Por Romualdo Venâncio
Cerca de 80% do arroz que chega à mesa dos brasileiros é plantado na Região Sul, e a maior parte por agricultores gaúchos. Segundo estimativa da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) para a safra atual (2024/25), a produção do País deve passar de 12,1 milhões de toneladas, e 68% desse volume será colhido no Rio Grande do Sul. Em meio a esse cenário, estão brotando perspectivas de novos horizontes, em especial no Cerrado. O salto de produção registrado em Goiás nos últimos anos encoraja até comentários sobre autossuficiência. Um dos motivos é o desenvolvimento do chamado arroz de terras altas.
Goiás deve colher 155,2 mil toneladas de arroz na safra 2024/25, volume 19,3% maior do que o registrado na temporada anterior, e ocupar a sétima posição no ranking da produção nacional. O movimento vem ganhando força desde 2020, quando a Embrapa Arroz e Feijão, localizada em Santo Antônio de Goiás (GO), lançou a cultivar BRS A502, destinada ao plantio em sequeiro e adequada ao sistema de terras altas. “A virada ocorreu quando posicionamos esse arroz sob pivô central, na safra 2021/22”, diz o pesquisador da Embrapa, Pedro Sarmento. Entre outras vantagens, a nova opção oferece eficiência produtiva, tolerância ao acamamento e alta estabilidade de rendimento de grãos inteiros, o que chamou a atenção da indústria. Além disso, agradou o desempenho na rotação com outras culturas.
Os preços da safra citada por Sarmento ajudaram a atrair mais agricultores. De acordo com os índices do Cepea (Esalq-USP), no final de 2021 a saca de 50 quilos estava cotada a R$ 62,50. Um ano depois, o valor chegou a R$ 91,82 e, em 2023, passou de R$ 130,00, encerrando a temporada em R$ 126,80. “Agora, o preço não está tão atrativo, mas a opção continua valendo a pena por todos os benefícios agronômicos”, afirma o pesquisador. “O arroz de terras altas sob pivô entrou em áreas de soja e ganhou espaço entre outras culturas. Além dos grãos, a lavoura rende a palhada que favorece o plantio direto e ajuda a controlar problemas sanitários.” Um exemplo é a redução da doença fúngica “raiz rosada”, um dos principais desafios sanitários do cultivo de cebola e alho em regiões quentes.
O arroz já teve uma participação mais expressiva na agricultura goiana. Há cerca de 30 anos, a cultura era utilizada para abertura de áreas, papel que foi sendo ocupado pela soja. Conforme o levantamento histórico da Conab, 20 anos atrás, na safra 2004/05, a produção no estado chegou a 381 mil toneladas, quase duas vezes e meia o volume projetado para a safra atual. Agora, o objetivo é manter o crescimento, ainda que o ritmo desacelere, para que a conquista da autossuficiência seja realmente apenas uma questão de tempo.

Para o também pesquisador da Embrapa Arroz e Feijão, Adriano Castro, Goiás pode chegar, ainda na safra atual, a 60 mil hectares cultivados com arroz. “Esse número representa metade dos 120 mil hectares que o estado precisaria para ser autossuficiente na produção de arroz”, afirma. Não falta otimismo ao setor, mas há um longo caminho a ser percorrido. “Nos últimos 30 anos, o arroz passou a enfrentar uma competição muito forte com soja e milho, commodities que têm necessidade de volume muito grande e demanda para exportação. Na comparação de custos e resultados, o agricultor preferiu as outras culturas.”
Embora destaquem as oportunidades, os pesquisadores da Embrapa refutam a ideia de romantizar o cenário atual a ponto de se afastar da realidade de que a atividade tem de ser rentável. “O produtor precisa ganhar dinheiro”, diz Sarmento. Por isso, a análise econômica do arroz de terras altas vai além da cotação dos grãos. Envolve ainda os ganhos financeiros com os benefícios proporcionados ao sistema agrícola como um todo, incluindo as demais culturas. Esses resultados apareceram em testes iniciais, e vêm sendo replicados na aplicação comercial da cultivar dedicada ao Cerrado.
Ainda em caráter experimental, a Embrapa somou o aprimoramento em plantio direto sob pivô e o melhoramento genético do arroz em associação com a soja. Em uma área dividida em quatro quadrantes, dois deles foram semeados com arroz, um com soja e o último serviu de pousio. “Identificamos que o arroz ia muito bem em plantio direto e com resultados positivos no pós-soja, inclusive com qualidade de grão superior”, relata Castro. A continuidade das experiências mostrou que a soja plantada na sequência do arroz também apresentava ganhos expressivos, com até 20% a mais de produtividade.

Esses cálculos já são feitos para outras culturas. “Ouvi de um produtor de algodão que conseguiu 10 arrobas a mais de pluma por hectare com o plantio na sequência da colheita do arroz”, diz Castro. Os exemplos surgem ainda em outras combinações de culturas como soja, arroz e depois o tomate rasteiro plantado sobre a palhada. “Além de reduzirem a necessidade de irrigação em 40%, aumentaram a produtividade do tomate de 90 para 140 toneladas por hectare e conseguiram um ganho significativo de brix (concentração de sólidos)”, comenta Castro, referindo-se ao desempenho registrado pela AHL Agro.
De acordo com o engenheiro agrônomo da empresa, Roberto D’Ávila Ferreira, a palhada do arroz ainda protege o tomate de outras maneiras. “A água da chuva não cai direto no chão e evita o respingo no tomate, que poderia machucá-lo e abrir espaço para entrada de bactérias”, diz. “Além disso, os frutos não encostam no chão e ficam protegidos da podridão.”
Por se tratar de combinações recentes e em desenvolvimento, é natural que também surjam novos desafios. O manejo da palhada do arroz é um exemplo. De acordo com o agrônomo da AHL Agro, quando o arroz é colhido, esse material orgânico fica acumulado em leiras, e precisa ser espalhado pela área, até para não dificultar a adubação. “Utilizei uma roçadeira com ganchos na roda, passando no sentido perpendicular, distribuindo a palhada para formar uma cama”, diz Ferreira, acrescentando o enorme benefício para o solo. “Digo que estou plantando tomate no xaxim.”
Outro diferencial do arroz de terras altas está nos benefícios ambientais que o cultivo proporciona. A decomposição da palhada contribui para o enriquecimento do solo, aumentando sua fertilidade de forma natural. Além disso, mesmo quando irrigado por pivô central, esse sistema exige menor consumo de água em comparação ao cultivo tradicional em áreas alagadas. Um aspecto particularmente relevante é a ausência de emissão de metano – um dos gases de efeito estufa mais agressivos –, o que torna o modelo uma alternativa mais sustentável do ponto de vista climático.

Esse conjunto de avanços tem moldado um presente mais competitivo e aponta para um futuro promissor da cadeia produtiva do arroz em Goiás. O cenário é de ganhos consistentes em produtividade – o espaçamento entre linhas, por exemplo, foi reduzido de 40 para 17 centímetros, e em algumas áreas a produção por hectare mais que dobrou, passando de 4 mil para 9 mil toneladas. Há também ganhos expressivos em qualidade, com grãos que atendem melhor as exigências da indústria e do consumidor final. Do ponto de vista logístico, o modelo se mostra mais eficiente, ao encurtar a distância entre o campo e os centros de varejo.
“A cultivar BRS A502 é uma baita ferramenta para o sistema de produção do Cerrado, e a indústria tem um papel muito importante por ter reconhecido a diferença de qualidade”, afirma Sarmento. O pesquisador chama a atenção para o impacto do aumento da oferta do grão no mercado local, a começar pela infraestrutura. Segundo ele, o produtor que garantir também o processo de secagem dos grãos conseguirá melhores negociações. “Se tiver de vender o grão verde para a indústria, acabará recebendo menos.”
O principal desafio para sustentar a trajetória de crescimento é garantir a rentabilidade ao longo de toda a cadeia, especialmente para o produtor rural. “Sem equilíbrio na distribuição da lucratividade, a evolução tende a perder força, sobretudo para o agricultor, que é quem fica com a menor fatia”, diz Ferreira. Ainda assim, o agrônomo destaca sinais positivos: cerealistas de estados como Mato Grosso e Minas Gerais já estão comprando arroz goiano, o que indica reconhecimento de mercado. Com ganhos agronômicos, ambientais e comerciais cada vez mais evidentes, o arroz de terras altas plantado no Cerrado vai deixando de ser uma promessa para se consolidar como uma nova fronteira produtiva do cereal no Brasil.





