O Agro em migração

O agro em migração Mudanças climáticas tornam os sistemas agrícolas cada vez mais vulnerávei


16.08.22

O agro em migração

Mudanças climáticas tornam os sistemas agrícolas cada vez mais vulneráveis, mudam a distribuição geográfica das lavouras e afetam toda a cadeia produtiva global. A boa notícia é que a resposta do setor já começou

 

Por Amauri Segalla

No final de abril passado, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) lançou um documento que apresenta oito grandes tendências para a agricultura brasileira nos próximos anos. O material é fruto de um trabalho minucioso de pesquisa que foi elaborado a partir de consultas a aproximadamente 300 especialistas e lideranças do setor e da análise de 126 artigos científicos oficiais. Dois aspectos chamam a atenção no conteúdo produzido pela Embrapa. O primeiro deles é que a inovação estará cada vez mais presente nas lavouras do País, especialmente com a adoção maciça de recursos digitais. O segundo ponto, contudo, traz um sinal de alerta. De acordo com o documento, a agricultura será severamente afetada pelos efeitos perversos das mudanças climáticas. Com o aquecimento do globo, é certo que a vulnerabilidade dos sistemas agrícolas aumentará, desafiando por completo os modelos atuais de produção e a distribuição geográfica das lavouras. Acrescente-se a isso o aumento da demanda mundial por alimentos, água e energia e o resultado será um quadro desconcertante.

Uma conta simples baseada na clássica relação de causa e efeito mostra o que está por vir. Em um cenário de elevação de 3 °C da temperatura global até 2050 – algo que ocorreria sob a perspectiva mais moderada –, o Brasil teria como impacto a redução de até 50% na sua produção agrícola. Para não haver dúvidas: uma tragédia estaria diante de todos nós. Há exemplos muito claros sobre o que poderá ocorrer. “Até 2100, teremos no Cerrado brasileiro um cenário mais seco, com temperaturas mais elevadas e a presença de eventos extremos cada vez mais frequentes e intensos”, afirma Renato Rodrigues, pesquisador da Embrapa Solos. Estudos do Centro de Pesquisas Meteorológicas e Climáticas Aplicadas à Agricultura (Cepagri) já revelaram que a falta de chuvas e os veranicos de longa duração poderão reduzir em 40% as áreas destinadas ao plantio de soja no Brasil até 2070. Na Região Nordeste, o aumento dos termômetros comprometerá a produção de algodão. Também já se sabe que a maior frequência de chuvas, ventos e tempestades diminuirá a produtividade das lavouras de trigo, principalmente na Região Sul.

Engana-se quem imagina que as dificuldades estão reservadas apenas para o futuro. No Paraná e no Rio Grande do Sul, as mudanças do clima reduziram a produtividade das lavouras e já esvaziam os bolsos dos agricultores. Nas últimas quatro safras, as perdas dos produtores de soja paranaenses e gaúchos totalizaram R$ 140 bilhões. O cálculo foi feito por José Renato Bouças Farias, pesquisador da Embrapa Soja. Para chegar à conclusão, ele considerou desde situações como o baixo volume de água disponível para uso nas plantações até a seca extrema. Farias ressalta que a soja é capaz de suportar temperaturas muito elevadas, mas a falta de água costuma levar a estragos irreversíveis. Ele lembra que existem métodos eficazes para combater os ataques de pragas ou doenças, mas a escassez de chuva é um problema de dificílima solução. “Se não chove, não tenho nada de imediato para oferecer”, lamenta o pesquisador.

Há danos por onde quer que se olhe. Nos últimos tempos, a longa estiagem, intercalada por geadas de rara intensidade, devastou fazendas de café mineiras. Como consequência direta das mudanças climáticas, a safra 2020/21 encolheu 30%, contribuindo para que os preços disparassem. Nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste, os índices pluviométricos estão em queda sistemática há duas décadas, e não há indicativos de que voltarão à normalidade. É fácil entender o fenômeno. A emissão de gases poluentes como o CO2, que se deve apenas e exclusivamente às atividades humanas, esquenta a atmosfera e aumenta a frequência de eventos extremos, como secas intensas e temporais. Somos, portanto, responsáveis pela nova realidade. Ou para ficar no campo agrícola: estamos colhendo o que plantamos cotidianamente.

O ano de 2021 ficou marcado como o de seca mais intensa da história do Brasil. De acordo com o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), 40% do território brasileiro sofreu com a falta de chuvas, fenômeno que se espalhou por estados inteiros e impactou diretamente 2.445 municípios. Desde 1910, quando as medições climáticas começaram a ser feitas, jamais registrou-se algo parecido. “Com a injeção extra de gases de efeito estufa, metano e óxido de carbono, o aquecimento está acelerando e os eventos estão ficando mais intensos”, reforça José Marengo, climatologista e coordenador geral do Cemaden. Também ficou mais complicado estabelecer padrões climáticos e antecipar eventos que possam ser devastadores. Guilherme Moreira, economista da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), lembra que está cada vez mais difícil definir os períodos de safra e entressafra por causa justamente das mudanças climáticas. Sem previsibilidade, os produtores sofrem até mesmo para definir os momentos adequados para o plantio.

 

Em busca de água
As mudanças climáticas estão alterando o eixo da agricultura em diversos países. Estimativas indicam que 28% da produção agrícola em regiões de fronteira já sofre com a instabilidade climática, número que crescerá para 51% em 2030 e 74% em 2060. O Painel Intergovernamental Sobre Mudanças Climáticas (IPCC) das Nações Unidas traça um quadro calamitoso e indica que poderá haver profundas transformações nos sistemas agrícolas globais. Com o aumento da temperatura, o cultivo de arroz, que precisa de água em abundância, está sendo levado para áreas mais frias do Norte. Na Índia, segundo maior produtor da cultura, as safras encolhem a uma taxa de 2% ao ano. Parece pouco, mas o declínio representa uma tragédia sem precedentes que afetará a economia local e poderá aumentar a insegurança alimentar em diversas partes do planeta – o arroz, ressalve-se, alimenta mais da metade da população humana. O trigo, outro provedor fundamental de comida para bilhões de pessoas, está sob ameaça real nos Estados Unidos. De acordo com o monitor do clima da ONU, estima-se que, até 2050, aproximadamente 20% das colheitas de trigo em território americano se perderão em razão da hecatombe trazida pelas mudanças climáticas.

Poucas culturas estão tão expostas quanto a cafeeira. Um estudo conduzido por pesquisadores da Universidade de Ciências Aplicadas de Zurique, na Suíça, e divulgado na publicação científica Plos One, diz que é muito provável que áreas no Brasil e na Colômbia, países de enorme tradição na produção de café, deixem de ser adequadas ao cultivo do grão Arábica, associado a uma bebida de maior qualidade, até 2050. O fenômeno inevitavelmente provocará a migração das lavouras. No Quênia e na Etiópia, também tradicionais produtores, os agricultores já estão procurando terras mais altas para fugir do aumento das temperaturas e manter o mesmo nível de produtividade. Na Colômbia, regiões montanhosas começaram a ser ocupadas nos últimos anos por grandes fazendas de café, o que jamais havia ocorrido.

Não são apenas as lavouras que serão forçadas a mudar de lugar. O aquecimento obrigará milhões de pessoas a fugir das condições adversas – são os refugiados do clima. De acordo com o Banco Mundial, 216 milhões de indivíduos poderão deixar seus países até 2050 para fugir dos dramáticos eventos climáticos. A região mais afetada será a África Subsaariana, concentrando quase 40% dos migrantes climáticos (86 milhões) nas próximas três décadas. Na sequência aparece o Leste Asiático e Pacífico, com 22,6% (49 milhões) das futuras migrações. A América Latina também é classificada como área de alerta, de onde deverão sair 17 milhões de migrantes climáticos até 2050.

A secura do planeta e o aumento das temperaturas deverão provocar desastres de proporções bíblicas. Em conjunto, os dois fenômenos formam a combinação perfeita para a proliferação de doenças que atacam e, por vezes, ceifam plantações inteiras. Nos últimos anos, as condições mais quentes aumentaram a incidência de um fungo chamado ferrugem, que aflige principalmente lavouras de café. Na América Central, eles se espalharam de forma incontrolável e no México a praga chegou a destruir 50% da safra. 

 

As bananas têm sofrido com a radicalização do clima. Como no caso da ferrugem do café, as altas temperaturas são propícias para a proliferação do fungo Fusarium, conhecido como TR4. Ao entrar na bananeira através das raízes, o fungo bloqueia o fluxo de água e nutrientes para as células da planta, destruindo gradualmente as suas folhas. Por fim, leva à morte da bananeira. Alguns pesquisadores acham que, no futuro não tão distante, o TR4 poderá levar à completa extinção de diversas variedades de bananas. Não custa lembrar: a banana é a fruta mais consumida no mundo.  

 

Ninguém está imune aos efeitos das mudanças climáticas – nem os países ricos, obviamente. Nesse aspecto, elas espalham seus males de maneira democrática, prejudicando todo o conjunto da sociedade. Nos Estados Unidos, os produtores de pêssegos da Geórgia tiveram perdas expressivas nas últimas quatro safras. As variedades que eles cultivam precisam de cerca de 800 a 900 horas de frio por safra. Se fizer muito calor, os pessegueiros não produzem flores. Sem flores, não há pêssegos. Em 2019, não houve sequer 600 horas de frio nas plantações e as frutas não apareceram. A culpa é do aquecimento global. De acordo com um relatório do Instituto de Estudos Climáticos dos Estados Unidos, o estado da Geórgia registrou, entre 2016 e 2020, as temperaturas mais elevadas da história. Ao mesmo tempo, a umidade também está subindo, o que estimula o surgimento das chamadas doenças fúngicas que crescem nas plantas. 

 

Soluções e alternativas

O quadro é alarmante, mas cientistas de diversas partes do mundo têm se mobilizado para buscar soluções para o problema. No Brasil, um exemplo louvável é a Rede ILPF (Integração Lavoura, Pecuária e Floresta), criada pela Embrapa em 2018 com o apoio da iniciativa privada, do terceiro setor e dos diversos entes públicos. Um dos objetivos da associação é estimular o desenvolvimento de estratégias e tecnologias capazes de aliviar os efeitos negativos do clima nos cultivos e nas criações. Pesquisador da Embrapa, Eduardo Assad diz que há dois caminhos possíveis para enfrentar os dilemas do clima. “O primeiro é o da mitigação, ou seja, a redução das emissões de gases do efeito estufa. O segundo é o que chamo de adaptação”, diz ele. 

      
No primeiro caso, explica o pesquisador, a saída diz respeito a mudanças nos sistemas de produção. Trata-se, sobretudo, da adoção de métodos mais limpos e ligados a boas práticas agrícolas que, no final do processo, levam necessariamente à assimilação do carbono da atmosfera. Nesse aspecto, o Brasil, como protagonista do agronegócio, tem boas lições a oferecer ao mundo. Entre elas está a aplicação dos chamados sistemas integrados, cuja premissa central é promover o desenvolvimento econômico, social e ambiental e a otimização do espaço por meio de práticas sustentáveis. Ao mesmo tempo que são eficientes em termos de produção, os sistemas integrados estimulam o sequestro de carbono – e, portanto, ajudam no controle do aumento da temperatura do planeta.

O segundo caminho, o da adaptação, é igualmente eficaz. Assad diz que ele implica a busca de soluções genéticas – como o desenvolvimento de sementes tolerantes a temperaturas elevadas e à deficiência hídrica –, mas também a revegetação de áreas degradadas. “A revegetação leva ao aumento dos polinizadores, que por sua vez vão estimular a produção de grãos e frutas”, explica o pesquisador da Embrapa. Ele cita ainda o caso de bovinos adaptáveis, que não perdem peso mesmo se forem criados em ambientes com temperaturas mais altas. O caminho da adaptação é mais desafiador, e por um motivo simples: custo. Soluções genéticas e projetos de revegetação não são exatamente baratos, e só farão sentido do ponto de vista econômico se houver ganhos de escala. Essa equação precisa ser urgentemente resolvida por todos os entes envolvidos – instituições de pesquisa, empresas e governos.

A questão ambiental entrou de vez na agenda econômica global. Assim que assumiu a presidência dos Estados Unidos, Joe Biden afirmou que combater o aquecimento do planeta seria uma de suas prioridades. Os europeus também estão imbuídos do mesmo propósito, assim como a maioria esmagadora do agronegócio brasileiro. Nos últimos anos, o foco no aumento da produtividade fez com que as terras agrícolas do País produzissem mais usando menos área. Segundo um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a produção agrícola brasileira cresceu 400% entre os anos de 1975 e 2020. Isso foi possível porque a produtividade total dos fatores (PTF) aumentou 3,3% ao ano nesse período, mais do que em qualquer outra nação.

O Brasil é também um dos campeões mundiais no uso de tecnologia no campo, fator vital para impulsionar a produtividade. No final do ano passado, havia 299 agtechs, como são chamadas as empresas iniciantes de base tecnológica dedicadas à agropecuária, em atividade no País, número 64,2% maior que o do levantamento anterior, de 2019. Em 2021, as startups voltadas à atividade agropecuária representavam 11,8% do universo de empresas iniciantes de base tecnológica, o que faz desse um dos grupos mais numerosos, atrás somente das startups da área de educação (17,3% do total) e de saúde (17,1%), conforme dados da Associação Brasileira de Startups (Abstartups). Com tecnologia, lembre-se, a produtividade aumenta – e o planeta respira aliviado. Se as mudanças climáticas impõem uma nova e inquietante realidade, a resposta do setor agrícola precisa estar à altura dos monumentais desafios que existem pela frente.