Quando a tradição sai do prato

Mudanças nos hábitos alimentares, avanço dos ultraprocessados e rotina acelerada ajudam a explicar a queda no consumo do feijão, um dos alimentos mais simbólicos do Brasil
Edição: 48
30 de junho de 2025

Por Romualdo Venâncio

A relação dos brasileiros com o feijão é tão antiga e se tornou tão intensa que parece impossível, ou no mínimo improvável, imaginar dietas sem essa rica fonte de energia, proteínas, fibras, carboidratos, minerais e vitaminas do complexo B. Parecia, pois o consumo do grão está diminuindo no Brasil, devido principalmente a mudanças nos hábitos alimentares. Para se ter ideia, entre 1996 e 2023, o consumo médio de feijão-comum por habitante/ano caiu cerca de 47%, passando de 18,8 para 12,8 quilos, segundo a Embrapa Arroz e Feijão.

A queda provocou impactos sobre toda a cadeia produtiva – e, claro, preocupa quem atua no setor. Com o sinal de alerta acionado, representantes de diferentes áreas ligadas direta ou indiretamente à cultura já se articulam para criar estratégias que ajudem a alterar o cenário, reconquistar o espaço do feijão no mercado nacional, sobretudo no prato da população, e ultrapassar fronteiras.

A área plantada com feijão deve passar dos 2,8 milhões de hectares na temporada 2024/25, segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Embora o número represente uma leve queda de 0,2% em relação à safra anterior, o recuo se acentua quando se observa uma linha do tempo mais ampla. Na safra 1981/82, período de maior destaque do cultivo no País, o feijão ocupava 5,9 milhões de hectares – um volume 46% superior ao atual.

É verdade que o rendimento das lavouras nos anos 1980 era bem mais modesto. Segundo o IBGE, na safra 1981/82 o Brasil produziu 2,9 milhões de toneladas de feijão, com produtividade média de apenas 490 quilos por hectare. Quatro décadas depois, a produtividade mais que dobrou: para a safra atual, a Conab estima 3,3 milhões de toneladas colhidas, com rendimento médio de 1,1 mil quilos por hectare. O desafio, agora, está em estimular o consumo interno – que há anos vem encolhendo – e expandir as exportações, ainda tímidas. “O Brasil exportou 340 mil toneladas de feijão em 2024, muito porque a pesquisa desenvolveu cultivares altamente produtivas e voltadas ao mercado externo, como o mungo-preto e o guandu”, afirma Marcelo Lüders, presidente do Instituto Brasileiro do Feijão e dos Pulses (Ibrafe).

Nesse esforço de internacionalização, o executivo destaca o estreitamento de laços com autoridades indianas. “O feijão não faz parte dos hábitos alimentares da população da Índia, mas eles demonstram curiosidade e abertura para novidades”, afirma. Em abril, Lüders esteve na embaixada da Índia em Brasília, onde se reuniu com o embaixador Suresh Reddy e com o ministro da Agricultura indiano, Shivraj Singh Chouhan, para discutir possibilidades de cooperação entre os dois países. Durante o encontro – e também em visita recente à Índia – Lüders defendeu que o Brasil tem capacidade para exportar até 1 milhão de toneladas de feijão-carioca por ano, desde que o País seja tratado como parceiro preferencial, e não como fornecedor eventual. “Se a Índia precisa alimentar 1,4 bilhão de pessoas, o Brasil pode contribuir com segurança alimentar e qualidade. E isso inclui, com destaque, o nosso feijão-carioca”, escreveu em seu perfil no LinkedIn.

No mercado interno, a principal preocupação é compreender as causas da queda no consumo de feijão. Não há uma explicação única, mas o estilo de vida acelerado tem desempenhado um papel central. Em busca de praticidade e rapidez na cozinha, muitos brasileiros vêm abandonando o tradicional preparo do grão – que exige tempo e atenção, especialmente com o uso da panela de pressão – e optando por alimentos prontos, ultraprocessados ou de preparo instantâneo.

Atenta a essa mudança de hábito, a indústria nacional do feijão já se movimenta para atender às novas demandas. O setor vem apostando em versões enlatadas, congeladas e pré-cozidas, além de desenvolver produtos como snacks, massas e alimentos plant-based. Em 2023, a Embrapa Agroindústria de Alimentos apresentou um concentrado proteico feito à base de feijão-carioca, a variedade mais consumida no País. Iniciado em 2019, o projeto responde ao avanço do mercado de proteínas vegetais, com o objetivo de criar uma alternativa nacional de alto valor nutricional, capaz inclusive de substituir a proteína de ervilha, majoritariamente importada.

A pesquisa científica é um grande impulso para que esse mercado, ainda em desenvolvimento, avance com um ritmo mais forte, como já se vê em países como os Estados Unidos, onde se encontra até nachos à base de feijão. E também para ajudar a reduzir a desvantagem do preço desses derivados no varejo, superior ao de outros alimentos e ainda mais alto em relação ao feijão cru.

A expansão do setor de produtos prontos contribuiria inclusive para que o feijão voltasse a ser mais relevante na alimentação nas escolas, outra área na qual o grão é fundamental. “Em mais da metade das escolas do Brasil, o arroz e o feijão entram só um dia da semana no cardápio”, diz o pesquisador da Embrapa Arroz e Feijão, Pedro Henrique Lopes Sarmento. “Acaba entrando mais macarrão ou alguma outra opção processada, por ser mais barato, mais prático, mas que tem impacto negativo na saúde dos alunos.”

Marcelo Lürdes, da Ibrafe: O Brasil tem capacidade para exportar até 1 milhão de toneladas de feijão-carioca por ano

O pesquisador comenta que a Embrapa está desenvolvendo um estudo nessa direção, com o intuito de fornecer subsídios ao governo federal para a elaboração de políticas públicas que incentivem a cultura de comer arroz e feijão nas escolas. Para muita gente que conta com essa dobradinha quase que diariamente, deve soar estranho “criar” ou “incentivar” o que já se considerava uma tradição.

O Programa Prato Brasil, uma parceria entre a Embrapa e o Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA), nasceu em 2023 exatamente para valorizar e promover a produção no campo baseada no sistema agroalimentar sustentável, na geração de alimentos com qualidade e na manutenção da estabilidade da oferta de grãos, legumes e verduras para a população brasileira. “É importante o governo prestar atenção em como esses alimentos estão sendo tratados”, diz Sarmento.

O presidente do Ibrafe, Marcelo Lüders, observa que, entre as crianças, a redução do consumo de feijão é ainda mais preocupante. Além da menor presença do alimento nas merendas escolares, ele destaca a influência da rotina digital e do uso constante de dispositivos como celulares e tablets. “As crianças são bombardeadas por informações que moldam seus hábitos alimentares, especialmente por meio da publicidade de alimentos ultraprocessados e fast-food”, afirma. Para ele, falta uma atuação mais incisiva do setor para promover o feijão e seus benefícios nutricionais entre o público infantil.

Para que o eventual crescimento do consumo interno e das exportações de feijão seja sustentado ao longo do tempo, é fundamental que o abastecimento acompanhe a nova demanda. Nesse contexto, entra em cena uma combinação estratégica de fatores: o avanço da ciência genética, a adoção de boas práticas agrícolas e o uso de tecnologias de manejo mais eficientes, capazes de ampliar a produtividade e garantir regularidade na oferta.

No campo da pesquisa genética, a Embrapa Arroz e Feijão tem desempenhado papel central no desenvolvimento de cultivares mais avançadas, com grãos de melhor qualidade, maior produtividade, estabilidade no campo e até mesmo melhorias na digestibilidade. No fim de 2023, a instituição apresentou os resultados de um estudo inédito envolvendo a aplicação da técnica de edição genética CRISPR (sigla em inglês para Repetições Palindrômicas Curtas Agrupadas e Regularmente Interespaçadas), abrindo novas possibilidades para o aprimoramento do feijão brasileiro. Com essa ferramenta de engenharia genética, também conhecida por “tesoura molecular”, a equipe da Embrapa, coordenada pelos pesquisadores Josias Correa e Rosana Vianello, identificou e inativou dois genes relacionados à produção de oligossacarídeos (carboidratos) da família rafinose, responsáveis pelo desconforto em humanos. Essa nova variedade com menos fatores antinutricionais dá uma ideia do horizonte ainda a ser explorado.

Do ponto de vista agronômico, uma das apostas para elevar a produção nacional de feijão é a ampliação das áreas irrigadas. “Com irrigação, o produtor começa a pensar em três safras de grãos por ano: soja, seguida de milho e, na sequência, o feijão”, diz Bernardo Borges, gerente técnico da BRQ Brasilquímica. “Tudo isso no intervalo de apenas nove meses.” Segundo o executivo, a irrigação oferece previsibilidade e segurança ao produtor, facilitando decisões estratégicas tanto no manejo quanto na comercialização.

Para que os benefícios da produção irrigada se concretizem, é preciso superar obstáculos estruturais – entre eles, a limitação da eletrificação rural. “A falta de energia trifásica ainda é um grande entrave no Brasil. Em muitas regiões, a rede elétrica é apenas bifásica”, afirma. Além disso, há desafios relacionados à nutrição das plantas e ao controle sanitário das lavouras. Nesse contexto, os bioinsumos vêm ganhando protagonismo, impulsionados não apenas por sua eficiência agronômica, mas também pela pressão crescente dos consumidores por práticas sustentáveis no agronegócio. Tudo isso é fundamental para trazer o feijão de volta ao lugar que merece: o centro da mesa dos brasileiros.

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