A música em defesa do Agro

A música em defesa do agro     À frente do movimento conhecido como agronejo, uma nova


19.10.22

A música em defesa do agro

 

 

À frente do movimento conhecido como agronejo, uma nova geração de artistas canta sobre as conquistas dos produtores rurais e traduz em canções o sentimento de orgulho de quem trabalha no campo

 

Por André Sollitto

 

Nem o nome nem a batida pop eletrônica deixam claro de início, mas Pipoco, a música mais tocada no Spotify na primeira metade do mês de julho passado, tem suas raízes no sertanejo. Com apenas 18 anos, a jovem cantora do Mato Grosso do Sul Ana Castela é autora da canção. Ela é também o rosto mais conhecido do agronejo, uma nova vertente da música ligada ao campo, cuja temática principal das letras é a defesa do agronegócio e a valorização dos homens e das mulheres que enriquecem com seu trabalho nas fazendas.

 

O estranhamento inicial dá lugar à familiaridade quando Ana Castela – a Boiadeira, como também é chamada – aparece de calça jeans, bota e chapéu. É com o visual tradicional associado ao sertanejo que essa nova geração de artistas faz questão de aparecer nos clipes. Os nomes das músicas, como A Roça Venceu, Mulher do Agro, Meninos da Pecuária e Meninas da Pecuária, e frases de efeito como “não é à toa que o PIB começa com P de pecuária” e “sertanejo começa com S de soja”, dão o tom das músicas. Nos clipes, há uma abundância de cenas aéreas de colheitadeiras, closes de caminhonetes e tratores e imagens de rebanhos – e dancinhas prontas para o TikTok. Parece propaganda. E é, como eles mesmos fazem questão de frisar. Há clipes que mostram até números do setor como forma de validar o que as letras dizem.

 

Artistas como Us Agroboy, Antony e Gabriel e Léo e Raphael criam um antagonismo entre as pessoas da “roça” e os “playboys e patricinhas”. Boa parte das letras valoriza o sucesso dos fazendeiros e pecuaristas, ao mesmo tempo que faz piada com a postura supostamente superior daqueles que moram nas cidades. É um tipo de vingança contra o antagonismo que existe na sociedade desde que o êxodo rural, que teve início na década de 1960, e associou o ambiente urbano ao progresso e o rural, ao atraso. Há anos essa relação não faz sentido, e os hits do agronejo fazem uma tentativa de registrar a atual realidade do campo.

 

 

O agronejo também vem aglutinando outras temáticas do sertanejo, como as demandas femininas. Em Mulher do Agro, Bruna Viola canta sobre a força feminina e a autonomia conquistada em um setor que ainda é majoritariamente masculino. Em alguns casos, os artistas pegam elementos de outros gêneros que estão dominando as paradas no momento, principalmente o funk, como inspiração. “Originário do funk, o bordão ‘favela venceu’ é reapropriado para o contexto rural, assim como o estilo e o visual chavoso”, escreve o pesquisador GG Albuquerque em artigo sobre o gênero no site I Hate Flash. Até veteranos do ritmo foram atraídos pelo movimento. Fernando e Sorocaba (ele próprio um criador de cavalos Quartos de Milha) já cantaram com os Us Agroboy em Fazendinha de Madeira. E, com isso, esses artistas colecionam dezenas de milhões de visualizações de seus clipes no YouTube e em outras redes sociais.

 

O trabalho e a realidade do campo sempre fizeram parte das temáticas abordadas pelas canções caipiras. Um exemplo é Rei do Gado, música escrita por Teddy Vieira e popular na voz de Tião Carreiro e de Pardinho, que canta as conquistas de um pecuarista dono de “mais de um milhão de cabeças de gado” e inspirou até novela da Globo. “Letra tecnicamente bem-feita, mas um pouco emoliente demais em relação ao pecuarista, como se ele fosse um bom exemplo, enquanto o agricultor – que planta café – é mostrado como um impostor”, escreve José Hamilton Ribeiro em seu livro Música Caipira As 270 Maiores Modas.

 

 

 

Com o passar do tempo, esses temas perderam espaço e ficaram mais associados à música caipira, enquanto o sertanejo, como gênero musical, se atualizava – um reflexo da própria modernização do setor agrícola. “A partir da década de 1980, a agricultura industrial, ou agrobusiness, como passou a ser chamada, era decisiva para a manutenção de uma balança comercial minimamente equilibrada para o Brasil”, escreve Gustavo Alonso em Cowboys do Asfalto. E os cantores acompanharam o movimento. Passaram a olhar para a música country americana, e incorporaram mudanças na sonoridade e no visual. Sucessos da década de 1990 de duplas como Zezé Di Camargo e Luciano e Chitãozinho e Xororó, com seus solos de guitarra e naipes de metais, eram um reflexo direto da ascensão e dos gostos da elite do campo. A indústria agrícola passou a financiar shows e rodeios e as duplas passaram a se apresentar em feiras agropecuárias. 

 

“O agronegócio ajudou a gente, mas foi só na década de 1980, quando começaram a acontecer as exposições de gado. Acho que ela [a música sertaneja] ficou marcada como a música desse movimento rural do Brasil que deu e dá certo até hoje”, afirmou Chitãozinho em entrevista a Marília Gabriela em 2010. Hoje, doze anos depois, sua declaração continua ecoando. E, nesse tempo, a relação entre o agro e a música sertaneja também evoluiu. Grandes nomes do sertanejo deixaram de simplesmente emprestar suas imagens para campanhas publicitárias e passaram a assinar músicas e jingles para grandes empresas do setor. Em 2017, Bruna Viola escreveu e interpretou um jingle para a farmacêutica Zoetis. Dois anos depois, Renato Teixeira, autor de Romaria, um dos grandes hinos da música caipira, assinou a trilha sonora para a campanha Legado, da Basf.

 

Como costuma acontecer com a música do campo, qualquer novidade é criticada por detratores do gênero. E os argumentos são os mesmos há anos. O crítico Tárik de Souza, por exemplo, já reclamava da perda da identidade do homem do campo tradicional em 2011. “As mudanças sociológicas introduzidas no campo pelo agronegócio, seus utilitários de cabine dupla e rodeios luxuosos – que fez brotar até uma corrente de chamados ‘sertanejos universitários’ – parecem condenar os caipiras à total obsolescência”, escreveu ele. O público, seja ele do campo ou da cidade, parece não concordar. O sucesso nas redes mostra que os novos artistas conseguiram traduzir um sentimento de orgulho do setor. E como cantam Antony e Gabriel em A Roça Venceu: “Pro azar dos playboy, é nóis tomando a pinga da cana que nóis colheu, é nóis gastando a grana do gado que nóis vendeu”.