Edição 20 - 24.06.20
Por André Sollitto
Lançamentos de novas variedades de legumes e frutas não são eventos que despertam tanta atenção do público quanto a apresentação de, digamos, um novo smartphone da Apple. Talvez merecessem, como demonstra a apresentação da Cosmic Crisp, uma maçã anunciada como a versão definitiva de uma das frutas mais consumidas no planeta. Sua chegada foi alardeada com uma enorme campanha de marketing que custou US$ 10 milhões de dólares, contou com propagandas e influenciadores digitais – e mostrou ao mundo que o desenvolvimento de alguns alimentos que consumimos diariamente é um processo altamente tecnológico que guarda mais similaridades com o desenvolvimento de gadgets, celulares e outros dispositivos do que alguém poderia imaginar.
As redes de supermercados dos Estados Unidos estão recebendo carregamentos da Cosmic Crisp desde o final do ano passado. Como a Red Delicious, a Honeycrisp, a Granny Smith (a nossa maçã verde) e outras variedades de nomes curiosos, a novata foi desenvolvida para oferecer não apenas variedade ao consumidor, mas uma fruta com sabor e textura incomparáveis, cultivável em diversos climas e capaz de resistir a um ano se conservada em temperaturas adequadas. Não é, portanto, fruto do acaso.
Para chegar a esse resultado, o processo começou no final da década de 1990, com Bruce Barrett, pesquisador de maçãs na Universidade Estadual de Washington. A variedade WA38, que mais tarde seria batizada de Cosmic Crisp, foi escolhida entre mais de 10 mil híbridos por conta de suas características. Após a seleção, a candidata a chegar ao mercado passou por anos de aprimoramento e testes para que seu design se comprovasse agronômica e comercialmente viável. Para se ter uma ideia, cada macieira precisa de dois a três anos para atingir o tamanho ideal. Os cientistas comparam centenas de indivíduos até encontrar aquele com todas as características desejadas, seja a resistência a alguma doença, a capacidade de crescer em climas variados ou os sabores e as texturas específicas. Quando o indivíduo ideal é encontrado, ele é clonado e testado em campo, com produtores parceiros.
Nos Estados Unidos, as sementes são patenteadas, bem como o nome da fruta. No caso da Cosmic Crisp, oferecida para agricultores americanos comercialmente pela primeira vez em 2017, o Estado de Washington tem a patente e a exclusividade de plantio por 10 anos – ou seja, elas ainda vão demorar um pouco para chegar ao Brasil. Os produtores também precisam pagar royalties para cada árvore plantada ou caixa de maçãs vendidas. E se engana quem pensa que os produtores ficam com o pé atrás por conta dessas taxas: mais de 13 mil árvores já foram plantadas, a um custo de US$ 500 milhões.
As quantias investidas, bem como o longo processo de pesquisa e até a campanha de divulgação remetem ao desenvolvimento de outros produtos tecnológicos. A campanha de marketing, por exemplo, recrutou até Leroy Chiao, astronauta aposentado da NASA, para fazer propaganda. A fruta tem site e até slogans, como “Imagine as possibilidades” e “A maçã dos grandes sonhos”.
Parece exagero, mas é um exemplo claro de toda a tecnologia que envolve a produção de alimentos. E os resultados parecem ter sido promissores: críticos gastronômicos que provaram a Cosmic Crisp dizem que ela tem um sabor levemente doce com um toque azedinho que supera outras variedades. E cada mordida produz um som que parece saído de um desenho animado – o barulho que se espera ao morder uma maçã. É o que o jornal americano “The News York Times” chamou de “a maçã do futuro”.
Acelerando o processo
Desenvolver variedades a partir dos tradicionais métodos a partir de testes com híbridos já representa um avanço imenso em relação a técnicas mais antigas, como o enxerto, que consiste na união do tecido de duas plantas diferentes para que uma terceira, com características de ambas, seja criada.
O Brasil, por exemplo, tem casos interessantes de uvas desenvolvidas pela Embrapa com foco nas condições climáticas do País. Lançada em 2012 dentro do Programa de Melhoramento Genético de Uva da Embrapa Uva e Vinho (RS), a BRS Vitória é uma uva sem sementes, cor preta e equilíbrio entre doçura e acidez. A cultivar permite duas safras por ano e é recomendada para a região sudeste, de clima tropical úmido, e para clima tropical semiárido. A aceitação foi grande no Brasil e no exterior. Por aqui, 90% dos associados da Cooperativa de Produtores Exportadores do Vale do São Francisco (Coopexvale) já haviam adotado a cultivar em 2016. A uva também foi adotada na Inglaterra, substituindo variedades tradicionalmente exportadas por Itália, Espanha e Grécia. Em 2019, a Embrapa lançou novos cultivares, a BRS Melodia, uva rosada de mesa sem sementes, e a BRS Bibiana, uva para elaboração de vinho branco, adaptadas para o clima temperado da região Sul.
Mesmo assim, esse processo ainda é bastante lento. São anos até que um novo produto chegue às prateleiras. Hoje, no entanto, existem ferramentas capazes de acelerar bastante as coisas. A principal delas é o CRISPR-Cas9, que permite aos pesquisadores fazer uma edição genética, sem a necessidade de inserir genes de outras fontes. A ferramenta é revolucionária e foi tema de uma reportagem de capa da PLANT PROJECT.
Um dos casos mais recentes de vegetais criados com auxílio do CRISPR é um tomate, resultado do trabalho do americano Zach Lippman, professor do Cold Spring Harbor Laboratory, instituição de Nova York especializada em pesquisa de genética vegetal. Bastante diferente dos tomates que estamos acostumados a ver, eles parecem com um buquê de flores, com raízes curtas e frutos compactos. A grande vantagem é que eles ficam prontos para o consumo em apenas 40 dias e podem ser cultivados em qualquer lugar, incluindo fazendas urbanas e até no espaço.
“Posso dizer que até a Nasa está interessada em meus tomates”, disse o pesquisador Lippman ao site Agritech Tomorrow. Em um artigo publicado na revista científica Nature Biotechnology, ele explica como ele usou a ferramenta para mexer principalmente em três genes, fazendo com que a planta parasse de crescer e desse frutos mais cedo, mas garantindo o sabor e o tamanho compacto.
A versatilidade, a precisão e a redução dos custos e do tempo necessário para as pesquisas são as principais vantagens da técnica em relação à transgenia, o método de edição genética mais usado e conhecido. Surgido originalmente em 1973, a transferência genética deu origem a diversos vegetais potencializados. O primeiro alimento transgênico chegou ao mercado só em 1994. Tratava-se também de um tomate, o Flavr Savr, produzido pela Calgene, mais resistente ao apodrecimento e vendido nos mercados a um preço elevado. Apesar de ter sido considerado seguro para consumo pelo FDA (Food and Drug Administration), a agência de saúde dos EUA que regula os alimentos, ele encontrou resistência dos consumidores. A inexperiência da empresa em transportar o fruto também transformou a experiência em um fracasso. Com o tempo, mais alimentos transgênicos tomaram as prateleiras dos mercados, mas até hoje a transgenia encontra críticos.
Características únicas
Frutas e legumes como a maçã Cosmic Crisp, bem como grande parte dos alimentos cultivados no mundo, são clones, para garantir que todos tenham exatamente as características esperadas. É o padrão da agricultura moderna. Mas em um período de transformação, em que se discute questões importantes de sequestro de carbono, cuidados com o solo e sustentabilidade do setor, e em que os hábitos e preferências dos consumidores estão moldando o futuro e a maneira como os produtores trabalham, uma parcela crescente das pessoas está interessada nas variedades de alimentos, nas qualidades específicas que uma fruta ou legume plantado em determinado local pode oferecer. É algo explorado por chefs de cozinha há tempos, mas que agora está ao alcance do consumidor comum. Além disso, essas monoculturas representam um gasto de recursos naturais maior.
Talvez o futuro não seja formado apenas por uma maçã cósmica com sabor incomparável, mas por uma constelação de opções que ofereçam características únicas. A tecnologia para isso já existe.
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