A dieta da vovó e os ativistas de WhatsApp

Toda vez que acertava na receita minha falecida vozinha costumava dizer, do alto de toda liturgia qu


09.05.18

Ibiapaba Netto, 42 anos, é jornalista e cursa o MBA de economia e gestão em relações governamentais na FGV. Trabalhou em alguns dos mais importantes veículos de comunicação do Brasil, tendo sido repórter no jornal “O Estado de São Paulo”, repórter e editor na revista Dinheiro Rural. Ao longo de sua carreira, se especializou na cobertura do agronegócio brasileiro, assim como na cobertura nas questões ligadas aos desafios para a produção de alimentos no mundo. Desde 2013 ocupa o cargo de diretor-executivo da CitrusBR. Em 2017 lançou pela editora Aberje o livro “A notícia relevante” que versa sobre os ritos decisórios nas redações e as relações entre fonte, assessoria de imprensa e jornalista.

Toda vez que acertava na receita minha falecida vozinha costumava dizer, do alto de toda liturgia que envolvia a prática de cozinhar, que o rango estava  “de comer re-zan-do”. O que ela não sabia é que, muito depois de ela deixar essa nossa vida mundana, o ato de se alimentar se converteria na mais nova religião da humanidade, principalmente na era dos ativistas de WhatsApp. A velha máxima de que “você é o que você come” foi elevada à enésima potência e, muito mais do que os efeitos de nossa alimentação em nosso corpo, aspectos morais foram adicionados à receita da modernidade.

Comer ou não carne, saladas orgânicas ou convencionais, com ou sem lactose, com ou sem glúten são escolhas muito mais ligadas a atributos de aceitação social e pertencimento a uma determinada “tribo” (para não dizer classe) do que aos efeitos que esses alimentos têm sobre o estômago. Ser orgânico-vegano-lactose-free é mais nova forma de ser diferente e, ao mesmo tempo, de pertencer a um clube de gente descolada que pensa em salvar o mundo dos atômicos puns bovinos sem ter que fazer nada de efetivo além de mastigar alguma coisa e, talvez, reciclar o lixo.

A escolha de um alimento está ligada a alguns atributos como nutrição (me alimenta?), hidratação (no caso de algumas bebidas), indulgência (é gostoso?) e aceitação social (o que ele diz sobre mim?). Uma pessoa que anda com uma garrafinha de água mineral parece mais esportiva, embora menos divertida, daquela que carrega uma latinha de cerveja. Uma pessoa que pede um suco de laranja parece mais ter hábitos mais saudáveis do que quem pede uma cerveja. A escolha de um determinado vinho certamente fala mais sobre a personalidade de uma pessoa do que uma consulta na melhor cartomante.

Fato é que as pessoas escolhem o que comer não apenas pelo o que o alimento oferece, mas pelo o que aquela comida “fala” sobre a forma como aquela pessoa é vista perante amigos, parentes e colegas de trabalho. Se minha vozinha ainda cozinhasse nos dias de hoje provavelmente ouviria algum discurso inflamado, de algum neto-ativista-de-rede-social, dizendo que aquele delicioso assado é um perigo para a saúde, que o açúcar do pudim está fazendo as pessoas “cada vez mais doentes”. E do alto da experiência de quem viveu uma vida longa, plena, cheia de boas conversas, boa bebida e boa comida, diria ao aprediz de revolucionário: “Coma de tudo um pouco. Saia da cama com sono e da mesa com fome”. Saudades das receitas e da dieta da vovó.