A revolução das máquinas

Por Clayton Melo Na maior parte da história da agricultura, a produtividade foi, sobretudo, resulta


Edição 4 - 18.10.17

Por Clayton Melo

Na maior parte da história da agricultura, a produtividade foi, sobretudo, resultado da capacidade humana. Se o número de homens e mulheres no plantio e na colheita dobrasse, a comunidade dobrava sua produção. Com a Revolução Industrial, a produção no mundo deu um salto, pois um único indivíduo passou a operar máquinas que faziam o trabalho de dez cavalos ou centenas de trabalhadores. Ao longo do século 20 isso teve efeito direto nas fazendas, que, graças à tecnologia, exibem atualmente um estágio notável de automação e sofisticação – levantamento da Comissão Brasileira de Agricultura de Precisão indica que 67% das propriedades agrícolas do País usam algum tipo de tecnologia, seja na área de gestão dos negócios, seja nas atividades de cultivo e colheita da produção. A agricultura, tal como a conhecemos hoje, no entanto, está entrando em uma etapa e vai ser transformada radicalmente. Nessa nova fase, algoritmos, Inteligência Artificial e Internet das Coisas (IoT) estão se encontrando com os motores do campo. Ocupando um espaço nas máquinas agrícolas – a cabine – que antes era exclusivo para um operador de carne e osso, essas novas tecnologias vão elevar a produtividade e a eficiência nas lavouras a níveis espetaculares. Que parte desse futuro já se tornou realidade, como será a máquina do futuro e o que elas vão fazer pelos produtores no desafio de alimentar a população mundial, que deve chegar a 9 bilhões de pessoas em 2050?As protagonistas dos próximos capítulos da revolução agrícola são as máquinas autônomas. Segundo reportagem do site americano Agriculture.com, estima-se que cerca de 52% dos agricultores nos EUA já utilizem alguma forma de direção automática, e a previsão para 2018 é de que esse índice chegue a 64%. Se as previsões de um estudo feito em 2013 pelo Eno Center for Transportation se confirmarem, um veículo totalmente autônomo estará disponível no mercado em 2025, diz o site.

O fato é que a cada dia a tecnologia avança um talhão na busca por sistemas que permitam a tratores, colhedoras e implementos trabalhar e tomar decisões por sua conta e risco. Risco, aliás, é justamente o que se busca reduzir com o uso dos equipamentos inteligentes. O raciocínio é que, dotados de Inteligência Artificial e com a capacidade de se comunicarem em tempo real com outras máquinas, com sensores espalhados pela lavoura ou com um operador humano à distância, eles minimizem ou eliminem perdas e imprevistos durante o processo de plantio e colheita.

A busca por equipamentos autônomos nas fazendas não começou agora. A fabricante americana John Deere, por exemplo, apresentou um protótipo do gênero que operava com um pulverizador de arrasto no início da década de 2000, durante a Farm Progress Show, principal feira do setor dos Estados Unidos. De lá para cá, muita coisa aconteceu. Projetos nasceram e morreram, a tecnologia no setor avançou muito, mas as fazendas ainda não podem contar com tratores que prescindam totalmente de um motorista. O que existem são máquinas com alto grau de automação, mas que ainda precisam da interferência humana em alguma etapa do processo. Agora, parece que está se aproximando o dia em que esse cenário vai mudar.

A CNH Industrial, um dos principais grupos globais no setor de bens de capital, colocou seus veículos alguns hectares adiante nessa jornada tecnológica. Por meio de suas marcas Case IH e New Holland Agriculture, o núcleo de inovação da companhia desenvolveu uma tecnologia de trator autônomo que promete abrir a porteira da agricultura do futuro. O conceito trabalhado proporcionaria melhor aproveitamento da mão de obra, integração com as frotas do maquinário atual, operação 24 horas por dia com monitoramento de dados em tempo real e, no futuro, a habilidade de responder automaticamente a ocorrências meteorológicas.

lemática já estão disponíveis nos tratores atuais, mas as tecnologias autônomas levam esses mecanismos a um patamar muito superior. O conceito do trator autônomo da CNH Industrial foi projetado para permitir a implantação, o monitoramento e o controle completamente remoto das máquinas. O projeto está baseado nos tratores convencionais de alta potência Magnum, da Case IH, e T8 NH (Drive -TM), da New Holland. Eles usam GPS em conjunto com os sinais de correção enviados por satélites. Isso permitiria uma condução precisa, registro e transmissão em tempo real dos dados do campo. Para desenvolver seu conceito de trator sem motorista, a CNH Industrial contou com a ajuda de seu fornecedor de tecnologia, a ASL (Autonomous Solutions Incorporated), uma empresa sediada no estado de Utah, nos EUA.

VITRINE TECNOLÓGICA
A Case IH apresentou o trator-conceito Magnum na Farm Progress Show em agosto de 2016, nos EUA, e o traz agora para a Agrishow 2017, a principal vitrine tecnológica do mercado de máquinas agrícolas do Brasil. O veículo não tem cabine. “Em várias partes do mundo, encontrar mão de obra qualificada durante a temporada de safra é um desafio constante para as empresas e produtores rurais”, afirmou Andreas Klauser, presidente mundial da Case IH. “Enquanto hoje oferecemos piloto automático e telemetria em nossos equipamentos, para o gerenciamento remoto das máquinas e funcionários, esse conceito de trator autônomo possibilitará uma maior eficiência operacional para tarefas como preparo de solo, plantio, pulverização e colheita”, afirmou.

O veículo experimental, cuja versão comercial está prevista para 2020, foi criado para validar a tecnologia e colher impressões dos clientes a respeito dos recursos e possíveis ajustes. O trator Magnum utilizado no projeto foi todo redesenhado. Ele foi construído com uma interface interativa, permitindo o monitoramento remoto de operações pré-programadas. Por meio de um radar – com reflexão, geração e telemetria de luz – e câmeras de vídeo a bordo, o veículo percebe os obstáculos parados ou em movimento no caminho e para até que um operador, avisado por alertas sonoros e visuais no smartphone ou tablet, programe um novo percurso. Se começar a chover na lavoura, por exemplo, o trator cessa automaticamente o que estiver fazendo e segue para um campo seco para trabalhar, diz a fabricante. Remotamente, uma pessoa pode supervisionar toda a operação por meio de um iPad ou notebook.

“Quem administra a propriedade pode supervisionar as atividades de várias máquinas por meio de uma interface móvel, enquanto cuida de outras tarefas ou até mesmo opera outro veículo”, explicou Rob Zemenchik, gerente de marketing de produto global de Agricultura de Precisão (AFS, na sigla em inglês) da Case IH.O objetivo é fazer com que, no futuro, vários tratores do gênero funcionem simultaneamente de forma articulada, como uma frota ou pequenos grupos em campos separados, com mapas e trajetos programados previamente. Isso quer dizer que, enquanto uma máquina puxa um implemento, outra operaria uma plantadeira. “As oportunidades para o aumento de eficiência vão ser enormes”, afirma Zemenchik.

O trator autônomo conceitual da New Holland, por sua vez, funciona tanto de forma independente, por meio de controle em tempo real dos dados e monitoramento remoto, como liderada por um condutor, pois o modelo mantém a cabine do motorista. O espaço foi preservado para dar opções ao produtor, pois em algumas situações a mecanização não é recomendada – é o caso de transporte em estradas, por exemplo. Em ambos os formatos, as máquinas podem ser integradas às frotas convencionais.

COISAS CONECTADAS

O cenário futurista das máquinas autônomas não surge no vácuo. Ele está intrinsicamente ligado ao contexto da tecnologia global, que vê o avanço rápido de modalidades como Inteligência Artificial e Internet das Coisas. Os supercomputadores inteligentes, que aprendem sozinhos e podem realizar tarefas humanas de forma independente, estão presentes em um número cada vez maior de setores econômicos, do financeiro ao varejo, passando por sistemas de companhias aéreas e comércio eletrônico. Já as coisas que se conectam à internet, como carros, eletrodomésticos, relógios e roupas, também não são mais peças de ficção científica. Sim, essas novas tecnologias ainda estão em estágios iniciais, mas o dado novo é que elas estão mais perceptíveis e presentes na vida das pessoas. Os líderes dessa revolução são os gigantes da tecnologia, como Google, Amazon, Microsoft, Apple e IBM. Os quatro primeiros são responsáveis, respectivamente, pelos assistentes virtuais Assistant, Echo, Cortana e Siri, sistemas que interagem com as pessoas e respondem a perguntas. A IBM, por sua vez, é a criadora daquele que é o maior astro da Inteligência Artificial da atualidade, o computador Watson.A máquina da companhia é capaz de interpretar dados não estruturados vindos da web (em qualquer formato, seja vídeo, texto ou foto), como faz um ser humano, mas a uma velocidade impressionante. Ao seu modo, o IBM Watson pode pensar, graças a algoritmos complexos de Inteligência Artificial baseados em redes neurais e numa tecnologia de aprendizagem chamada deep learning. O equipamento ficou famoso mundialmente depois de vencer os melhores competidores humanos do programa de perguntas e respostas Jeopardy!, em 2011, nos EUA.

Todo esse universo de inovação já está de alguma forma presente no agronegócio. O que se verá daqui para a frente é a intensificação desse processo, com as grandes empresas de tecnologia reforçando suas apostas no setor. É o caso da própria IBM. Segundo Ulisses Mello, diretor do laboratório de pesquisa da empresa no Brasil, a companhia elegeu o agronegócio como uma área estratégica para sua operação no País em 2017. “Neste ano, a IBM está mais focada no agronegócio. Estamos desenvolvendo soluções específicas para esse mercado”, afirma.Exemplo disso foi o lançamento da IBM Agritech, uma plataforma aberta que, municiada por informações de empresas ligadas à agricultura, vai consolidar dados, tecnologias e soluções para resolver problemas do setor. Uma parceira estratégica no projeto é a Agrotools, empresa brasileira com dez anos de mercado e responsável por um dos maiores bancos de dados territoriais do agronegócio tropical. “A circulação de dados e o raciocínio geoespacial ao longo da cadeia produtiva são fundamentais para a transformação digital do campo”, afirma Fernando Martins, presidente da Agrotools. “Estamos construindo com a IBM uma plataforma aberta para o agronegócio, permitindo a circulação de dados, o que vai estimular insights importantes para os participantes do setor.”

Baseada na computação em nuvem, ela une tecnologias utilizadas pela IBM, como computação cognitiva, Internet das Coisas e dados meteorológicos da Weather Company, empresa adquirida em 2015 e que agora trabalha associada às divisões do Watson e de Internet das Coisas. “Há muita informação disponível sobre agricultura, mas elas estão dispersas. Essa plataforma busca organizar esse universo todo”, diz Mello. Por meio da IBM Agritech, será possível obter informações sobre o tempo e recomendações de plantio, adubação e irrigação, colheita e transporte.

A tendência daqui para a frente é de que os maquinários agrícolas, que se transformaram em veículos conectados e inteligentes, trabalhem integrados a plataformas como a da IBM e outras. “Já se nota no exterior uma forte tendência de uso da robótica em maquinários grandes”, afirma Mello. O próximo passo, diz, serão máquinas interagindo com máquinas e realizando atividades diferentes, mas sempre de modo coordenado. “A intercomunicação entre os equipamentos no campo vai ficar mais evidente, e esse movimento chegará aos veículos menores. Os robôs-aranha, que coletam amostras de solo, por exemplo, já são um sinal disso.”Isso quer dizer que em breve tudo no campo estará conectado à nuvem e com acesso em tempo real pelo produtor – falta resolver a questão de acesso à internet nas lavouras, mas isso também é questão de tempo. Já existem projetos em andamento, como o da Usina São Martinho, no interior de São Paulo, para conectar as fazendas (veja reportagem à página X).

INTERNET DAS COISAS
Um dos projetos pioneiros na aplicação de Internet das Coisas no agronegócio no Brasil está sendo desenvolvido pela Stara em parceria com a companhia alemã de software SAP. Pelo acordo, a fabricante brasileira, que já utiliza sensores em seus tratores, criou um sistema de telemetria baseado na plataforma SAP. A solução de IoT permite ao agricultor monitorar em tempo real os processos de plantio, como quantidade de sementes, preparo, adubação, correção de solo, pulverização e colheita.

Segundo as empresas, o trator utilizado no programa é o primeiro no País capaz de transformar dados do campo em informação para auxiliar o agricultor na tomada de decisão. “Existem fazendas que possuem 400 equipamentos espalhados, entre tratores, pulverizadores e plantadeiras. É impossível gerenciar a quantidade de dados gerada nessas máquinas com base em planilhas e papel”, afirma Cristiano Paim Buss, diretor de pesquisa e desenvolvimento da Stara. “Esse projeto nasceu do desafio de conectar tratores com a base de dados da SAP, em tempo real, para auxiliar os produtores na gestão das propriedades.” O projeto-piloto está sendo executado com um grupo de agricultores.Para a SAP, a parceria com a Stara é parte central no plano para avançar no agronegócio, um setor considerado estratégico para a companhia. O projeto de IoT foi criado no Centro de Pesquisa e Desenvolvimento da SAP, localizado em São Leopoldo, no Rio Grande do Sul, com o apoio do SAP Labs Latin America. “Para elevar a produtividade no campo, o primeiro passo é obter dados confiáveis. As máquinas são importantes nesse processo porque elas são fontes seguras”, afirma Roberto Kuplich, gerente de desenvolvimento e soluções customizadas da SAP Labs América Latina. Tratores e implementos agrícolas podem, por exemplo, captar informações corretas sobre a situação do solo e de sementes, sem a possibilidade de erro na transmissão, como poderia acontecer no caso de um operador registrando os dados. “Antes, esse processo era feito por uma pessoa, que anotava tudo num papel. Hoje, as máquinas coletam esses dados por meio de sensores, o que permite mensurar de forma bem precisa uma série de atividades.”A organização da imensa quantidade de dados gerada nos maquinários é um grande desafio para os produtores. E por isso representa uma grande oportunidade para as empresas de software. A Trimble, companhia americana especializada em agricultura de precisão, está de olho justamente no avanço das máquinas agrícolas, que podem abarcar uma série de soluções voltadas a desempenho.

A empresa lançou na Agrishow 2017, um software – o Trimble Ag Software – que integra dados do que acontece nos tratores e na fazenda com o escritório da propriedade. Outro produto levado para a feira em Ribeirão Preto foi um sistema automático de pulverização seletiva chamado WeedSeeker. Ele aplica o defensivo agrícola apenas onde se encontram as plantas daninhas, o que pode representar uma economia de até 90% nos gastos com produtos químicos. “A agricultura de precisão automatiza todos os processos, tratando o campo como se fosse uma fábrica”, afirma José Bueno, gerente regional de distribuição para a divisão de agricultura da Trimble.

Vislumbrando um cenário de máquinas autônomas, as possiblidades que se abrem são inúmeras, especialmente para o agronegócio brasileiro, explica Bueno. Isso se deve ao grande potencial agrícola do País, mas também ao perfil do produtor brasileiro, que teve de aprender na prática a controlar tudo da porteira para dentro e, por isso, se abriu para a tecnologia. Caso contrário, quebraria. “O produtor nacional é, na média, muito qualificado”, diz Bueno, observando que o próximo passo é o agricultor se preparar para dominar os tratores que dirigem sozinhos. E não se trata de um desafio para um futuro muito distante. “Num prazo talvez de até dez anos haverá diversos equipamentos desse tipo rodando nas fazendas. E o Brasil está inserido nessa tendência.”

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