Edição 28 - 25.01.22
Ao longo da história, os países construíram sua reputação com a ajuda das marcas e produtos que exportam. Na Itália, as grifes de roupa e os carros esportivos consolidaram a imagem perfeita da sofisticação. Nos Estados Unidos, as Big Techs e o Vale do Silício passaram mais recentemente a associar a maior economia do mundo a grandes feitos tecnológicos. No Canadá, esse papel é exercido por um singelo produto: o xarope de bordo, conhecido em inglês como maple syrup. Parece coisa à toa, mas quem já provou panquecas e waffles adoçados com a iguaria sabe de seu imenso valor. Do ponto de vista econômico, o xarope de bordo é um monumento. Seu litro custa atualmente US$ 9, o que equivale a cerca de cinco vezes o preço do petróleo. Não à toa, o produto acrescentou aproximadamente US$ 780 milhões ao PIB do Canadá em 2021.
Estaria tudo certo se um fenômeno típico dos novos tempos não ameaçasse o xarope de bordo canadense. Com as mudanças climáticas e os efeitos nefastos do aquecimento global, a última primavera no Canadá foi mais curta e quente, o que afetou a produtividade das árvores de bordo (ou ácer, como é seu nome na botânica), que fornecem a seiva para a produção do xarope. Fenômenos incomuns como o degelo precoce e as altas temperaturas verificadas em abril no Canadá contribuíram para que a produção em 2021 mal chegasse a 60 mil toneladas, bem abaixo das 79 mil toneladas produzidas em 2020. Ao mesmo tempo, a demanda mundial, impulsionada principalmente pelos Estados Unidos, subiu 21% no ano, e o que se viu foi a formação de uma tempestade perfeita para o setor. Apaixonados por panquecas e waffles, os Estados Unidos respondem por cerca de metade do mercado global.
Escassez da matéria-prima e demanda elevada compõem, na economia, o cenário perfeito para comprometer o abastecimento. Para evitar o agravamento da crise, a Federação de Produtores de Xarope de Bordo de Quebec (QMSP, na sigla em inglês) usou um artifício típico dos produtores de petróleo: recorreu às chamadas reservas técnicas. A entidade decidiu liberar cerca de 22 mil toneladas de maple syrup guardadas estrategicamente – foi a única maneira encontrada para eliminar de vez o risco de sumiço do produto no mercado.
As reservas estratégias do xarope de bordo foram criadas em 2020 como mecanismo para combater as flutuações da produção e demanda do adoçante. Em linhas gerais, trata-se exatamente do mesmo procedimento adotado pelas grandes petrolíferas. Nos anos em que ocorre o excesso de produção, separa-se o excedente para futuras emergências. No caso do maple syrup, ele fica guardado em barris vedados e esterilizados em uma área do tamanho de cinco campos de futebol na cidade de Laurierville, no Canadá. Se a demanda é maior do que a produção, exatamente o cenário que se viu em 2021, parte do xarope é retirada das reservas para então abastecer o mercado.
Atualmente, as reservas de Laurierville armazenam 44 mil toneladas do xarope, mas esse volume agora será reduzido à metade. A preocupação é que novos eventos climáticos possam atrapalhar a produção nos próximos anos, o que seria devastador para o equilíbrio do mercado. Produtores da região de Quebec já estudam inclusive a possibilidade de antecipar a safra e melhorar o manejo das árvores de bordo, o que poderia ao menos aliviar a oscilação dos humores atmosféricos. Não é a primeira vez que os produtores canadenses ficam sob forte tensão. Em 2012, US$ 18 milhões em maple syrup foram roubados da reserva estratégica da QMSP, num esquema sofisticado que consistia no desvio paulatino do produto ao longo de meses. A polícia prendeu 20 pessoas pelo golpe.
O xarope de bordo está enraizado na alma canadense. A tradição começou séculos atrás, quando a maioria das famílias de Quebec vivia na zona rural e a retirada da seiva das árvores era a principal fonte de renda. Com o passar do tempo, a produção cresceu de maneira explosiva e todo o sistema tornou-se mais profissional. Surgiram os grandes grupos donos de terras, que passaram a exportar e fazer negócios em larga escala. Atualmente, a região de Quebec reúne 11 mil produtores e é responsável por 70% do xarope de bordo consumido no mundo. A maple tree é tão reverenciada que sua folha acabou incorporada à bandeira do Canadá, em 1965. Como se vê, o xarope de bordo é mesmo um dos grandes patrimônios do país.