REVOLUÇÃO INTELIGENTE

Por Lívia Andrade   Com novos recursos e expansão do seu uso, a Inteligência Artificial tran


Edição 36 - 19.06.23

Por Lívia Andrade

 

Com novos recursos e expansão do seu uso, a Inteligência Artificial transforma a produção agrícola no Brasil e abre oportunidades inéditas para o setor 

 

Poucos setores têm sido tão impactados pela revolução trazida pelo Inteligência Artificial (IA) quanto o agronegócio. Previsão de safra, monitoramento da qualidade do solo, manejo de água, identificação de pragas e doenças, pesagem de gado, uso de pulverizadores que liberam defensivos apenas onde há ervas daninhas, aplicação de agroquímicos por drones e introdução de robôs que realizam o trabalho de polinização de abelhas são apenas alguns exemplos – existem muitos outros – sobre como a nova tecnologia se tornou onipresente nas lavouras brasileiras. “A Inteligência Artificial depende da análise de grandes bancos de dados para identificar padrões e dar uma resposta”, sintetiza o cientista da computação e agrônomo Marcelo Canteri, professor da Universidade Estadual de Londrina (Uel) e coordenador do Centro de Inteligência Artificial no Agro (Cia-Agro), iniciativa que engloba pesquisadores, universidades, cooperativas e empresas privadas. “A grande vantagem dela é analisar dados em quantidade e velocidade muito maior que a do cérebro humano.” 

Em termos gerais, a IA simula, por meio de sistemas complexos de algoritmos e da capacidade de processamento de computadores, os mecanismos de aprendizados adotados pelo cérebro humano – mas de maneira muito mais precisa. “Digamos que eu abasteço uma máquina com 15 mil imagens de doenças na soja e identifico quais lesões caracterizam uma mancha-alvo”, diz Canteri. “Ao fornecer uma nova foto, a Inteligência Artificial identifica se a folha está contaminada em função desse padrão.” Uma novidade que será lançada em breve é um software do Cia- Agro para detecção da ferrugem-asiática, doença fúngica que traz perdas de US$ 2 bilhões por safra de soja no Brasil.

Atualmente, o monitoramento é feito com armadilhas, que dependem de uma pessoa para analisar a presença dos esporos do fungo na lâmina. “Um ser humano demora meia hora em cada lâmina e ele tem 60 lâminas para analisar”, diz Canteri. “Nós criamos um software para fazer a leitura automatizada. Esses dados, junto com informações meteorológicas de temperatura e umidade, vão alimentar a IA para dar alertas às regiões propensas ao aparecimento da ferrugem-asiática.” 

Não por acaso, nos últimos anos as grandes multinacionais do agro lançaram suas próprias plataformas de agricultura digital, que têm por finalidade ajudar os produtores a produzir mais e melhor na mesma área. A Climate FieldView, da Bayer, foi uma das pioneiras. Aterrissou no País em 2016 e, cinco anos depois, alcançou o marco de 22 milhões de hectares monitorados, o que tornou o Brasil o segundo maior mercado da plataforma no mundo.

A iniciativa utiliza dados de satélites, drones e sensores acoplados em máquinas nas propriedades de seus clientes. Depois, as informações são usadas pela IA para dar diagnósticos em tempo real. Isso resulta em maior eficiência e economia de insumos, já que o produtor recebe a indicação da quantidade exata de fertilizantes e defensivos que cada talhão precisa. “É uma ferramenta de gestão maravilhosa, porque consigo entender melhor a fazenda com os mapeamentos”, diz Vanessa Bomm, produtora de grãos em Terra Roxa (PR). “Enxergo a propriedade como um todo, mas também consigo decifrar cada metro quadrado, nos mínimos detalhes. Além de receber o histórico de dados, descubro qual híbrido produz mais.” 

A pujança do agro nacional tem atraído empresas de diversos setores. É o caso da Bosch, conhecida pelo know-how em ferramentas elétricas e componentes automotivos. Em 2021, a empresa fez uma joint-venture com a Basf para desenvolver a Smart Spraying Solution, tecnologia de pulverização seletiva de herbicidas, que une a expertise da IA da Bosch ao conhecimento agronômico e soluções digitais da Basf. “Entregamos um sistema integrado e confiável para o controle inteligente de ervas daninhas, com aplicação do cultivo a qualquer hora do dia ou da noite”, diz Rodrigo Neiva de Lima, diretor da Bosch Basf Smart Farming e gerente de Vendas e Marketing da Bosch. Em fase de teste no Brasil, a solução está disponível na Europa para as culturas de soja, milho, algodão, beterraba doce e girassol. “Durante a aplicação, o sistema reconhece, em tempo real, onde está cada erva daninha do talhão e aciona os bicos pulverizadores apenas onde elas estão, garantindo economia no uso de herbicidas”, diz Lima, ressaltando que a tecnologia deve chegar ao mercado brasileiro na safra 2023/24. 

A IA tem sido encampada por muitos atores: empresas privadas, universidades, governos e startups. Nesta última frente, a brasileira Olho do Dono, empresa que usa câmeras 3D portáteis para pesar bois, tem chamado atenção. Entre mil startups no mundo, ela foi uma das 14 selecionadas, a única da pecuária, no primeiro programa de agtech da Plug and Play, uma das mais badaladas aceleradoras do mundo, com sede no Vale do Silício, nos Estados Unidos. A Olho do Dono surgiu quando Grégoire Balasko, atualmente CFO da empresa de logística Loggi, dava consultoria financeira para um pecuarista que tinha dificuldade em calcular o custo da propriedade. Tudo era baseado em estimativas – o proprietário nem sequer sabia quantas cabeças tinha, nem o peso do rebanho.  

Atento a esse gargalo, Balasko procurou o cientista da computação Pedro Henrique Mannato, fundador e CEO da Olho no Dono, para criar uma solução capaz de calcular as arrobas dos animais sem a necessidade de levá-los até uma balança, trabalho que toma quase um dia dos vaqueiros e causa estresse e perda de peso nos animais. Depois de trocar informações com zootecnistas e veterinários e fazer uma imersão na fazenda, Mannato desenvolveu uma tecnologia que usa câmera 3D portátil para pesar até 200 bois em menos de dez minutos com uma acurácia de 97%. “Basta posicionar a câmera onde o boi passa e o software faz todo o processo automaticamente, aplicando visão computacional, Inteligência Artificial e ciência de dados para apresentar o peso”, diz o empresário. A tecnologia tem sido usada para raças zebuínas e taurinas, além de suínos. A Olho do Dono tem clientes como a SLC Agrícola, uma das principais produtoras de grãos e gado do Brasil, e já expandiu a operação para Argentina, México e Paraguai. “A vantagem de pesar por imagem é que se trata de um serviço auditado. As pessoas podem conferir”, diz o CEO da startup. 

 

A IA está presente em todas as frentes da operação agrícola  

Não está muito longe o dia em que o fazendeiro irá gerenciar sua frota de máquinas agrícolas a distância, de qualquer lugar, seja onde estiver. Já existem vários protótipos de caminhões e tratores autônomos em plena operação. “Nos Estados Unidos, vendemos algumas soluções de autonomia para aplicações específicas”, diz Gregory Riordan, diretor de Tecnologias Digitais da CNH Industrial para a América Latina. “Vamos ver sistemas autônomos ser comercializados nos próximos três anos, com um salto significativo nos próximos cinco.” Os especialistas acreditam que os veículos e maquinários autônomos deverão deslanchar primeiro no campo – onde existem menos variáveis para controlar – e não nos ambientes urbanos. Hoje em dia, contudo, a falta de legislação específica é uma barreira para os fabricantes investirem mais no segmento. 

Por ser, em suma, um identificador de padrões, a IA precisa de um banco de dados robusto, geralmente abastecido por sensores, que automatizam a coleta das informações. Nesse contexto, as máquinas agrícolas modernas fornecem ótimos exemplos. Algumas delas são dotadas de sensores que monitoram desde o espaçamento para o plantio de sementes até o grau de contaminação do óleo do motor do maquinário.  

Recentemente, a Case IH desenvolveu o Automation, um sistema de gerenciamento de máquinas concebido a partir da IA. “As colheitadeiras de grãos conseguem interpretar o que está acontecendo na operação”, pontua Artur Eduardo Monassi, presidente do Grupo Tracan, de concessionárias Case IH. “Numa lavoura de soja suja, com muita erva daninha, a temperatura do motor pode subir e a máquina faz a leitura e se autorregula, diminuindo a velocidade de colheita sem a interferência do operador.” 

O sistema de telemetria permite o acompanhamento em tempo real do desempenho dos maquinários pelo fabricante e concessionária. Na unidade da Tracan em Ribeirão Preto (SP), a sala de controle lembra o escritório de um trader. Em vez de monitorar o sobe e desce das ações, o funcionário acompanha os alertas emitidos pelas máquinas da clientela. Se aparecer aviso de filtro entupido ou falha em algum sensor, o responsável comunica o proprietário para corrigir a avaria antes de a máquina quebrar.  Depois o mecânico sai da concessionária em direção à fazenda com todas as peças em mãos, o que resulta em menos tempo de máquina parada no campo. 

A adoção da Inteligência Artificial trará frutos financeiros para o agronegócio brasileiro. O estudo “Internet das Coisas: um plano de ação para o Brasil”, de 2020, elaborado pela consultoria McKinsey e Fundação Centro de Pesquisas e Desenvolvimento em Telecomunicações a pedido do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), aponta que as aplicações de internet das coisas (IoT, na sigla em inglês) deverão gerar ganhos econômicos entre US$ 5 bilhões e US$ 21 bilhões até 2025, a depender do grau de adoção das tecnologias.  

Não por acaso, corporações como AGGO, Bayer, CNH Industrial, Jacto, Nokia, Solinftec, TIM, Trimble e Yara formaram o ConectarAgro, uma associação que tem por objetivo estimular a expansão da internet 4G na frequência de 700 mega-hertz (Mhz). “Trabalhamos muito próximos aos governos federal e estadual para editar políticas públicas para levar esta cobertura ao campo”, diz Ana Helena de Andrade, vice-presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), entidade parceira do ConectarAgro. “Até hoje, estivemos envolvidos na expansão da internet para 12 milhões de hectares.” 

O tema está em alta. Uma parceria entre a Esalq-USP Piracicaba, o Instituto Nacional de Telecomunicações (Inatel), o Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações (CPQD) e o Centro de Agricultura Tropical Sustentável (STAC, na sigla em inglês) está elaborando um raio X da conectividade no agro a pedido do Ministério das Comunicações. O documento deverá ser entregue nas próximas semanas. “É um modelo que avalia a demanda e a oferta de conectividade no meio rural”, diz o engenheiro agrônomo e pesquisador Rodrigo Maule, coordenador do Grupo de Políticas Públicas (GPP) da Esalq. 

Mas, afinal, qual é a melhor tecnologia? “Para o agronegócio de hoje, o 4G atende todas as demandas plenamente”, diz Gregory Riordan, da CNH Industrial. “É preciso lembrar que o 5G é uma evolução do 4G. Tudo o que for colocado de infraestrutura, de fibra ótica, de torres, de centrais para a implementação do 4G, vai favorecer o estabelecimento do 5G no futuro.” Em termos de custos e da dimensão territorial da área agropecuária brasileira, o 4G é também a escolha mais viável. “Uma torre de 4G cobre 30 mil hectares numa topografia positiva, enquanto com o 5G seriam necessárias, no mínimo, seis torres para cobrir a mesma área”, diz Ana Helena, da Anfavea. Com o avanço da conectividade, o uso da Inteligência Artificial no campo crescerá ainda. Isso é ótimo para produtores e empresas do setor, mas melhor ainda para o Brasil.