Por Romualdo Venâncio
A quebra de paradigmas é uma constante no processo de evolução do agronegócio brasileiro. O conceito de que “mel é mel” ou de que “é tudo igual”, por exemplo, tornou-se obsoleto com a expansão do conhecimento sobre a cadeia produtiva, revelando uma ampla gama de cores, aromas, sabores e aplicações. O mel transbordou os limites da cultura popular, que antes o enxergava principalmente por suas propriedades medicinais, e está se espalhando por campos como a gastronomia, o mercado de bebidas, a indústria de cosméticos e a saúde – inclusive além de nossas fronteiras. A profissionalização é uma das razões dessa evolução e um convite a novos empreendedores.
As estatísticas de produção confirmam tal cenário. Segundo o IBGE, o Brasil produziu 64,2 mil toneladas de mel em 2023, volume 2,7% maior que o do ano anterior. Em comparação a 2020, o acréscimo foi mais expressivo: 22,3%. O Rio Grande do Sul é o estado brasileiro que mais produz, com 9,1 mil toneladas. A tendência é de crescimento, ainda que os gaúchos tenham acumulado prejuízos após as enchentes do ano passado. “Perdemos 30% das abelhas do estado”, afirma Patric Luderitz, coordenador da Câmara Setorial de Apicultura e Meliponicultura da Secretaria da Agricultura, Pecuária, Produção Sustentável e Irrigação. “A situação foi caótica. Tínhamos mais de 500 mil colmeias de Apis antes do desastre, e agora devem restar algo entre 250 mil e 300 mil.”
Aqui, vale um esclarecimento: apicultura e meliponicultura consistem na criação de abelhas para a produção de mel, pólen, própolis, cera, geleia real e outros produtos. No entanto, a apicultura é feita exclusivamente com a Apis mellifera, uma espécie híbrida de abelhas europeias e africanas com ferrão. Já a meliponicultura é desenvolvida apenas com espécies sem ferrão, conhecidas como “nativas”, como a Jataí, a Uruçu, a Mandaçaia, a Iraí e a Irapuá.
A recuperação do mel gaúcho pode levar alguns anos, mas há pontos de apoio relevantes para essa retomada. É o caso do Parque Apícola de Taquari, o único do Brasil, que tem 465 hectares dedicados à criação de abelhas, produção (de mel e de conhecimento), capacitação e realização de pesquisas. Os estudos científicos se tornaram ainda mais necessários neste momento. O parque também desempenha uma função importante na reestruturação dos apicultores, por meio da distribuição de rainhas, princesas e cúpulas (embriões de rainhas).
Sob o aspecto regional, os estados do Nordeste lideram a produção brasileira de mel, com 25,6 mil toneladas em 2023, segundo o IBGE. O destaque principal é o Piauí. Em 2014, os piauienses produziram 3,2 mil toneladas de mel e ocupavam a sexta posição no ranking nacional. Já em 2023, o volume passou para 8,8 mil toneladas, garantindo o segundo lugar. Nesse período, o aumento foi de 5,5 mil toneladas (171,7%).
Há três fatores principais por trás desse avanço. O primeiro é o crescente reconhecimento da importância da produção de mel, como explica Francisco Ribeiro, diretor de Projetos para o Semiárido da Secretaria de Agricultura Familiar do estado. “Era um mercado desconhecido”, afirma. O segundo fator foi a organização da cadeia produtiva, impulsionada por capacitação e investimentos de agentes financeiros. O terceiro foi o fomento realizado pelo governo estadual, com a distribuição de caixas de abelhas, equipamentos, capacitação e apoio à implantação de casas de mel.
O envolvimento da Secretaria de Agricultura Familiar é essencial nesse processo. “Pelo menos 93% da atividade está na agricultura familiar, sobretudo no semiárido, abrangendo mais de 10 mil famílias”, diz o secretário. “Mesmo para quem não vive exclusivamente da apicultura, ela representa o principal negócio.” Muitos desses pequenos produtores estão associados a cooperativas, algumas das quais são habilitadas a exportar.
A Cooperativa Mista dos Apicultores da Microrregião de Simplício Mendes (Comapi), dona da marca Mel Mesmo, exporta 500 toneladas de mel por ano. Já a Central de Cooperativas Apícolas do Semiárido Brasileiro, a Casa Apis, exporta 1.000 toneladas anualmente. O secretário de Agricultura Familiar do Piauí destaca que o mel é o terceiro principal produto de exportação do estado, atrás apenas da soja e do milho.
De acordo com dados da Apex Brasil, o Piauí arrecadou US$ 31,2 milhões em exportações de mel em 2023, representando 36,6% do total nacional, que foi de US$ 85,2 milhões. “O Piauí é o maior exportador de mel do Brasil, porque o mercado europeu, especialmente a Alemanha, os Estados Unidos e o Canadá, busca nosso blend, em especial o de cores”, diz Ribeiro. Esse diferencial vem da diversidade de floradas, que possibilita uma paleta que vai do mel mais claro, característico do eucalipto, ao mais escuro, da aroeira. A variedade também se reflete nos aromas e sabores.
A produção de mel no Piauí se destaca tanto pela força coletiva quanto pelo empreendedorismo individual. A primeira sommelière de méis do Brasil, Teresa Raquel Bastos, é natural de Teresina, e se formou pela Honey Sensory Analysis, de Bolonha, na Itália. O interesse pelo curso surgiu com a responsabilidade de assumir o negócio iniciado por seu pai, Wener Bastos, que se tornou apicultor em 1983 e fundou a Bee Mel em 1991.
Quando pequena, a empresária costumava acompanhá-lo no apiário, mas decidiu seguir por outra direção. Em 2002, mudou-se para São Paulo e mergulhou no universo da comunicação, formando-se em Jornalismo pela PUC-SP (2013) e em Mídias Sociais Digitais pela Belas Artes (2017). Após um período dedicado às reportagens, trabalhou no Google, em um projeto para o meio rural. Aquela nova etapa lhe deu mais tempo, que aproveitou ajudando o pai na comercialização do mel. Por fim, Teresa acabou retornando ao Piauí e assumiu a direção da Bee Mel, em 2017. “Meu pai já não queria mais lidar com as burocracias do negócio, e passou a ser um fornecedor, tanto de matéria-prima para a Bee Mel quanto de serviços para o mercado como um todo”, diz.
Teresa não está sozinha nessa jornada. A também jornalista e piauiense Maria Nilda Rodrigues dos Santos deu seus primeiros passos no ramo recentemente. Natural de Canto do Buriti, a pouco mais de 400 km de Teresina, Nilda se formou em Comunicação Social e dedicou sua carreira a projetos socioambientais. No início deste ano, ela voltou à sua cidade natal com um plano de negócio social envolvendo a produção de mel de seu pai e de outros apicultores.
A relação com o mel vem da origem. “Desde que me entendo por gente, lá no Piauí, existia a história com o mel”, afirmou Nilda. Na pequena propriedade da família, o pai sempre cultivou abelhas para a produção de mel, de forma muito artesanal. “Em São Paulo, vira e mexe alguém queria encomendar produtos de lá. Comecei a pensar se não poderia levar isso mais a sério”, diz.
A equação que somava comunicação, trabalho socioambiental, economia criativa, impacto social e produção de mel ficou completa em novembro do ano passado, quando Nilda integrou a primeira turma do curso de sommelier de méis do Instituto 4e. Foram quatro dias provando e analisando mais de 80 tipos diferentes de mel, conhecendo e reconhecendo as notas características de cada um deles. “Eu me surpreendi com a variedade de sabores e de aplicações e dos mercados que podem ser alcançados”, afirmou a, agora, sommelière de méis.
O curso de sommelier de méis do Instituto 4e foi pensado para capacitar os alunos na classificação sensorial do produto, facilitando a equalização da oferta com as expectativas do mercado e agregando valor ao produto. Mariana Colpo, fundadora do Meliponário das Pedras, participou da iniciativa para expandir seus conhecimentos e ampliar seus negócios. Formada em Relações Internacionais, Mariana decidiu se reinventar ao empreender na produção de mel de abelhas nativas, apostando no mercado interno e externo. “Eu tinha algumas abelhas e resolvi testar, experimentar o mel delas e fiquei encantada, daí passei a estudar mais o assunto”, diz.
Logo vieram as primeiras colônias, a criação de uma marca e o início das vendas pelo Instagram. “Agora estou investindo na expansão, preparando uma casa de mel, uma pequena indústria”, acrescenta Mariana, que tem como meta ser uma referência nacional de mel de abelhas nativas e alcançar o mercado internacional, apostando tanto na receptividade do setor gastronômico quanto na diversidade dos méis – e, claro, na crescente onda de consumo de alimentos mais saudáveis.
Os novos conhecimentos sobre classificação sensorial de méis facilita a equalização de oferta e expectativas da demanda, inclusive agregando valor ao negócio. E ajuda a compreender que os segmentos de abelhas com ferrão e de abelhas nativas são complementares, pois ambos têm vantagens relevantes. As abelhas com ferrão são superiores em volume de produção e capacidade de deslocamento, enquanto as nativas oferecem uma diversidade maior de aplicação.
Mariana ainda aproveitou o curso para fazer conexões, conhecer outras pessoas, outras culturas, e abrir novas portas. Esse era mesmo um dos objetivos dos fundadores do Instituto 4e, Felipe Meireles, Robson Gaia e Luciano Soares. Nos últimos anos, os compromissos se multiplicaram na agenda dos três especialistas, com cursos, palestras, treinamentos e concursos. Era preciso equilibrar a situação, capacitando mais gente para dar conta dessa expansão.
Criar a metodologia do curso foi o maior desafio, até pela falta de referência. “O curso aplicado na Itália reúne 22 méis e o nosso leque é de 88”, diz Soares. “Levamos quase dois anos planejando tudo. Conversamos com o pessoal de análise de cacau, azeite e queijos. O aluno tinha de sair do curso sabendo identificar quando é um mel de jataí, por exemplo, qual seu sabor e seu aroma.”
Como toda primeira vez, sempre há o que aprimorar. O curso já está sendo revisado, será anual e deve ganhar mais um dia na programação. “Não nos preocupa a possibilidade de os alunos aproveitarem esse conhecimento para criar seu próprio curso”, diz Soares. “Entregamos a eles as ferramentas para isso mesmo.” Agora, os sócios do Instituto 4e preparam outra novidade: o primeiro concurso com jurados sommeliers e com premiação em dinheiro.
A exemplo de outros segmentos, a compreensão sobre os diferenciais de cada mel é um ponto fundamental para manter o mercado aquecido. “Para isso, é importante que os consumidores conheçam o fornecedor ou busquem selos de qualidade e certificações do produto”, diz o secretário de Agricultura Familiar do Piauí, Francisco Ribeiro. “Os brasileiros consomem pouco mel, menos de 100 gramas por habitante por ano. Não dá para entender um consumo exagerado de açúcar e tão pouco de mel.”
Para Teresa Bastos, da Bee Mel, esse volume é baixo porque o brasileiro não tem o costume de consumir mel como alimento, mas principalmente como uma opção medicinal. “É preciso ensinar, educar e conscientizar”, afirma. O investimento das empresas de apicultura e meliponicultura na qualificação dos produtos e em sua apresentação, com embalagens mais atraentes e muita informação já é um caminho interessante. O desafio agora é transformar o mel em um hábito à mesa, não apenas um remédio na prateleira.
Os líderes no Brasil
Os dez estados que mais produzem mel (em quilos)
Estado Produção (em quilos)
Rio Grande do Sul 9,1 milhões
Piauí 8,8 milhões
Paraná 8,4 milhões
Minas Gerais 6,8 milhões
Ceará 5,7 milhões
São Paulo 5,5 milhões
Bahia 4,7 milhões
Santa Catarina 4,2 milhões
Maranhão 3,1 milhões
Pernambuco 1,2 milhão
Fonte: IBGE (2023)