O resgate da Araucária

  Por Evanildo da Silveira   Conhecida como pinheiro-do-paraná, a araucária é uma árv


30.09.22

 

Por Evanildo da Silveira

 

Conhecida como pinheiro-do-paraná, a araucária é uma árvore imponente que se tornou símbolo do estado em uma época em que era abundante. Hoje, porém, as florestas de araucária em bom estado de conservação estão confinadas em apenas 1% do seu território original. O desmatamento de amplas áreas de Mata Atlântica em décadas passadas colocou a espécie em risco.

Mas há muita gente trabalhando para mudar esse quadro. Transformar a arraigada concepção de que a natureza é empecilho para a agricultura e reverter a ideia de que os remanescentes de vegetação nativa são áreas improdutivas são dois dos principais objetivos de um projeto que apoia pequenos proprietário de 15 municípios do sudeste do Paraná, na implementação de medidas para a recuperação e manutenção da biodiversidade em suas terras, levando o que era considerado “mato” a ter valor.

Trata-se do Projeto Produção de Biodiversidade (JTIBio), uma iniciativa da empresa Japan Tobacco International (JTI) em parceria com a Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental (SPVS). “Nosso objetivo é contribuir com a manutenção e o aumento dos serviços ecossistêmicos nas propriedades rurais, e de forma indireta em toda a região”, explica a bióloga da SPVS, Vitória Yamada, coordenadora-geral do projeto. “Para isso, procuramos mudar cenários com uma série de recomendações de melhores práticas, para aumentar a biodiversidade em terras dos pequenos proprietários, as quais são implementadas aos poucos por eles, de maneira voluntária.” 

O JTIBio começou em 2014, com um diagnóstico das propriedades da região e capacitação inicial dos técnicos em agronomia da empresa. A segunda fase, entre 2015 e 2016, foi dedicada à preparação de um protocolo de monitoramento da biodiversidade, que foi testado em dez propriedades. Na terceira fase, entre 2018 e 2019, foi realizado um aperfeiçoamento do documento e um novo teste em 17 propriedades. 

Vitória explica que o protocolo foi elaborado especialmente para o produtor rural integrado à JTI, habitante do bioma Mata Atlântica, na Floresta com Araucária. “É bem específico, porque aborda os principais problemas ambientais encontrados nessa região, a realidade do pequeno proprietário e a biodiversidade desse ecossistema, tão ameaçado e que necessita de ações urgentes de proteção e recomposição”, conta. 

De acordo com ela, o monitoramento participativo considera cinco temas – vegetação nativa, água, solo, fauna silvestre e clima – e cada um tem seus indicadores, num total de 11. Entre os quais, por exemplo, a qualidade da vegetação nas áreas de preservação permanentes e na reserva legal, a contaminação por espécies vegetais invasoras, focos de erosão, presença de fauna nativa sensível às alterações da vegetação e também das espécies dispersoras de sementes, entre outros.

De 2021 até agora, o projeto entrou em sua quarta fase, que foi a aplicação do protocolo em 48 propriedades, capacitação de técnicos em agronomia da JTI e ações de comunicação para disseminar informações para os produtores. “Eles são convidados a participar e as ações são voluntárias e custeadas por eles próprios”, conta a engenheira florestal Patrícia Feldmann, técnica responsável pelas atividades de campo do JTIBio. “A SPVS e a JTI apoiam nas questões técnicas e na distribuição de mudas de espécies nativas raras ou ameaçadas de extinção.”

Os proprietários envolvidos no projeto cultivam tabaco para a JTI, que fornece insumos para a produção e presta assistência técnica para a planta, bem como para as florestas de eucalipto. “Isso é feito por meio de um sistema integrado de produção, que garante qualidade ao tabaco brasileiro”, diz Clóvis Borges, diretor executivo da SPVS. “Existe um contrato de compra e venda entre as partes. As florestas de eucalipto servem de fonte de energia para a cura do tabaco.” 

Desde seu início, o projeto contemplou 75 pequenos produtores rurais distribuídos nos municípios de Agudos do Sul, Campo do Tenente, Ipiranga, Ivaí, Mallet, Palmeira, Paula Freitas, Paulo Frontin, Piên, Quitandinha, Rebouças, Rio Azul, Rio Negro, São João do Triunfo e São Mateus do Sul. “A área impactada até o momento é de 1.017,27 hectares, considerando a soma total das pequenas propriedades participantes”, diz Vitória.

Embora o fumo seja, na maioria dos casos, a fonte de renda principal das propriedades, elas são diversificadas. “Produção de milho, feijão, cana-de-açúcar, erva-mate, arroz, batata, cebola, mandioca, hortifrútis, pastagens, matas nativa e reflorestada são alguns exemplos do que podemos encontrar nos proprietários que participam do projeto”, diz Borges. “Assim como criação de galinhas, porcos, ovelha, cabritos e bovinocultura (leite e carne). A maior parte das culturas e da criação de animais é destinada à subsistência, mas pode vir a ser comercializada, dependendo da quantidade e nichos de mercado.” 

 

 

Os resultados do projeto para os produtores não são mensurados em termos de produtividade ou lucro, no entanto. “São avaliados pelos benefícios difusos e coletivos”, explica Patrícia. “Os proprietários são recompensados pelo que chamamos de extensão conservacionista, ou seja, recebem auxílio técnico para se adequar perante a legislação e a sustentabilidade da propriedade. E, claro, as adequações vão melhorar a questão da disponibilidade e qualidade da água, polinização das outras culturas que o produtor tenha na propriedade.”

O foco do JTIBio é mesmo contribuir com a manutenção e o aumento dos múltiplos benefícios diretos e indiretos gerados pela natureza, tais como a polinização, a provisão de água, o controle do clima, a fertilidade do solo que propicia a produção de alimentos, a produção de madeira, o controle da erosão e do assoreamento, os princípios ativos para a produção de medicamentos, além dos valores culturais, o lazer e a saúde que as áreas nativas fornecem para o ser humano. “Sem essa produção de serviços ambientais pela natureza, não há vida na Terra”, diz Vitória.

Para Borges, esses serviços precisam ser vistos como parte do negócio, que é o conceito que é transmitido aos proprietários e ao público em geral. “Só sairemos da cultura da destruição rasa como forma de desenvolvimento, se passarmos a reconhecê-los como essenciais”, defende. “Tudo isso pode hoje ser monetizado, e só não é porque o modelo de produção ignora essa realidade.”

Além disso, acrescenta, esses produtores criam uma relação de fidelização com seu parceiro corporativo e abrem a possibilidade futura de receber mais pelas ações de conservação, a partir de diversos sistemas de pagamento por serviços ambientais, que devem ser interpretados como um adicional à produção convencional e ao cumprimento da legislação.

Borges lembra que, desde a promulgação da primeira versão do Código Florestal, na década de 1960, a maioria dos proprietários rurais ignorou as regras, ampliando suas atividades para além do permitido. “Estar legal já é, num sentido amplo, gerar valor a suas produções”, diz. “Interessante contextualizar que as áreas naturais da propriedade privada representam ‘o interesse público dela’. O contexto que gerou o Código Florestal é esse e surgiu no Brasil há mais de 50 anos, surpreendentemente.”

Por isso, segundo Vitória, o JTIBio também busca auxiliar o pequeno produtor rural a conhecer e entender melhor a legislação ambiental brasileira, e quais são os passos necessários para a adequação da sua propriedade a ela, ao mesmo tempo que os conceitos de biodiversidade e serviços ecossistêmicos são disseminados na área rural. 

Isso é um benefício do projeto aos pequenos proprietários, pois pode evitar que eles sofram punições por não cumprir a lei. “Embora, nas atuais circunstâncias políticas, haja a posição das instituições de governo de ignorar as ilegalidades no campo ambiental, o não cumprimento da legislação que rege a manutenção de áreas naturais numa propriedade pode, sim, gerar multas e o impedimento no recebimento de financiamentos também”, explica Borges. “Num país sério isto estaria sem ser levado em conta adequadamente.”

Além disso, o descumprimento da legislação ambiental pode ocasionar o descredenciamento dos produtores nas suas relações comerciais com seus parceiros. Isso é uma tendência que deve crescer cada vez mais. Um exemplo é a pressão de importadores de commodities do Brasil ameaçando fazer boicotes.” 

Apesar desses benefícios, é um trabalho longo e delicado convencer os pequenos produtores a participarem do projeto sem ter no horizonte ganhos de produtividade e lucro. “É um processo de conscientização que não é fácil nem simples”, reconhece Borges. “Demanda tempo, paciência e método. Em tese, a conservação pela conservação deveria ser um valor aceito pela sociedade como parte de suas convicções, assim como deveria ser com o patrimônio cultural de um povo. A prática mais usual que busca uma alternativa ao valor intrínseco ser internalizado é o pagamento por serviços ambientais.”

No caso do JTIBio, trata-se de um projeto de pequena envergadura, que trabalha apenas com os proprietários que entenderam e aceitaram as premissas de receber apoio para restaurar suas áreas de preservação permanente. “Caso a caso, há uma evolução positiva nesse aspecto, o que representa ainda apenas um exemplo demonstrativo de pequena escala”, diz Borges. “Mudanças de larga escala, que alterem cenários regionais, representam desafios apenas atingíveis a partir de novas políticas públicas e de investimentos de grande porte.”

Seja como for, embora modestos, já há resultados. Até o momento, eles mostraram que, dentre os indicadores monitorados, muitas ações foram tomadas pelos produtores que aderiram ao projeto, como a retirada de espécies exóticas invasoras, retirada de fatores de degradação das áreas de proteção permanente (APPs) e plantio de mudas de espécies nativas. Além disso, a presença de fauna original dentro das propriedades rurais, o que faz com que o proprietário passe a observar quais são os animais ali presentes. “Esses relatos são importantes para medir como estão as florestas do entorno, pois muitos animais são indicadores da saúde das áreas naturais”, diz Vitória. 

Para ela, um dos principais ganhos do JTIBio é a troca de informações com os produtores e sensibilização para o cuidado com a biodiversidade e os serviços ecossistêmicos, ou seja, o projeto tem um forte caráter de educação para a conservação que não pode ser medido no curto prazo, mas que com certeza está deixando um legado importante para a região. 

Paralelamente ao monitoramento, o JTIBio investe em ações de comunicação, voltadas para toda a família dos proprietários rurais, por meio de cards que são enviados por aplicativos no celular, na elaboração de um almanaque para crianças e adolescentes e uma série de podcasts voltados exclusivamente para os produtores. “Esses produtos podem ser replicados para toda a cadeia produtiva da empresa”, acrescenta a bióloga.

De acordo com ela, as boas práticas de conservação da biodiversidade nas áreas rurais são um caminho de encontro a esse entendimento, que, além de propiciar a manutenção dos serviços ecossistêmicos, possibilita a produção agrícola para gerações atuais e futuras, garantindo a sustentabilidade do setor. “O monitoramento e as intervenções propostas, em escala, ajudam a reduzir os custos de acesso à água, de controle de pragas, de polinização das culturas, de fertilidade do solo, entre outros, contribuindo diretamente para a minimização dos efeitos das mudanças do clima”, explica. “Esse é um caminho longo, mas que a JTI e a SPVS escolheram trilhar para ‘produzir’ biodiversidade e futuro.”