticos profundos, que lhes dão nutrientes e concentração de sabores especiais. Sabíamos que estávamos fazendo uma opção por baixa produtividade, mas não queríamos qualidade. Queremos chegar a um vinho icônico.”

Os primeiros investimentos nas propriedades foram a construção da adega, para permitir vinificar no próprio local, e recuperar o parreiral. “Dos 42 hectares cultivados, tivemos de replantar um terço, onde as vinhas estavam destruídas”, conta. Também foi feito o georreferenciamento de toda a propriedade e um levantamento das variedades plantadas ali. Foi encontrada uma grande diversidade, com 54 diferentes castas. “Nossa preocupação, então, foi preservar essa diversidade”, diz Gomes. Mudas foram produzidas para preencher as falhas nos parreirais. Elas foram plantadas no sistema de enxertia, usando a técnica chamada de cavalo americano. “É um processo que não demora menos de quatro anos para começar a produzir”, explica.

Outro trabalho importante nos dois primeiros anos foi o desenvolvimento da marca e dos rótulos, que finalmente dariam uma identidade àquele pedaço de chão. E então surgiram os primeiros vinhos com a assinatura Menin Douro Estates, a primeira grife da MWC. Ainda longe do ícone pretendido, mas já à altura de disputar mercado com alguns nomes mais conhecidos do Douro. O Douro’s New Legacy, por exemplo, é comercializado em Portugal a um preço médio de 100 euros. “Ainda não temos nosso vinho topo de gama, mas já podemos mostrar o potencial das nossas vinhas”, afirma.

Mas já existem grandes histórias engarrafadas. Um dos rótulos lançados em 2019, na primeira leva de vinhos da empresa, traz o nome Dona Beatriz. Poderia ser apenas uma homenagem à esposa de Rubens Menin, mas uma coincidência levantada por um historiador contratado para pesquisar o passado daquelas terras apontou que, no século 18, uma outra Beatriz, viúva do então proprietário, ficou responsável pela gestão da quinta, em uma época em que a gestão feminina dos negócios era rara.

 

TRADIÇÃO E INOVAÇÃO

No ano passado, com a conclusão da adega Menin, também foram iniciados os trabalhos de vinificação própria, ainda em lotes pequenos, utilizando cubas de até 1.000 litros. Trabalhando em pequenas quantidades, os jovens enólogos do grupo têm tido liberdade para experimentar na combinação das diferentes castas e nos processos de produção. “Não há urgência, mas uma busca permanente pela qualidade”, explica Gomes.

O projeto da MDE ganhou, porém, um impulso inesperado quando uma oportunidade bateu à porta dos empresários: um negócio familiar com 300 anos de tradição. O sobrenome Horta Osório já era reconhecido pelo plantio de vinhas nas encostas da Serra do Marão, no Alto Douro. Suas áreas haviam sofrido altos e baixos ao longo dos anos, mas na última década vinham passando por um processo de replantio muito bem executado. Faltava-lhes, no entanto, capital para prosseguir e a empresa foi colocada à venda. Menin e Gomes não hesitaram e arremataram o patrimônio, que, além de 55 hectares de vinhas, incluía uma moderna adega e mais de 150 mil litros de vinhos em sua cave, alguns deles prontos para serem comercializados. Isso, além do tesouro da casa na Quinta do Pontão, no alto da Cumieira.

A aquisição permitiu à MWC a ampliação das suas ambições no mundo dos vinhos. A decisão da dupla foi manter duas marcas separadas, cada uma delas competindo em uma faixa diferente do mercado. A Horta Osório tornou-se apenas H.O, após passar por um processo de rebranding. “Queríamos manter algo da identidade e da tradição da família, sem nos apropriarmos do seu nome”, explica Gomes. 

A H.O foi posicionada para ser uma linha de entrada, mais comercial e acessível, com uma gama de vinhos com preços de mercado variando entre 10 e 45 euros. “A proposta de valor é fazer os melhores vinhos possível possíveis dentro das diferentes faixas de preço”, diz o executivo. Já a Menin Douro Estates disputa os consumidores mais exigentes e dispostos a pagar até 200 euros por uma garrafa. “Será uma linha mais aspiracional, super elaborada.”.

O ativo imobiliário trazido com a compra na nova propriedade também é complementar aos da aquisição anterior. Com elaseles, a MWC deve avançar em um projeto voltado para o enoturismo, para o qual já reservou 18 milhões de euros dentro de seu programa de investimentos.  A apenas 9 quilômetros de Vila Real, maior cidade da região do Alto Douro, e muito próximo de Peso da Régua, hoje já um destino conhecido internacionalmente pelos apreciadores de vinhos, a casa de 1791 na Cumieira, já em avançado trabalho de restauro, e a moderna adega da H.0, devem atender a visitantes de curta duração, em busca de uma experiência com degustações e passeios entre as vinhas. Um wine bar, espaço para jogos e até esportes equestres, muito apreciados pela família Horta Osório, devem funcionar ali.

Já na Quinta Costa de Cima, debruçada sobre o rio Rio Douro, está sendo feito o maior investimento: a construção de um hotel- butique, de categoria superior, para enófilos em busca de um destino exclusivo e hospedagem de longa duração – no ano passado, a MWC adquiriu ainda mais uma propriedade vizinha, a Quinta do Caleiro. Segundo Gomes, os projetos envolvem aprovação de três diferentes prefeituras da região e devem ser concluídos em três anos, contados a partir do sinal verde das autoridades locais.

O jeito mineiro de trabalhar busca harmonizar com o ritmo e o pensamento das comunidades do Douro. “Somos os recém-chegados em um mercado de caras centenárias”, diz Gomes. Uma das preocupações dele e de Menin foi criar programas de desenvolvimento que incorporassem e qualificassem a mão de obra da região. Mesmo para as posições estratégicas do negócio, como a equipe de enólogos, foram contratados jovens talentos portugueses: João Rosa Alves lidera a equipe, com consultoria de Tiago Alves de Sousa. “Foi também um reconhecimento de que não sabemos fazer vinhos”, diz Gomes. “Sem pessoas adequadas, não iríamos a lugar nenhum.”.

Uma amostra do que a combinação do espírito empreendedor e os recursos de Menin e Gomes com a expertise e a ambição do time responsável pela vinificação foi servida na Cumieira naquela tarde de maio. Jornalistas especializados fizeram a prova de oito rótulos da primeira leva assinada pela H.O. Entre os destaques, o Pontão 2017, um tinto elaborado com um mix do conteúdo das barricas encontradas na cave da Horta Osório, e o Achado 2018, que, como o próprio nome diz, também representa as descobertas entre os tesouros guardados pelos antigos donos e que teve apenas 1.016 garrafas. “Eles marcam a transição de uma empresa familiar para um projeto comercial”, diz Gomes.