Edição 40 - 07.01.24
A arquiteta do vinho brasileiro
Por Irineu Guarnier Filho*
A atividade vitivinícola se expande pelo Brasil. De seu berço mais conhecido, a Serra Gaúcha, para onde foi trazida na segunda metade do século 19 pelos imigrantes italianos, a produção de vinhos em escala industrial migrou para outras regiões do Rio Grande do Sul, como a Campanha, a Serra do Sudeste, as Missões e os Campos de Cima da Serra. E continuou escalando o mapa do Brasil, instalando-se depois em Santa Catarina, no Paraná, São Paulo, Minas Gerais, Goiás, Bahia, Pernambuco e, mais recentemente, até no Rio de Janeiro.
A expansão da vitivinicultura pelos mais diferentes terroirs brasileiros veio acompanhada de inovações agronômicas surpreendentes, como a poda invertida ou dupla poda, praticada na região Sudeste, que possibilitou a produção dos chamados “vinhos de inverno” (as uvas são colhidas entre junho e agosto, período mais seco, e não nos meses de verão, como no Rio Grande do Sul), e de uma nova e arrojada arquitetura de vinícolas. Os tradicionais castelos de pedra ao estilo medieval e os prédios de inspiração europeia tradicional vão perdendo espaço para edificações modernas, erguidas em aço, vidro e concreto, com fachadas retilíneas, quase minimalistas, que surpreendem os turistas que ainda cultivam uma visão romântica sobre o mundo do vinho, inspirada pelos Châteaux e Maisons seculares do Velho Mundo.
À frente desta revolução arquitetônica, um nome se destaca – o da arquiteta gaúcha Vanja Hertcert, que assina os projetos das maiores, mais sofisticadas e mais modernas vinícolas construídas ou em construção neste momento em nove estados brasileiros. Vanja tem sido requisitada por empreendedores de várias regiões para criar espaços que vão muito além de plantas industriais convencionais, pois são também cartões de visitas dos novos vinhos finos que surgem pelo Brasil, além de um forte atrativo para o enoturismo. “As grandes macrorregiões vinícolas, a tradicional, a tropical e, agora, a dos vinhos de inverno, abrangem um território gigante”, diz Vanja. “Impossível não se emocionar com este movimento.”
Apaixonada desde sempre pela cultura do vinho, a arquiteta, que mora e trabalha no Vale dos Vinhedos, em Bento Gonçalves (RS) – a primeira região vinícola brasileira contemplada com uma Denominação de Origem (DO) do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi) – aproximou-se do setor em 1996. Foi quando se envolveu com o projeto da antiga Maison Forestier. A vinícola mudava de mãos na época: passava da multinacional Seagrams para o controle do grupo brasileiro Tecnovin.
Da observação do que existe de mais moderno no mundo, como algumas vinícolas da Rioja, na Espanha, a vinícola Antinori, na Itália, a VIK e a Clos Apalta, no Chile, ou a Piedra Infinita, da Zuccardi, na Argentina, veio-lhe a convicção de que estava no caminho certo ao projetar seus edifícios: era preciso romper com o passado. As novas vinícolas brasileiras não poderiam “nascer velhas”. Ou, como diz, “o passado deve ser protegido e tratado como memória, mas não reproduzido, negando os avanços de uma sociedade que caminha em outro sentido”.
Embora prefira não destacar nenhum projeto em particular, vinícolas como a Luiz Argenta, de Flores da Cunha (RS), a Cave do Sol, do Vale dos Vinhedos, e a Uvva, inaugurada em 2022 na Chapada Diamantina, na Bahia, distinguem-se em seu portfólio como exemplos de sua visão arquitetônica conectada com a contemporaneidade.
Vanja trabalha com mais cinco arquitetos, sob sua supervisão em todas as etapas, e atualmente dedica-se exclusivamente a projetos de vinícolas. Os desenhos nascem de longos briefings com os empreendedores e de muita pesquisa de campo. Embora uma vinícola seja, por definição, uma indústria, é uma construção muito diferente das plantas industriais convencionais. Entre peculiaridades dessas edificações, a arquiteta destaca: a funcionalidade, pois a elaboração do vinho deve ser linear e sem conflitos; os controles ambientais, como temperatura, umidade e iluminação, que afetam a qualidade do produto; o uso de materiais estáveis, para evitar contaminações; e, por fim, a “cenografia”, ou seja, um ambiente capaz de produzir encantamento.
Algumas de suas caves, como a da vinícola Luiz Argenta, escavada em meio a uma rocha, vários metros abaixo da superfície, realmente encantam os turistas que participam de degustações no local. Inaugurada em 2009, a Luiz Argenta marcou uma virada no segmento, com suas linhas curvas que seguem a topografia ondulada do vinhedo que a cerca.
Nem todas as vinícolas possuem vinhedos próprios ou, então, contíguos à área de processamento. Mas, naquelas localizadas entre videiras, é preciso harmonizar, como se diz na linguagem do vinho, as edificações com a natureza. “O vinhedo é parte do cenário e o motor do encantamento”, diz Vanja, “e quando se consegue trazê-lo para os ambientes edificados, tanto melhor”.
Os avanços tecnológicos nos campos da agronomia e da enologia estão abrindo um amplo leque de opções para a produção de vinhos em grande parte do território nacional. O Brasil é, hoje em dia, o único país que elabora a bebida nas quatros estações do ano, em diferentes regiões. Com isso, a geografia do vinho brasileiro se amplia. Regiões onde seria impensável produzir vinhos há algumas décadas, como o Centro-Oeste ou o Nordeste, já se inserem no mapa vitivinícola brasileiro, inclusive com rótulos premiados em concursos nacionais e internacionais.
Diferentemente da vitivinicultura tradicional do Sul, conduzida pelos imigrantes europeus e seus descendentes, os novos empreendedores do setor são grandes produtores de commodities, como café ou soja, ou empresários da construção civil, da indústria de embalagens ou do petróleo, ou mesmo profissionais liberais, como médicos e advogados bem-sucedidos financeiramente, que se ligam ao vinho muito mais por paixão do que por interesse econômico. Sem falar, é claro, do status social que esta atividade confere aos seus produtores. Se, há algumas décadas, o glamour vinha da criação de cavalos de raça, hoje empresários urbanos de sucesso buscam prestígio em outros segmentos do agro, como a produção de vinhos. Os haras foram substituídos pelas vinícolas.
No momento, a arquiteta gaúcha prepara um livro ilustrado sobre o conjunto de sua obra, que deve ser lançado no ano que vem e certamente vai servir de inspiração para as novas gerações de profissionais da arquitetura. Listou 40 projetos, 20 já realizados e o restante ainda em andamento. Nem todos nasceram do zero. Alguns são ampliações e reformas de vinícolas já existentes. Mas todos trazem a marca inconfundível do seu estilo.
* Jornalista especializado em agronegócio, cobre o setor há três décadas. É sommelier internacional pela Fisar italiana e recebeu o Troféu Vitis, da Associação Brasileira de Enologia (ABE).