CHAPA QUENTE NA BATALHA DOS HAMBÚRGUERES

Por André Sollitto A propaganda, como de costume, até exagera em alguns pontos. Mas não dá para


Edição 15 - 19.06.19

Por André Sollitto

A propaganda, como de costume, até exagera em alguns pontos. Mas não dá para dizer que ela é enganosa. Na embalagem, o hambúrguer parece com qualquer outro comprado em um supermercado: um disco avermelhado de tamanho padronizado. Uma vez na frigideira, ele chega a dourar levemente ao mesmo tempo que a cozinha é tomada pelo cheiro de carne defumada. E em meio a camadas de pão, alface, tomate, cebola e molho escolhidos pelo freguês, ele tem gosto e até textura que lembram um hambúrguer de carne bovina. Na verdade, porém, não é carne. Trata-se de uma receita cujo principal componente é a proteína de ervilha, um ingrediente produzido apenas em alguns países da Europa, nos Estados Unidos e no Canadá. A descrição se refere ao Burger Gourmet da marca brasileira Superbom, mas poderia ser aplicada a diversas outras opções de proteínas alternativas que simulam a experiência de comer carne, mas são feitas à base de vegetais – “plant based”, expressão importada dos EUA que faz sucesso entre o público ligado em tendências alimentares. A receita é novíssima, mas a demanda é grande. Apenas uma empresa americana, a Beyond Meat, vendeu 25 milhões de burgers desde que surgiu, há menos de dois anos. O mercado aquecido motiva uma acirrada disputa em busca da liderança.


O hambúrguer da Superbom é o resultado de meses de pesquisa usando a proteína de ervilha e foi lançado oficialmente na edição deste ano da Apas, uma das principais feiras de produtos para supermercados do mundo, realizada no início de maio, em São Paulo (SP). É feito sem colesterol, com metade das gorduras de uma versão tradicional e os mesmos valores proteicos. Leva ainda um suco de beterraba para parecer que está “sangrando”. “Uma das principais reclamações de quem adota uma dieta vegana, por exemplo, é a falta de produtos saborosos. Até existem opções, mas elas não oferecem aquele prazer”, diz Cristina Ferreira, diretora industrial e P&D da Superbom. “Agora, esse mercado está na moda. Está crescendo bastante. Trabalhamos há muitos anos com opções mais tradicionais, mas viajei várias vezes para Estados Unidos, Europa e Israel para conhecer as inovações”, afirma. A Superbom oferece produtos ao público vegetariano há mais de 50 anos.

O Burger Gourmet não é a única opção disponível para os brasileiros. O Futuro Burger, criado pela food tech Fazenda Futuro, também é feito de proteína de ervilha, com suco de beterraba adicionado para simular o sangue. Sob o slogan “É Free Boi”, o lanche já foi servido em casas renomadas como o TT Burger, de Thomas Troisgros, no Rio de Janeiro (RJ), e a Lanchonete da Cidade, na capital paulista. Em breve, chegará a alguns pontos de venda selecionados, como o Eataly e unidades das redes St. Marche e Pão de Açúcar. A startup é uma criação de Marcos Leta, o idealizador da marca de sucos Do Bem, comprada pela AmBev em 2016 por um valor não revelado.

O sucesso dessas iniciativas se deve principalmente a uma mudança na mentalidade dos consumidores, habilmente captada pelas equipes de marketing das empresas. Na última década, uma parcela da população tem aderido ao “flexitarianismo”, um termo que se refere àqueles que seguem uma dieta baseada em vegetais, mas que se permitem comer carne em algumas ocasiões. De acordo com uma pesquisa realizada nos Estados Unidos, apenas 3,4% dos habitantes se declaram vegetarianos. Os veganos, então, representam 0,4%, uma minoria dentro de outra. É por isso que toda a publicidade em cima dessas proteínas alternativas é voltada para carnívoros, interessados em provar algo diferente, ou para os flexitarianos, que podem manter sua dieta sem culpa. Muitos desses produtos são apropriados para veganos, mas esse detalhe, em alguns casos, fica escondido em um canto da embalagem. A revista The Economist publicou um artigo em que afirma que a popularidade desse tipo de alimentação vai levar o veganismo ao “mainstream” – mesmo que muitos não se deem conta disso.

UM NEGÓCIO BILIONÁRIO

Enquanto os brasileiros ainda estão descobrindo os sabores dos hambúrgueres plant based, nos Estados Unidos a batalha já está muito mais avançada. O mercado americano está sendo rapidamente inundado por opções de proteínas alternativas, mas duas empresas largaram na frente e são as principais potências entre as carnes que não são carne: a Beyond Meat e a Impossible Foods.

Além dos nomes divertidos, as duas compartilham uma vontade insaciável de levar seus produtos a maior quantidade de americanos. A Beyond Meat, de Los Angeles, na Califórnia, surgiu em 2014 e dois anos depois já lançava a primeira versão de sua proteína alternativa, feita para ser vendida ao lado das bandejas de carne de verdade nos mercados. Desde então, já criou versões para linguiças de frango e porco e fechou parcerias com a rede de supermercados Whole Foods, especializada em alimentação saudável, e a lanchonete Carl’s Jr., entre outras. No início de maio, a food tech abriu seu capital na bolsa de valores americana e o IPO foi um sucesso enorme (muito maior que o da Uber, outra startup que passou a oferecer ações nos últimos tempos). Hoje, é avaliada em US$ 3,5 bilhões.


Sua principal concorrente, a Impossible Foods, não fica muito atrás. Poucos dias após o IPO da Beyond Meat, a startup anunciou uma nova rodada de financiamento, a quinta, cuja captação chegou a US$ 300 milhões, com recursos de celebridades como Jay-Z, Katy Perry e Serena Williams. No total, já captou US$ 775 milhões. Ela é responsável pela produção do Impossible Whopper, versão à base de plantas do famoso Whopper do Burger King. Lançado inicialmente em algumas lojas selecionadas da rede, em breve estará disponível em todas as 7,2 mil unidades instaladas nos Estados Unidos. Seu Impossible Burger já pode ser encontrado em 7 mil locais, incluindo universidades, lanchonetes, supermercados e parques da Disney.

E essas são apenas as duas principais empresas. Outras food techs badaladas criaram substitutos para os ovos, caso da Just, que começou a chamar a atenção com sua maionese sem ovos e recentemente lançou o Just Egg. Até as grandes empresas estão se envolvendo nesse mercado. A Tyson Foods detinha uma pequena parte da Beyond Meat, mas decidiu vender sua participação antes do IPO e agora planeja lançar sua própria linha de proteínas alternativas. A Nestlé também afirmou que, no segundo semestre, colocará nas prateleiras da Europa e dos Estados Unidos seus hambúrgueres à base de plantas.

Muito dinheiro já foi investido em pesquisa para chegar aos resultados atuais. De acordo com um estudo realizado pelo The Good Food Institute, uma organização americana que promove alimentos inovadores como alternativa às proteínas animais, foram US$ 16 bilhões em dez anos, apenas nos Estados Unidos. Desse total, US$ 1,3 bilhão foi registrado somente em 2017 e 2018 – e sem contabilizar a recente rodada da Impossible Foods. Os dados levam em conta todas as alternativas feitas à base de vegetais, não apenas as carnes. A categoria mais desenvolvida é a das versões vegetais de leite, que representam US$ 1,8 bilhão em vendas. Para efeito de comparação, as carnes plant based somam US$ 760 milhões mesmo após o aumento de 23% nas vendas de 2017 para 2018.

O problema é a falta de matéria-prima, e casos de produções atrasadas estão se tornando comuns. O uso da proteína de ervilha, bem como suas variações, como farinha, fibra e carboidrato, é uma solução recente. “Envolve uma tecnologia para desenvolver proteínas e fibras específicas. Existem cultivares desenvolvidos especialmente para ter um alto teor proteico. Ou você pode começar pela ervilha tradicional e trabalhar a partir dela”, diz Cristina. Nem todas as versões produzidas atendem ao alto padrão de qualidade necessário para a produção das carnes alternativas. É o caso do Brasil. A Superbom importa a matéria-prima da Europa. E, assim, cada fabricante tenta se garantir principalmente por meio de contratos de exclusividade com produtores. A Beyond Meat recebe a proteína da americana Puris. A Impossible Foods vai usar os recursos captados na última rodada para aumentar sua produção – e os executivos da empresa afirmaram que a companhia não descarta nenhuma possibilidade para arrecadar mais dinheiro, já que não enxergam um futuro próximo em que ela seja capaz de atender à demanda.

Quem espera lucrar muito com isso é o Canadá. O governo daquele país vai dedicar US$ 1 bilhão a financiamento de pesquisas para cinco grandes conglomerados. Um deles, o Protein Industries Canada (PIC), receberá US$ 153 milhões justamente para estudar o mercado de proteínas alternativas. Em entrevista ao Financial Post, Carlos Dade, do laboratório de ideias Canada West Foundation (CWF), responsável por discutir questões de interesse do país, resumiu a meta do governo: “O objetivo é a dominação mundial”.

A PRÓXIMA FRONTEIRA

Se as proteínas vegetais já são uma realidade nas prateleiras dos mercados, a situação é um pouco diferente com as carnes feitas em laboratório. Criadas a partir de células animais, mas sem a necessidade de abater nenhum bicho, elas são vistas como o estágio seguinte rumo a uma produção menos danosa ao meio ambiente, mais ética e, principalmente, sustentável. O problema ainda é o custo de produção. Em 2013, cientistas conseguiram elaborar um hambúrguer usando células de vacas criadas em fazendas orgânicas. A pesquisa custou o equivalente a US$ 320 mil. Desde então, esse valor já caiu bastante. Em dezembro de 2018, a Aleph Farms afirmou ter sido a primeira startup a criar um bife em laboratório, em um processo que levou entre duas e três semanas e custa US$ 50 dólares por unidade.

Além dos custos, há uma grande dificuldade em reproduzir a textura da carne de verdade. Fazer um hambúrguer é simples, mas experimente criar um corte nobre usando apenas instrumentos de laboratório. A Aleph não está sozinha nessa busca. A New Age Meats desenvolveu um protótipo de salsicha, e a Memphis Meats trabalha em uma versão de tirinha de frango.

Especialistas acreditam que essas inovações podem causar uma disrupção em um mercado de US$ 200 bilhões, mas essa utopia (ou distopia, dependendo do seu tipo de dieta) ainda está longe de se tornar realidade. Na dúvida, os gigantes do setor estão de olho. A Cargill, uma das maiores empresas de produção e processamento de alimentos, investiu tanto na Aleph, em uma rodada na qual a startup captou US$ 12 milhões, quanto na Memphis. Não importa qual chegará primeiro às prateleiras, a participação nesse mercado está garantida.

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TAGS: Carnes, FoodTech, Proteína alternativa