Por Romualdo Venâncio, de Juruena (MT)


Eliane de Souza Machado é pecuarista e produz bezerros no município de Juruena, região norte de Mato Grosso. Seu rebanho tem cerca de 80 matrizes da raça Nelore criadas em 78 hectares de sua propriedade, o Sítio São Gabriel II. Ao todo, são 86 hectares, somada a área de preservação. Há cinco anos, essa operação pecuária vem passando por um processo de transformação, uma verdadeira imersão em um círculo virtuoso. As mudanças envolvem recuperação e aprimoramento do solo e das pastagens, passam pelo melhor cuidado com o gado e chegam ao reflorestamento, processo feito para recuperar a vegetação em torno das nascentes e garantir disponibilidade de água para os animais. Segundo a produtora, o valor de suas terras já cresceu 30%. E a qualidade dos bezerros, todos rastreados, aumentou seu prestígio junto ao mercado. Tudo isso começou com informação e conhecimento.
A jornada de renovação do Sítio São Gabriel II será destaque no terceiro episódio da websérie Top Sustainable Livestock, iniciativa dedicada a demonstrar como a pecuária pode unir produtividade, rentabilidade e responsabilidade socioambiental. Por meio de exemplos concretos já aplicados no País, a série revela caminhos reais para transformar o setor em um modelo de produção sustentável, provando que preservar e prosperar podem caminhar lado a lado. Ela será veiculada no Canal Terraviva, do Grupo Bandeirantes, e é realizada por PLANT PROJECT em parceria com a Mesa Brasileira da Pecuária Sustentável, com apoio dos projetos SAFe e ProTS, implementados pela Deutsche Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit (GIZ) GmbH em parceria com o Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), IDH, MSD Saúde Animal e ApexBrasil.

Nascida em Campo Mourão (PR), Eliane vem de uma família que sempre trabalhou com a roça, com a produção agrícola, seja em terras paranaenses, seja em outros estados, como São Paulo e Mato Grosso. Mas a chegada ao Centro-Oeste se deu por uma recomendação médica. O irmão caçula da pecuarista sofria de bronquite asmática, e o clima frio do Paraná era um agravante da doença. A família foi orientada a buscar uma região mais quente. “Os médicos disseram a minha mãe, que se não mudássemos, poderíamos até perder meu irmão. Foi aí que resolvemos vir para o Mato Grosso”, diz Eliane.
O ingresso na pecuária também se deu de forma indireta. Eliane morava em Juína e, após se casar, avançou mais 150 quilômetros com o marido rumo ao norte do estado. Chegaram a Juruena para empreender no segmento de festas e eventos, e o negócio cresceu além de suas expectativas. “A gente trabalhava muito e conseguiu formar um capital, ter uma boa reserva. Então, sugeri ao meu marido que comprássemos uma chácara, um sítio, para descansarmos”, afirma a pecuarista. Assim veio a primeira propriedade.
O casal seguiu tocando o negócio de festas e comprando mais terras, ainda que em pequenas áreas, até um ponto em que não era mais possível manter um pé em cada canoa. Optaram pela agropecuária. “Meu marido ainda atende alguma coisa nos eventos, mas eu mergulhei de cabeça”, diz Eliane. Nesse processo, novos desafios surgiram. Investir na aquisição das propriedades não garantia o conhecimento necessário para a manutenção do solo, da vegetação (sobretudo a pastagem) e do gado. “A gente precisava de um direcionamento para trabalhar com pouca terra, mas produzir o suficiente para se manter e ter lucratividade”, diz produtora.
A resposta para tal dilema veio com o Programa de Produção Sustentável de Bezerros, desenvolvido pela IDH. O objetivo é exatamente mudar a dinâmica de produção e comercialização da cadeia pecuária, melhorando resultados do segmento de cria nos aspectos econômico, ambiental e social. Tudo isso a partir da oferta de um pacote de assistência técnica e gerencial, incluindo a rastreabilidade, por meio de um protocolo gerenciado pela Confederação Nacional da Agricultura (CNA). A inciativa, implementada em Mato Grosso a partir de 2019, já chegou também ao Pará. Nesse programa, a IDH tem como parceiros Carrefour, Mars Pert Care, Marfrig, Federação da Agricultura e Pecuária do Pará (Faepa), Nutron/Cargill e Associação dos Criadores de Mato Grosso (Acrimat). Mais de 1,2 mil produtores já receberam o apoio e a meta da instituição é aumentar esse número até 2026.

De acordo com a diretora-executiva da IDH, Manuela Santos, por falta de orientação muitos produtores acabam não alcançando a melhor renda que poderiam ter dentro de suas terras e nem estão, necessariamente, em conformidade com aspectos socioambientais. “Por meio do programa e de orientações, como fazer reforma de pastagens, os pecuaristas conseguem aumentar sua renda e produzir muito mais usando menos espaço”, diz a executiva. “Isso abre um potencial gigantesco para promover a preservação florestal dentro dessas propriedades.”
Eliane é categórica ao comentar a importância de estar entre esses produtores: “Eu não teria percebido a necessidade das mudanças que fizemos e nem teria condições de fazê-las se não fosse o programa”. Além da falta de orientação técnica, o custo financeiro é outro grande impeditivo. O quadro fica mais preocupante se o pecuarista colocar seu dinheiro na terra sem a devida preparação. “Se não fizer análise de solo, não corrigir o solo, vai desperdiçar hora de trator, semente e outros insumos”, afirma. A produtora acrescenta ainda que, se não houver recursos para manejar a área toda, vale cuidar do que for possível para ter um espaço pronto para trabalhar bem por seis ou sete anos. As mudanças realizadas no Sítio São Gabriel II ocorreram dessa forma.
O sítio foi comprado por Eliane já com os problemas de degradação, tanto das áreas de pastagem como do entorno das nascentes. O primeiro diagnóstico feito já no Programa de Produção Sustentável de Bezerros mostrou os detalhes da desafiadora realidade. “Normalmente, o impacto é grande quando fazemos a entrega do primeiro diagnóstico, até porque, em muitos casos, a maioria dos produtores nunca teve uma assistência técnica”, diz a coordenadora local do programa, Maysa Siqueira. Mas é a partir desse “susto” que passam a enxergar com mais clareza qual é o tamanho da propriedade e tudo o que existe ali, e como podem trabalhar corretamente. “É uma revelação de desafios e oportunidades. Passam a entender, por exemplo, como a melhoria de uma pastagem pode mudar no rendimento do produto lá no final do processo”, diz Maysa.

Como o custo seria muito alto para mexer em tudo de uma vez, a recuperação do Sítio São Gabriel II começou pela divisão dos piquetes. A partir daí, houve o reaproveitamento das áreas onde foi possível e a manutenção do que estava em degradação. Após essa definição, entraram as análises de solo, para entender qual era a correção necessária. Essa organização também favoreceu o trato com o gado, por meio do pastejo rotacionado. Os animais ficam três dias em um piquete, e não só se alimentam da pastagem que está ali como deixam material orgânico que contribui com a recuperação e o desenvolvimento do solo. O sistema produtivo como um todo vai se beneficiando, uma melhoria favorece a outra.
O piqueteamento ainda contribui para todo o manejo reprodutivo do rebanho, baseado em monta natural, sem definição de estação de monta ou inseminação artificial. “Eu não moro no sítio e esse processo exige um acompanhamento mais próximo do gado, há todo um protocolo a ser seguido. Então prefiro trabalhar com touros”, diz Eliane. Cada reprodutor fica com um grupo de aproximadamente 30 matrizes, e é guiado pelo cio das vacas. O índice de sucesso na reprodução gira em torno de 90% de prenhezes. Outro efeito positivo da nova fase na gestão do sítio está no descarte de fêmeas, que ficou mais criterioso.
Com um grupo de matrizes melhores e a escolha de touros superiores, foi natural obter resultados mais positivos com os bezerros. Da forma como sistema produtivo e reprodutivo vem sendo administrado do Sítio São Gabriel II, é possível ter um novo lote de bezerros disponível para o mercado a cada três meses. Esses animais desmamam com seis ou sete meses e pesando entre 220 e 230 quilos, e são negociados com pecuaristas da região. “Meus bezerros são muito saudáveis, tem qualidade e chegam com facilidade ao peso necessário para o abate”, diz Eliane, explicando por que sempre há compradores interessados em seus animais.

Outro atrativo dos bezerros é a rastreabilidade. Entre um e dois meses de vida, os animais já recebem o brinco de identificação. E as vacas são todas numeradas, garantindo maior controle do rebanho. “A rastreabilidade é um dos benefícios mais importantes dentro do programa, principalmente para a conscientização dos produtores”, diz Maysa. “Isso contribui para que continuem trabalhando de maneira mais organizada para que o produto final tenha realmente uma identificação.” O rastreamento na cadeia como um todo, desde os bezerros até o varejo, assegura a transparência para o mercado e para os consumidores, dentro e fora do País.
Se é para estar em conformidade com o mercado, também é preciso atender às exigências legais do ponto de vista ambiental, como estar inscrito e regularizado no Cadastro Ambiental Rural (CAR). “Hoje, não é possível nem abater os animais no frigorífico se tiver algum problema com o CAR”, diz Eliane. “Se eu não preservar a beirada dos rios, automaticamente meu CAR não é liberado.” Essa é uma das melhorias do Sítio São Gabriel II que salta aos olhos. Desde o início da implementação do Programa de Produção Sustentável de Bezerros na propriedade, foram plantadas 7 mil mudas de diferentes espécies para a recuperação das nascentes.
Antes desse processo, a situação era bem complicada. “A gente não tinha reserva, não tinha cerca, não tinha nada”, lembra Eliane. “O gado fluía de lado a lado da passagem da água, entrava ali, pisoteava, e quando chegava a época da seca estava tudo assoreado e tínhamos problemas com o fornecimento de água.” Após o plantio das mudas, toda a área de rios foi cercada para evitar a passagem dos animais. A natureza logo respondeu, a vegetação natural na beira dos afluentes começou a crescer e os problemas com o fornecimento de água diminuíram. Tanto que, desde o ano passado, a produtora não enfrentou mais complicações com disponibilidade de água.

Também foi estruturado um espaço para que os animais possam entrar, beber água e sair, sem prejudicar a vegetação ao redor. O próximo passo é levar essa água até as áreas de cocho. “Havia muita coisa para fazer. Além da formação das Áreas de Preservação Permanente (APP), tivemos reforma de curral, implantação de cerca, e tudo isso tem um custo.”, diz Eliane. Mesmo sem essa etapa, todo o reflorestamento na margem das nascentes já gerou uma grande valorização para a propriedade, e não só na cotação das terras.
O Sítio São Gabriel II ganhou mais relevância em relação ao fornecimento de bezerros, tanto pela rastreabilidade quanto pela preservação ambiental. Cresceu o conceito quanto ao uso correto da terra, ao aproveitamento de cada hectare sem desperdícios e sem detrimento dos recursos naturais. “A exigência ambiental aumentou muito. Hoje, você pode até vender um bezerro com facilidade, mas lá na frente vão querer saber qual é a origem dele”, afirma Eliane. Mas essa já não é uma preocupação para a produtora. “Minhas terras estão todas de acordo com as exigências legais, o CAR está em dia, tenho toda a área de preservação ambiental necessária. Está tudo certinho.”





