Quem semeia conteúdo colhe milhões

Como a plataforma americana AgFunder transformou um site jornalístico sobre inovação, alimentos e


Edição 30 - 05.08.22

Como a plataforma americana AgFunder transformou um site jornalístico sobre inovação, alimentos e agricultura em um influente fundo que ajudou a moldar a cadeia agtech em todo o mundo

Normalmente, as corretoras e bancos de investimento costumam criar suas plataformas, captar recursos para seus fundos e ampliar a carteira de clientes para só então investir na produção de conteúdo. Basta ligar a TV para ver propagandas de cursos de educação financeira, consultores e coaches de investimentos de alguns dos nomes mais importantes do mercado. Mas no setor de inovação para a agricultura, foi preciso inverter a lógica. Foi assim que o AgFunder, hoje a principal referência em agtech, apostou primeiro na informação para só depois levantar os recursos necessários para um fundo de investimento.

Há cerca de dez anos, agtech não era nem mesmo uma expressão conhecida pelos investidores e empreendedores. Foi assim que surgiu, nos Estados Unidos, o AgFunder News, um portal de conteúdo sobre o mundo da alimentação, agricultura e inovação focado no campo. A tese de um de seus fundadores, o empreendedor Rob Leclerc, era tornar o setor de produção de alimentos empolgante para o público das cidades, especialmente do Vale do Silício. Assim, quem sabe, seria possível convencer os investidores a colocar dinheiro em um fundo voltado exclusivamente para o setor agtech.

“Primeiro levantamos um fundo de amigos e familiares de US$ 2,5 milhões”, disse ele em entrevista ao TechCrunch, referência na cobertura de inovação e empreendedorismo. “Cinco meses depois, precisávamos de mais dinheiro, então levantamos US$ 2 milhões. E, seis meses depois, levantamos US$ 5 milhões.” A base de assinantes dos boletins de AgFunder foi fundamental nessa hora. Ele expunha suas necessidades e os leitores acreditavam em suas ideias. “A crença de que sabemos o que estamos fazendo e podemos identificar as empresas iniciaram muitas conversas que não teríamos de outra forma e isso se tornou uma vantagem estrutural.”

“Leclerc é um dos monstros do ecossistema agtech do mundo. Ele criou um portal de conteúdo verticalizado altamente especializado que foi muito pioneiro”, afirma Francisco Jardim, sócio-fundador da SP Ventures. “Ele persistiu. Demorou para escalar, demorou para dar certo, como toda ideia mais inovadora e modelo mais controverso. Mas foi assim que ele construiu um ecossistema a partir de um conteúdo de altíssimo nível”, diz Jardim. Hoje, o site, conhecido apenas como AFN, conta com mais de 4 mil textos sobre o ecossistema, e sua newsletter semanal tem mais de 90 mil assinantes.

Para começar, Leclerc não é apenas um empreendedor. Tem um mestrado em ciência da computação pela Universidade de Calgary, no Canadá, e um Ph.D. em biologia computacional de Yale, uma das mais prestigiosas dos Estados Unidos. Ou seja, suas credenciais acadêmicas são sólidas. Seu sócio, Michael Dean, havia trabalhado com ele no setor agrícola do oeste africano por anos. Ambos conheciam a realidade do campo, não eram apenas aventureiros no setor. Isso foi fundamental para dar consistência e credibilidade à plataforma.

O portal também oferece uma visão global sobre o setor. Além do óbvio foco no Vale do Silício, de onde surgem inovações como as proteínas à base de vegetais de hoje gigantes como Impossible Foods, o site cobre o Sudeste Asiático, a América do Sul, a África e a Europa com o mesmo cuidado. Além disso, divulga periodicamente relatórios sobre investimentos em áreas ou mercados específicos. Assim, investidores e empreendedores sabem onde estão as novidades com maior potencial, quanto cada startup está recebendo e o estágio de maturidade de cada setor do ecossistema. É um panorama extremamente detalhado.

Embora seja de fato ousada, a estratégia de Leclerc não é totalmente inédita e foi inspirada em outros casos anteriores. O site TechCrunch foi criado por Michael Arrington, que posteriormente se lançou em uma carreira como investidor. Podcasts, como o londrino Twenty Minute VC, de Harry Stebbings, e newsletters, como a This Week in Fintech, de Nik Milanović, serviram de base para que seus fundadores passassem a, de fato, investir em negócios que considerassem disruptivos.

Mas o plano vem dando certo. E, assim, aos poucos, o AgFunder começou a levantar recursos para seus fundos. O início foi modesto, com US$ 2,5 milhões arrecadados entre amigos e familiares. Depois de cinco meses, precisaram de mais dinheiro para investir, e captaram outros US$ 2 milhões. Um tempo depois, foram mais US$ 5 milhões. No final de maio, anunciou a captação de US$ 60 milhões para o Fund IV, que conta com aportes do Norinchukin Bank, instituição japonesa com US$ 1 trilhão em ativos no setor de agricultura e piscicultura, e o family officeeuropeu Nest, focado em soluções climáticas. A meta é alcançar US$ 100 milhões até o meio do ano.

Com os recursos, vai expandir ainda mais seu portfólio, que já conta com 45 startups de vários cantos do planeta e está repleta de apostas certeiras. É o caso da Bear Flag Robotics, empresa americana que cria soluções para tratores autônomos e em 2021 foi vendida para a gigante John Deere por US$ 250 milhões. Outra investida, a Root AI, com foco em robótica para a produção de alimentos em ambientes controlados, foi comprada pela AppHarvest por US$ 60 milhões no ano passado. E a Greenlight Biosciences, cuja solução de biotecnologia é centrada em pesquisas com RNA, foi listada publicamente por US$ 1,5 bilhão em uma fusão com a Environmental Impact Acquisition Corp., uma SPAC (Special Purpose Acquisition Company, companhias do “cheque em branco” que captam dinheiro de investidores justamente para fusões, acelerando o processo de IPO).

Outros exemplos interessantes incluem a MycoWorks, que desenvolveu uma alternativa vegetal ao couro, feita com o micélio encontrado em cogumelos, e a Jüsto, um marketplace de alimentos frescos que quer assumir o protagonismo do setor na América Latina. Há ainda aportes em companhias da Austrália, Índia, Reino Unido, Japão e México, entre outras.

Outro destaque é a Solinftec, expoente da agricultura digital no Brasil e no mundo. Principal candidata do setor nacional ao posto de unicórnio (como são chamadas as startups avaliadas em mais de US$ 1 bilhão), a Solinftec tem uma plataforma de monitoramento de cada etapa da produção. No Brasil, é usada em cerca de 80% das lavouras de cana. Em 2020, a empresa mudou o comando para os Estados Unidos como parte de uma estratégia de internacionalização. Neste ano, anunciou uma parceria com a cooperativa agrícola americana Growmark para desenvolver um robô que será conectado à plataforma de inteligência artificial da Solinftec para monitorar a lavoura diretamente do campo, identificando doenças e apontando onde é necessário aplicar defensivos.

Em geral, o tíquete médio dos investimentos fica em torno de US$ 500 mil e o foco é em empresas early stage, ou seja, ainda amadurecendo. Mas há casos de cheques maiores. No final de março, o AgFunder liderou uma rodada de US$ 3 milhões na Umaro Foods, uma empresa com sede em Berkley, na Califórnia, criada em 2019 e que oferece uma versão vegetal de bacon produzida a partir de uma proteína vermelha extraída de algas cultivadas. Cada investimento é devidamente divulgado no site, junto com um texto de Leclerc explicando por que eles decidiram fazer o aporte em cada companhia.

“O que o modelo do Rob Leclerc e do AgFunder ensina é que o investimento em agtech tem uma densidade de ciência mais profunda que outras verticais”, afirma Francisco Jardim. “Então, o conteúdo é muito importante para disseminar, popularizar e gerar massa crítica por trás de conceitos muito mais científicos, como as proteínas criadas em laboratório, soluções para mensuração de carbono no solo, entre outras teses”, afirma o investidor.