Edição 9 - 14.06.18
Por Clayton Melo
O físico e matemático Arquimedes disse certa vez: “Dê-me um apoio e uma alavanca e eu moverei o mundo”. A frase do pensador grego, que também foi engenheiro e inventor de máquinas para usos civil e militar, entre outras coisas, serve para ilustrar a busca da humanidade, ao longo dos séculos, por desenvolver tecnologias que permitissem superar desafios e realizar qualquer coisa. Mais de 2 mil anos depois, chegamos a um momento em que a alavanca da humanidade nunca foi tão grande e poderosa, sendo capaz de gerar impulsos em escalas inimagináveis há até pouco tempo. E tudo isso tem a ver com as novas fronteiras que se abrem para a agricultura, que entra agora em uma era de transformações radicais em sua forma de produção por conta do uso de novas tecnologias digitais, como Inteligência Artificial, Internet das Coisas, algoritmos e Big Data.
O trator da revolução digital chegou à lavoura. É a mesma máquina possante que já fez tremer as bases de todas as indústrias. Varejo, transporte, finanças, mídia, imobiliário – todos esses setores foram forçados pelo digital a rever métodos de produção, modelos de negócios, gestão, relacionamento com clientes e forma de operar. Há um maravilhoso mundo novo à disposição – o risco é ficar fora dele. Por isso, o Brasil tem uma reflexão fundamental a fazer: qual é – ou deveria ser – o papel da inovação em nosso projeto de nação? Para ser mais específico, em que setor econômico teríamos as melhores condições de inovar, em função de nosso histórico econômico, geográfico, cultural e social? A resposta é o agronegócio.
Além de tratar de um campo em que o Brasil tem vocação, é nesse mercado que está se formando uma das próximas grandes ondas tecnológicas do mundo, que tem atraído um número crescente de fundos de investimentos, companhias de tecnologia e empreendedores de diversos países. É a revolução AgTech, termo cunhado nos EUA para se referir às empresas de tecnologia aplicada ao agronegócio. Diante disso, cabe outra reflexão: vamos assistir ao futuro passar diante de nossa porteira ou vamos ser protagonistas nessa nova etapa?
O primeiro passo para responder a essa pergunta é inserir o agronegócio no mesmo contexto de outros mercados. Isso pode nos levar a enxergar o setor sob uma nova ótica: a do Agronegócio Exponencial. Mas o que é isso exatamente? Uma das ideias mais discutidas nas rodas de negócios e de inovação internacionais hoje em dia são as chamadas Organizações Exponenciais. Foi dessa forma que três fundadores da Singularity University, um dos centros de pensamento mais modernos do mundo na atualidade, definiram as empresas que são capazes de provocar transformações profundas na maneira de fazer negócios em seus setores. “Aquelas cujo impacto (ou resultado) é desproporcionalmente grande – pelo menos dez vezes maior – comparado ao de seus pares, devido ao uso de novas técnicas organizacionais que alavancam as tecnologias aceleradas”, escrevem Salim Ismail, Michael Malone e Yuri Van Geest, da Singularity University, no livro Organizações Exponenciais – Por que elas são 10 vezes melhores, mais rápidas e mais baratas que a sua (e o que fazer a respeito), publicado no Brasil pela HSM.
Entre os principais exemplos desse tipo de organização estão Uber, Airbnb, Netflix, Google e Amazon. Elas têm em comum o fato de operarem a partir de um mundo baseado em informação, transformarem o modo de produção em seus setores, fazerem uso intensivo de tecnologia e terem negócios altamente escaláveis. “O propulsor desse fenômeno é a informação. Uma vez que todo domínio, disciplina, tecnologia ou setor é habilitado para a informação e alimentado por fluxos de informação, sua relação preço/desempenho começa a dobrar aproximadamente a cada ano”, escrevem os autores. Atualmente, várias tecnologias-chave seguem essa lógica. “Essas tecnologias incluem a Inteligência Artificial, robótica, biotecnologia e bioinformática, medicina, neurociência, ciência de dados, impressão 3-D, nanotecnologia e até mesmo certos aspectos da tecnologia.” O espetacular nisso é que nunca na história houve tantas inovações juntas avançando nesse ritmo.
É exatamente nesse ponto que a nova economia encontra o agronegócio. Nos últimos tempos, especialmente de dois anos para cá, cada vez mais empresas de tecnologia resolveram sujar as botas e levar para a lavoura soluções baseadas em sistemas digitais. O setor já se acostumou com as notícias sobre o avanço das startups AgTech, responsáveis por soluções acessíveis de monitoramento de fazendas e gado, softwares de gestão adaptados para o campo, rastreamento por satélites e computadores instalados em máquinas agrícolas. Isso é só o começo. A próxima fronteira é a evolução desse processo, com a disseminação de soluções ainda mais sofisticadas, que vão resultar em fazendas autônomas, altamente automatizadas e com robôs espalhados por todos os lados.
CONEXÃO E INTELIGÊNCIA
A própria Singularity, criadora do conceito, está atenta à possibilidade do surgimento de organizações exponenciais no campo brasileiro. No evento em que lançou suas bases no Brasil em parceria com a HSM, em abril passado, incluiu no programa promissoras startups do setor desenvolvidas por jovens que frequentaram os seus cursos nos Estados Unidos. Um deles é Mariana Vasconcellos, sócia da Agrosmart, que desenvolveu um sistema inteligente de sensores para irrigação, e Fabio Teixeira, fundador da Hypercubes, cujo projeto é produzir, nas suas próprias palavras, “uma constelação de nanossatélites com machine learning, que podem analisar a composição química do solo”. É uma ideia ainda em fase inicial, mas já apontada por especialistas como disruptiva. “Isso permite a gente olhar para uma plantação e determinar o nível de fertilidade do solo, estresse, espécies invasoras, doenças e até os nutrientes que estão presentes nas flores das plantas”, afirma Teixeira.
Ideias transformadoras como essa correm em paralelo ao processo que busca levar a internet ao campo. A conexão nas áreas rurais é frequentemente apontada como um dos principais desafios do setor e, por isso, muitos esforços estão sendo feitos para desenvolver modelos eficientes e baratos para estabelecer redes de transmissão de dados que atinjam as distantes áreas produtoras do País. Nesse sentido, grandes empresas como a fabricante de máquinas John Deere ou o grupo sucroenergético São Martinho têm se associado a instituições de desenvolvimento de tecnologias de comunicação como o CPqD.
Em São José dos Campos, no interior de São Paulo, a startup aeroespacial Altave também mira nesse problema. Fundada em 2011 por dois engenheiros recém-formados pelo ITA e sediada no Parque Tecnológico de São José dos Campos, a empresa leva internet a áreas remotas por meio de balões que podem subir a alturas entre 100 e 300 metros. Preso a um cabo ligado a um guincho, no solo, cada balão pode carregar câmeras, modem de 4G ou equipamentos de conexão via rádio ou satélite. “Esse tipo de tecnologia foi inicialmente pensado para o setor de defesa, com utilização pela Marinha, Exército e Aeronáutica”, diz Ismael Jorge Costa Neto, membro da equipe de desenvolvimento e produto da Altave. “O DNA da Altave é defesa e segurança, mas vimos que havia muito espaço para essa nossa tecnologia na área civil no Brasil, inclusive no agro.” Em regiões sem nenhuma conectividade, os testes da empresa mostram que o balão é capaz de oferecer sinal Wi-Fi de boa qualidade em um raio de até 40 quilômetros. A solução também serve como instrumento de segurança nas fazendas, pois auxilia na vigilância, uma questão que tira o sono dos produtores.
Resolvido o gargalo da conectividade, porém, surge uma questão ainda mais complexa – e, assim, uma oportunidade ainda maior para o surgimento de negócios escaláveis: com a geração de dados agrícolas em tempo real crescendo de forma exponencial, será necessário buscar inteligência capaz de processá-los e transformá-los em informação valiosa aos produtores e empresas do agro.
Nessa área, quem traz soluções disruptivas já começou a crescer em alta velocidade. Há pouco mais de um ano, por exemplo, a Solinftec era apenas uma promissora desenvolvedora de soluções de automação para processos agrícolas, com grande penetração no setor sucroenergético. Mas já vislumbrava o impacto que a adoção de tecnologias como a Internet das Coisas (IoT) e a inteligência artificial poderiam ter se aplicadas na gestão agrícola. Com recursos provenientes de investidores americanos do fundo TPG – que já havia aportado seus dólares em sucessos exponenciais com Airbnb e Uber –, a empresa de Araçatuba (SP) lançou-se no desafio de avançar nesses campos. Desenvolveu a primeira assistente virtual específica para o agronegócio, a Alice, que é um sistema de inteligência artificial que conversa com o produtor rural, auxiliando-o com informações em tempo real sobre a lavoura e, assim, ajudando-o a tomar decisões. “A Alice, que utiliza um sistema baseado em redes neurais e deep learning, está sendo treinada para analisar grandes massas de dados”, afirma Daniel Padrão, CEO da Solinftec. “Ela é capaz de detectar padrões que escapam ao olho humano. O objetivo é aumentar o rendimento, indicar quais seriam as melhores práticas, comparar, alertar e ajudar a programar as atividades da forma mais eficiente possível.”
O uso de um sistema inteligente como esse é importante porque, até então, as dúvidas eram respondidas por meio do instinto do produtor e a partir da análise de um conjunto impreciso e incompleto de informações. Com a inteligência artificial, são respondidas de forma automática e sem erros de registros. A Solinftec transforma toda essa quantidade de dados em inteligência por meio de algoritmos e softwares proprietários. Com esse conjunto tecnológico, rapidamente tornou-se uma das maiores AgTechs do mundo, praticamente dobrando a área coberta por seus produtos em dois anos. Hoje são mais de 8 milhões de hectares, o equivalente a três vezes a área de um país como a Bélgica. No último ano, ampliou sua atuação também para as culturas de soja, milho, algodão, citros e café e internacionalizou suas operações, atuando também nos Estados Unidos, na Austrália, na África do Sul, na Colômbia, no Peru e na Guatemala.
AGRICULTURA DA INFORMAÇÃO
Na década passada, a indústria de máquinas agrícolas lançou os primeiros equipamentos conectados e difundiu o conceito da agricultura de precisão. Na era exponencial, ela evoluiu para algo que pode ser chamado de agricultura da informação, seguindo o conceito elaborado pelos autores da Singularity, usando os dados para extrair inteligência e, assim, propiciar melhoria de eficiência. Nesse novo ambiente altamente tecnológico do campo, os drones começam a ocupar lugar de destaque. Só para dar uma ideia do potencial para a agricultura, essas pequenas aeronaves não tripuladas foram apontadas pelo World Economic Forum’s Meta-Council on Emerging Technologies como uma das dez tecnologias mais promissoras do mercado. O estudo indica que, em 2017, esse setor poderia faturar mais de US$ 6 bilhões e produzir mais de 3 milhões de equipamentos.
Não é por acaso que as startups de monitoramento aéreo ganham espaço rapidamente no Brasil. Por meio de inteligência artificial e tecnologias embarcadas, a catarinense Horus tem uma plataforma de processamento de imagens que pode ser acessada por meio de smartphone, tablet ou notebook. Os drones fabricados pela empresa possibilitam, por exemplo, obter índice de vegetação, fazer contagem de plantas, identificação de pragas e doenças e descobrir deficiência nutricional. “Nossas aeronaves possuem sensores similares a sistemas utilizados apenas em satélites”, diz Lucas Bastos, diretor de pesquisas da empresa. Fundada em 2014, a Horus recebeu neste ano investimento de R$ 3 milhões do Fundo de Inovação Paulista (FIP), gerido pela SP Ventures.
A agricultura de informação também começa a se espalhar, em breve, nos sistemas de pulverização de precisão, que prometem racionalizar o uso de defensivos agrícolas e, por consequência, reduzir custos com essa operação. A Smart Agri, startup brasileira especializada na experimentação e consultoria para implementação de tecnologias na agricultura, já está utilizando esse recurso no mercado brasileiro. Chamado de Weddit, o sistema de precisão utilizado pela Smart Agri foi desenvolvido na universidade de Wageningen, na Holanda, e foi testado inicialmente por um produtor em Jaborandi, na Bahia. A tecnologia possui uma largura total de 36 metros e é composta por sensores LED, que detectam em um milissegundo as plantas daninhas por fluorescência de clorofila e por válvulas capazes de acabar com as ervas a uma distância de um metro do solo. “Essa tecnologia tem proporcionado ganhos com redução no uso de agroquímicos na faixa de R$ 100 por hectare, com um excelente custo-benefício”, afirma o engenheiro agrônomo Marcos Nascimento, gerente Comercial da Smart Agri. “O gasto com herbicidas para o controle de plantas resistentes impacta cada vez mais os custos de produção, e essa tecnologia vem para ajudar a resolver esse problema.”
A DISRUPÇÃO VEM DE FORA
Uma análise mais aprofundada do atual boom de startups AgTech permite enxergar outro aspecto que envolve o Agronegócio Exponencial. Uma grande diferença entre as organizações exponenciais de outros setores e do agro tem a ver com uma palavrinha que virou mantra dos novos empreendedores: disrupção. Nos demais setores da economia, os modelos disruptivos foram criados pelo desenvolvimento de novas tecnologias, que nos mostraram soluções para problemas que nem sabíamos que existiam. Simplesmente mudaram nosso olhar. Podemos citar aqui o caso da Netflix, que está revolucionando o mercado de transmissão de filmes. Antes dela, ninguém se importava em ver TV seguindo a grade de programação estabelecida pelas emissoras. No agro, porém, o motor da disrupção não está nas nossas mãos e mentes. É externo e extremo. Mudar não é opção.
Os fatores que provocam a transformação no agro são, por exemplo, as mudanças climáticas, pressão da sociedade, impacto ambiental e mudança de hábitos. A tecnologia surge como solução dos problemas impostos por esses fatores. Isso nos leva a um cenário completamente diferente daquele com o qual o setor trabalhou e multiplicou a produção nos últimos anos. No mundo hiperconectado, nem a lavoura escapa. O que se vê nos mais avançados mercados consumidores é um novo comportamento em relação aos alimentos. Não basta encher a barriga, tem de satisfazer a consciência. Teremos bilhões de bocas dispostas a matar a fome com o que for oferecido, mas atender aos compradores dispostos a pagar mais será um desafio com várias frentes. Entre as tendências que vão moldar a agricultura num futuro próximo estão o fato de que o consumidor decide e, assim, influencia a indústria de alimentos; a busca por alternativas (transgênicos ou orgânicos); transparência (a nova geração quer saber o que come), o que requer o uso de tecnologias como o blockchain; a agricultura urbana; fazendas autônomas (sistemas de automação para operações antes executadas pelo homem); e a inteligência artificial.
Diante de um cenário tão diferente daquele que formou a agricultura ao longo do século 21, é preciso se reinventar. O Brasil ficou fora de todas as outras ondas tecnológicas: mainframe, com IBM, depois PC (Apple, Microsoft), softwares e redes sociais. Ou por não ter escala ou por tomar decisões erradas, como a reserva de mercado. O fato é que o País não tinha vocação nem cultura empreendedora nesses mercados. No novo cenário do Agronegócio Exponencial, abre-se uma oportunidade única. A revolução AgTech está em franca evolução, uma corrida com gente grande e capitalizada. Grandes grupos, investidores de risco com apetite. Nas ondas anteriores, o Brasil não estava no radar. Éramos apenas compradores. E nem comprávamos o que estava na ponta. Com o agro é diferente. Nesse campo, só o Brasil tem espaço para crescer, possibilidade de obter escala e capital humano qualificado em razão de ter centros de excelência acadêmica, como a Esalq-USP e a Universidade Federal de Viçosa, entre outras.
Há muito a ser feito, no entanto, para que o Brasil consolide a condição de protagonista do Agronegócio Exponencial. O mercado vem fazendo a sua parte, com a formação de um ecossistema AgTech que aos poucos se reforça, com a chegada de investidores, novos empreendedores e a academia. Falta ver no horizonte, porém, sinais de que o tema possa se tornar um projeto de nação, o que é algo mais complexo e que depende de outros agentes, como o poder público. O caminho é longo e desafiador – e estamos apenas no começo.
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