Edição 29 - 06.04.22
A compostagem humana, processo que consiste em transformar restos mortais em adubo para o solo, ganha cada vez mais adeptos. Segundo ambientalistas, método pode ajudar no combate às mudanças climáticas
Em dezembro de 2020, a arquiteta americana Katrina Spade realizou o sonho de uma vida inteira. Depois de 15 anos de pesquisas, ela abriu oficialmente a Recompose, a maior empresa dos Estados Unidos especializada em, veja só, compostagem humana. Por mais mórbida que possa parecer, a iniciativa vem ganhando adeptos no país inteiro – entre os vivos e os mortos. “A menos que sejamos cremados ou mumificados, nosso corpo irá se decompor depois que morremos. E ponto”, disse Spade em entrevista recente. “O que proponho é facilitar essa decomposição, de forma que o organismo humano possa se integrar à terra, à natureza. Acho mais inteligente.”
A ideia, de fato, não tem nada de tétrica. Em tempos de mudanças climáticas – e diante da urgência em proteger o planeta –, métodos como a compostagem humana são vistos como uma forma eficaz de evitar emissões. Essa é a premissa por trás da Recompose e de outras seis fazendas de corpos que surgiram nos últimos dois anos nos Estados Unidos após o setor ser regulamentado. Cinco estados americanos – Delaware, Havaí, Maine, Massachusetts e Nova York – possuem legislações que autorizam a compostagem de pessoas. Na Europa, a Suécia foi o primeiro país a liberar a prática, e há discussões jurídicas em andamento no Reino Unido e na Alemanha.
Mas, afinal, como é feita a compostagem? Durante 30 dias, o corpo permanece em um compartimento fechado que contém pedaços de materiais orgânicos, como lascas de madeira, alfafa e palha. De tempos em tempos, ele é girado lentamente para estimular a proliferação de micróbios e bactérias capazes de decompor a matéria orgânica. Com o auxílio do calor, o corpo vira adubo em apenas um mês.
O método é semelhante à compostagem de alimentos, em que a proporção adequada de nutrientes e materiais cria o ambiente propício para a decomposição. No final, os familiares recebem o adubo resultante do processo, em um volume suficiente para encher dois carrinhos de mão. Depois, o material pode ser usado para plantar flores, árvores ou qualquer outro vegetal.
A lógica da compostagem humana é justamente essa: graças a esse método, os nutrientes do corpo humano irão sustentar uma nova vida no solo. “O processo nos lembra que, apesar de toda a tecnologia inventada, continuamos a integrar ciclos essenciais, de vida e morte, da natureza”, diz a fundadora da Recompose. Além disso, o sistema tem inegáveis vantagens ambientais. Segundo as empresas envolvidas com esse tipo de trabalho, a redução natural orgânica de um corpo impede que 1,4 tonelada de carbono seja lançado na atmosfera. Se a iniciativa fosse adotada em larga escala, portanto, o planeta agradeceria.
Não é difícil entender por que a compostagem humana é melhor para o clima. Apenas nos Estados Unidos, a cremação de pessoas produz 250 mil toneladas de emissões de dióxido de carbono por ano. E o problema tende a se agravar. Atualmente, a cremação é a escolha de 50% dos americanos, mas pesquisas recentes mostram que até 2040 o índice deverá chegar a 80%. Ao longo dos anos, o enterro convencional, por sua vez, transforma cemitérios em aterros tóxicos. Com o adensamento populacional, no futuro certamente faltará espaço para dar fim aos restos humanos, especialmente nas grandes cidades. É por isso que muitos ambientalistas enxergam na compostagem um caminho tão necessário quanto inevitável.
A compostagem esbarra em alguns obstáculos para se tornar popular. Um deles é o preço. Na Recompose, o custo do processo integral, do transporte do corpo até a entrega do adubo para os familiares, é de US$ 5,5 mil, acima do valor gasto em uma cremação básica. Na lógica de mercado, porém, quanto mais empresas entrarem no ramo, maior a chance de os valores caírem.
Também é preciso enfrentar velhos tabus. Depois que a compostagem humana foi aprovada no estado de Nova York, representantes da Igreja Católica local produziram um comunicado que se opunha ao tratamento orgânico dos corpos. No texto, a Igreja chamou o processo de “mais apropriado para vegetais e cascas de ovos do que para corpos humanos”.
Os defensores da compostagem rebatem com outro argumento. Eles afirmam que o processo, afinal de contas, pode dar novo significado para a ideia religiosa de ressurreição, na medida em que restos humanos adubam a terra e ajudam a dar vida a árvores e muitas outras plantas. Seria, assim, um novo começo.