Colheita em jogo

Por André Sollitto Quem está familiarizado com o universo dos games já deve ter reparado que as c


Edição 19 - 17.04.20

Por André Sollitto

Quem está familiarizado com o universo dos games já deve ter reparado que as competições virtuais se tornaram um de seus filões mais rentáveis. Existem equipes de atletas profissionais que treinam horas por dia e viajam enfrentando competidores do mundo inteiro. Os eventos reúnem milhares de fãs e os atletas são recebidos como celebridades. As disputas envolvem os tradicionais games de luta ou títulos de estratégia RPG. O que ninguém esperava é que um jogo que retrata o dia a dia de um produtor rural ganhasse sua própria liga internacional de e-sport. Mas toda a história da série Farming Simulator é repleta de sucessos inusitados – o que a torna ainda mais cativante.

Atualmente, o game pode ser encontrado na versão Farming Simulator 20, lançada em dezembro de 2019 para diversas plataformas, incluindo Android, iOS e Nintendo Switch. Cada edição tem suas particularidades, mas a mecânica é semelhante. O jogador começa com uma pequena propriedade, o maquinário agrícola essencial para começar o trabalho e um talhão pronto para a colheita. É preciso colocar a colheitadeira para funcionar e passar várias vezes pelo campo até ter certeza de que nenhum grão de trigo ficou para trás. Depois, basta colocar tudo no caminhão e levar até o depósito, onde é possível vender sua produção. Com mais dinheiro na conta, começam as dúvidas. É melhor comprar mais terra ou priorizar sementes mais caras, mas que darão um retorno financeiro mais polpudo no momento da colheita? O jogador tem à disposição os valores do mercado para saber como planejar a safra. Dá até para mudar de ramo e deixar a agricultura de lado para se dedicar à pecuária. Cada etapa dá bastante trabalho e toma tempo. É possível contratar funcionários para cuidar das tarefas diárias, mas delegar essa parte da gestão da fazenda tem um preço. São questionamentos que passam pela cabeça de qualquer produtor – real ou virtual.

Essa verossimilhança foi um fator determinante para a popularidade do Farming Simulator. Os criadores do jogo tiveram trabalho para garantir que detalhes da operação das máquinas e tarefas do cotidiano de uma fazenda fossem precisos. Não à toa, uma parcela considerável dos jogadores é de produtores ou tem alguma relação com o campo. A maioria, no entanto, é formada por curiosos e por pessoas interessadas em um estilo de jogo mais relaxado, sem a ação frenética de outros títulos populares do mundo dos games.

A presença de marcas que atuam de verdade no mundo off-line reforça a sensação de realismo. Hoje, o jogador tem à disposição uma variedade enorme de maquinário. Sua frota pode ter tratores da John Deere, colheitadeiras da New Holland e caminhões da Tatra, da República Tcheca. Até os pneus usados podem ser da Michelin, por exemplo. A lista inclui Case, Fiat, Massey Ferguson, Valtra, Mitas, Stihl e várias outras. São mais de 300 equipamentos para escolher. Nem sempre foi assim.

Origem modesta

A série Farming Simulator foi criada pelo estúdio independente Giants Software. Com sede na Suíça, a empresa começou de maneira bastante despretensiosa em 2008 com apenas dois funcionários: Stefan Geiger, CTO, e Christian Ammann, o atual CEO. A dupla queria retratar de maneira fiel o trabalho dos trabalhadores do campo. Ambos cresceram no interior, mas mergulharam fundo na pesquisa. Fotografaram equipamentos reais e conseguiram mais dados na internet. O Farming Simulator 2008 foi lançado com pouca divulgação e um monte de maquinário genérico. A única marca que comprou a ideia logo de cara e está presente no jogo desde o início é a alemã Fendt. O game, no entanto, vendeu mais de 150 mil cópias na Europa.

“Foi complicado convencer os fabricantes de que não fazíamos parte de uma empresa de brinquedos tradicional, já que elas estão acostumadas a pagar para usar as marcas em seus veículos”, conta Stefan Geiger ao site Venture Beat. “Isso seria impossível para nós. Era inviável pagar para todas os fabricantes, mesmo que uma pequena porcentagem.”

Aos poucos, cada edição do game foi ganhando novos parceiros. A John Deere, uma das principais fabricantes do mundo, entrou no universo de Farming Simulator recentemente. As marcas passaram a ver a vantagem de estarem presentes no jogo, embora a estratégia de marketing não seja tão óbvia. A Giants passou a frequentar grandes feiras agrícolas, como a alemã Agritechnica, apresentando o Farming Simulator a um público que normalmente não liga para jogos eletrônicos. Essa relação com os parceiros, no entanto, acaba fortalecendo as marcas tanto no mundo real quanto no virtual.

Quase 12 anos desde a primeira edição, é possível afirmar que a série se consolidou de maneira surpreendente entre diversos concorrentes indiretos. A ideia de simular a gestão de uma fazenda não é tão nova: em 1996, Harvest Moon foi lançado para Super Nintendo e colocava os jogadores no papel de um personagem que herdava uma propriedade do avô. Em 2009, FarmVille tomou o Facebook de assalto, tornando-se o game mais popular da plataforma – mas sua jogabilidade estava bem distante da realidade. Sucesso mais recente, Minecraft dá grande liberdade aos jogadores, que podem inclusive se dedicar à agricultura. Em 2016, Stardew Valley atraiu a atenção de críticos e jogadores ao buscar referência em antigos RPGs japoneses para simular o cotidiano das fazendas.

Competição de fazendeiros

Em 2012, a desenvolvedora do jogo lançou o Farming Simulator para smartphones. No ano seguinte, foram os consoles de videogame que ganharam versões específicas. A base de fãs só cresceu. São 25 milhões de cópias vendidas e 90 milhões de downloads nas plataformas mobile. Os jogadores incluem crianças a partir de 3 anos, que jogam acompanhadas pelos pais, e produtores de mais de 60. Desde 2019, inclui também os competidores sérios que participam de campeonatos mundiais. “Embora o lado não competitivo do jogo seja legal”, diz Geiger ao Venture Beat, “ele não é para todo mundo. Algumas pessoas simplesmente precisam do desafio”.

A Farming Simulator League, ou FSL, conta com um modo exclusivo de jogo, em que os participantes se enfrentam em partidas com direito a maquinários desligados e outras táticas que dificultam a vida dos oponentes. Na primeira temporada da liga, os vencedores receberam um prêmio de 250 mil euros. Neste ano, a competição será ainda mais acirrada. A Intel, parceira da Giants que ajudou a otimizar o jogo para computadores, incluiu o Farming Simulator em seu evento Intel Extreme Masters, que reúne alguns dos maiores atletas dos e-sports. O modesto simulador agrícola vai aparecer lado a lado com alguns dos títulos mais competitivos da atualidade, como League of Legends, ou LoL, Counter-Strike: Global Offensive, StarCraft II e Fortnite: Battle Royale. É a produção rural em uma das principais arenas virtuais do mundo. Nesses campeonatos, a parceria com as fabricantes de maquinários é muito importante. Algumas marcas ajudaram os atletas oferecendo passagens aéreas e hospedagem para que eles pudessem competir.

A próxima temporada de competições da FSL terá início no final de julho, na Polônia, no FarmCon 19, evento oficial organizado pela Giants. As disputas se espalham por outros países da Europa, com edições na Suíça, Polônia e França. Uma das etapas acontece na feira alemã Agritechnica. Neste ano, serão realizados também eventos on-line, para que jogadores de outros países também possam participar.

O modo competitivo foi lançado para capturar um pouco da atenção ao redor dos e-sports, mas também para reforçar o clima de comunidade que existe em torno do Farming Simulator. Jogadores trocam experiências e dicas em redes sociais e agora passaram a acompanhar as disputas. O fenômeno mais interessante, no entanto, está relacionado aos “mods”, modificações feitas de maneira independente pelos próprios jogadores. Cada versão do jogo costuma vir com um ou dois mapas, mas as opções não são suficientes. Por isso, aqueles com maior conhecimento em programação costumam criar cenários adaptados às suas realidades. Por aqui dá para encontrar, por exemplo, sites com fazendas do Paraná e Rio Grande do Sul e até maquinário nacional. Tudo para reforçar a sensação de familiaridade.

A Giants não só estimula as modificações como oferece um espaço no site do Farming Simulator para que as melhores criações sejam disponibilizadas para todos. São culturas regionais, mapas, maquinário e outros detalhes que enriquecem a experiência. Da origem modesta à maneira como cativou todo tipo de jogador, a história da Giants é um case de engajamento que tem muito a ensinar. Melhor ainda se esse aprendizado for feito enquanto brincamos de gerir uma fazenda.

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