Por Lucas Bresser
Por muito tempo, a pecuária figurou no centro do debate climático como uma das principais vilãs responsáveis pelas emissões de gases de efeito estufa (GEE). O metano entérico emitido pelos ruminantes, o desmatamento associado à abertura de áreas de pastagens e a baixa eficiência de parte dos sistemas produtivos consolidaram uma narrativa de alto impacto ambiental. No entanto, uma nova visão vem ganhando força: a de que a pecuária, com avanços tecnológicos e práticas de manejo integradas, pode ser parte da solução climática.
Estudos recentes publicados por instituições de referência reforçam esse caminho. Uma das pesquisas, conduzida pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) no Mato Grosso, mostrou que a atividade pecuária que utiliza sistemas de Integração Lavoura-Pecuária-Floresta (ILPF), em diferentes combinações, apresenta balanço positivo nas emissões de gases de efeito estufa (GEE) no bioma Amazônia.
O levantamento, conduzido no maior experimento de ILPF do País, localizado na Embrapa Agrossilvipastoril (MT), comparou dados de quatro sistemas distintos: pastagem solteira, integração lavoura-pecuária (ILP), integração pecuária-floresta (IPF) e ILPF. Após quatro anos, todos os sistemas apresentaram saldo líquido negativo de carbono equivalente, ou seja, sequestraram mais carbono do que emitiram. O maior balanço foi observado no sistema IPF, com 51,3 toneladas de CO? equivalente por hectare (t/CO?eq/ha), seguido pela ILPF, com 39,5 t/CO?eq/ha. A ILP registrou 18,8 t/CO?eq/ha, enquanto a pecuária convencional também conseguiu sequestrar mais carbono do que emitiu, com 26,8 t/CO?eq/ha ao longo do período.
Em relatório de 2023, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) destacou que ganhos em eficiência nutricional e genética poderiam reduzir em até 30% as emissões globais de metano entérico até 2050, sem necessidade de reduzir o rebanho mundial. Essas constatações mudam o foco do debate: não se trata de extinguir a pecuária, mas de transformá-la. E a mudança é urgente, especialmente considerando que, segundo estimativas da ONU, a população mundial deverá atingir quase 10 bilhões de pessoas em 2050 (atualmente, somos 8 bilhões). A própria FAO projeta que, nos próximos 25 anos, a produção global de alimentos terá de crescer 50%.

Diante do desafio de alimentar a todos sem esgotar os recursos do planeta, é preciso investir em produtividade sustentável. O Brasil, maior exportador de carne bovina do mundo e segundo maior produtor, ocupa posição estratégica nesse processo. Com um rebanho de cerca de 235 milhões de cabeças, espalhado em 160 milhões de hectares de pastagens, o País reúne tanto desafios quanto oportunidades para liderar uma pecuária de baixo carbono. “A eficiência no uso de recursos leva ao aumento da produção e da produtividade, e esse é o principal impulsionador da sustentabilidade na pecuária”, diz Nelson Ananias, coordenador de Sustentabilidade da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). “Se fôssemos produzir com os mesmos níveis de 25 anos atrás, hoje teríamos que ocupar uma área muito maior do que ocupamos de fato.” Ainda segundo o especialista da CNA, desde 2001, pouco mais de 50 milhões de hectares de pastagens deixaram de ser ocupados pela pecuária e passaram a se regenerar.
Se vistas apenas como área degradada, as pastagens brasileiras podem parecer parte do problema. No entanto, quando bem manejadas, tornam-se aliadas poderosas na mitigação climática. A Embrapa estima que a recuperação de 30 milhões de hectares de pastagens degradadas poderia sequestrar até 1 bilhão de toneladas de CO? equivalente em 20 anos. Programas como o Plano ABC+ (Agricultura de Baixa Emissão de Carbono), lançado pelo governo federal, têm justamente essa meta: incentivar a recuperação de pastagens, o uso de sistemas integrados e a fixação biológica de nitrogênio. A meta até 2030 é alcançar 72 milhões de hectares de práticas sustentáveis, com potencial de mitigar 1,1 bilhão de toneladas de CO?e.
Grandes empresas privadas já atuam nessa frente. O Grupo Roncador, no Mato Grosso, tornou-se referência ao adotar intensificação de pastagens e integração lavoura-pecuária-floresta em larga escala, reduzindo a pressão sobre novas áreas e aumentando a lotação animal por hectare. O modelo permitiu ampliar a produção sem expandir a fronteira agrícola. A integração de sistemas é um pilar da pecuária de baixo carbono. Segundo a Embrapa, mais de 20 milhões de hectares no Brasil já operam sob sistemas ILPF, que conciliam carne, grãos e madeira na mesma área. Esse modelo promove maior sequestro de carbono, melhora a fertilidade do solo e diversifica a renda do produtor.

E não é só a partir do pasto ou da integração com biomas locais que os ganhos são observados. O melhoramento genético e o manejo reprodutivo são ferramentas estratégicas para reduzir as emissões de carbono na pecuária. Por meio da seleção de animais mais eficientes – que crescem mais rápido, convertem melhor os alimentos em peso corporal e produzem mais leite por vaca –, é possível produzir a mesma quantidade de carne ou leite com menos emissões de metano entérico por quilo de produto.
Paralelamente, o manejo reprodutivo otimiza ciclos de nascimento, desmame precoce e intervalo entre partos, aumentando a produtividade do rebanho e reduzindo o tempo que cada animal permanece em pastagem ou confinamento. Assim, reduz-se a emissão acumulada de gases de efeito estufa ao longo da vida do animal. Estudos da FAO em países como o Uruguai indicam que a combinação dessas estratégias pode reduzir entre 19 e 60% a intensidade de emissões por quilo de carne produzida, ao mesmo tempo ew que aumenta a eficiência econômica e produtiva do setor. Um levantamento da Associação Brasileira de Inseminação Artificial (Asbia) mostra que, em 2023, foram vendidas 25 milhões de doses de sêmen bovino, um salto de 180% em relação a dez anos atrás, indicando a difusão da genética como ferramenta de eficiência.
As melhorias nutricionais também têm papel importante nesse contexto. Ao oferecer dietas balanceadas, com níveis adequados de proteína, energia e aditivos específicos, é possível aumentar a eficiência digestiva e reduzir a produção de metano por quilo de alimento consumido. Tecnologias de nutrição de precisão, como suplementação estratégica, inclusão de leguminosas nas pastagens e aditivos redutores de metano, permitem que os animais convertam melhor os nutrientes em ganho de peso ou produção de leite, diminuindo o tempo necessário para atingir o peso de abate ou a produção desejada.

“Modular a fermentação e a digestão dos alimentos no trato digestivo dos bovinos resulta em melhor desempenho na produção de carne e leite”, afirma Ary Rodrigues Jr., CEO da Axia Agro, uma das maiores empresas de insumos agropecuários do Brasil. “Para isso, utilizamos aditivos nutricionais capazes de atuar nesse processo, evitando que microrganismos produzam metano.” O executivo explica que a rota de formação do metano no trato digestivo dos animais pode ser reduzida quando são empregadas moléculas que selecionam bactérias produtoras de ácidos graxos de cadeia curta (AGCC). Esses AGCC são fundamentais para o fornecimento de energia, favorecendo o crescimento, a engorda e a produção de leite dos animais. “Fortes investimentos em pesquisa têm possibilitado o desenvolvimento de suplementos nutricionais inovadores para promover eficiência e sustentabilidade nos sistemas de produção animal”, diz Rodrigues Jr.
Num mercado cada vez mais sofisticado, as opções para esse tipo de produto também se multiplicam. Um levantamento da empresa DSM-Firmenich demonstrou que o uso do aditivo Bovaer pode ajudar a reduzir as emissões entéricas em até 30%. A empresa firmou parcerias com grupos como Marfrig e JBS para testar e escalar a aplicação em diferentes sistemas produtivos. “O efeito é quase imediato: em até 30 minutos, as emissões de metano são reduzidas, e nenhuma mudança nas práticas das fazendas é necessária”, diz a empresa. “O Bovaer já foi implementado com sucesso por centenas de produtores na Europa, Estados Unidos, América Latina e Austrália, e já evitou, até o momento, emissões de metano equivalentes a 400 mil toneladas de CO?e.”
A JBS, maior produtora de proteína animal do mundo, afirma que tem trabalhado para mensurar e apoiar essa transição no campo. O chamado Programa Escritórios Verdes – Fazenda Nota 10 já está presente em mais de 800 propriedades rurais em diferentes regiões do Brasil, oferecendo treinamentos, diagnósticos de emissões e definição de metas de melhoria contínua. Segundo a empresa, um estudo recente conduzido pela Fundação Getulio Vargas (FGV), pelo Instituto Inttegra e pela Fauna Projetos em 103 fazendas participantes mostrou que 31% já capturam mais carbono do que emitem.
Esse resultado está associado a práticas comprovadas, como recuperação de pastagens, manejo eficiente, dieta balanceada dos rebanhos e desmatamento zero. “A ciência é peça-chave nesse processo. Programas como o Fazenda Nota 10 só existem porque há método, análise e acompanhamento”, afirma Liège Correia, diretora de Sustentabilidade da JBS. “Com ciência, conseguimos transformar boas práticas em referências para o setor. Ampliar a colaboração entre produtores e pesquisadores, por meio de redes técnicas, benchmarks e protocolos compartilhados, é essencial para dar escala às soluções.”
Na visão da JBS, é necessário investir em toda a cadeia para garantir que produtores tenham acesso a novas tecnologias e à assistência técnica baseada em soluções naturais e escaláveis. Para a diretora de Sustentabilidade da empresa, o Brasil hoje é uma “vitrine” de soluções, com agricultura regenerativa, sistemas agroflorestais, ILP e ILPF. Além disso, o País é referência internacional em recuperação de pastagens degradadas, fixação biológica de nitrogênio, manejo racional de pasto, genética tropical voltada para eficiência alimentar e uso de aditivos nutricionais que reduzem o metano entérico. “O?próximo passo é escalar essas iniciativas e consolidar nossa posição como potência agroambiental. A COP30 será uma oportunidade para mostrar, com dados e resultados concretos, que a pecuária brasileira pode ser parte da solução climática, e que o Brasil tem condições de liderar essa agenda”, diz Liège.

A Minerva Foods, outra gigante do setor no Brasil, criou o programa Renove, que promove o engajamento de pecuaristas na adoção de práticas de baixa emissão de carbono. A iniciativa inclui visitas técnicas e a mensuração da pegada de carbono em fazendas, por meio de metodologias reconhecidas e certificação independente, assegurando rigor e credibilidade ao processo. Além disso, a MyCarbon, subsidiária da Minerva Foods, oferece soluções voltadas à agropecuária regenerativa e geração de créditos de carbono, contribuindo para a transição do setor. “Essas ações são mensuradas com base em metodologias científicas, alinhadas às melhores práticas internacionais, e têm permitido à Minerva Foods reduzir emissões e consolidar sua posição como referência em sustentabilidade”, diz Marta Giannichi, diretora global de Sustentabilidade da Minerva Foods.
A rastreabilidade e o uso de dados digitais estão se consolidando como exigência de mercado. A União Europeia aprovou regulamentação que restringe a importação de carne proveniente de áreas associadas ao desmatamento. Para atender a esse tipo de demanda, empresas como JBS, Marfrig e Minerva anunciaram sistemas de monitoramento completos da cadeia. A JBS afirma que terá 100% dos fornecedores monitorados até 2025, cobrindo também os indiretos, considerados o elo mais complexo.
A empresa ainda atua com parceiros estratégicos para ampliar o acesso à tecnologia. Ao lado da The Nature Conservancy (TNC), com recursos do Bezos Earth Fund, a JBS doou 2 milhões de tags para rastrear rebanhos no Pará, priorizando pequenos produtores. Já a Marfrig lançou o programa Marfrig Verde+, que integra blockchain e georreferenciamento para garantir rastreabilidade total. A Minerva, por sua vez, mantém a plataforma SMGeo Prospec, utilizada para monitorar 100% de seus fornecedores diretos na América do Sul. O mesmo aplicativo é oferecido pela companhia aos produtores, incentivando-os a consultarem a sua própria cadeia de fornecimento antes de realizarem qualquer comercialização.
O impacto das ações sustentáveis na pecuária brasileira não se limita aos bovinos. Na avicultura e na suinocultura, setores altamente tecnificados, os avanços em nutrição e manejo reduziram significativamente a pegada de carbono das cadeias. Em 2023, a BRF – conhecida pelas marcas Sadia e Perdigão, hoje unida à Marfrig – reportou uma redução de 21% nas emissões quando comparadas a 2019, motivada majoritariamente pela priorização do consumo de energia renovável.

O setor também faz questão de medir ganhos e avaliar necessidades para definir para onde devem ir os investimentos. A Aurora Coop, uma das maiores cooperativas de produtores de suínos e aves do Brasil, realiza anualmente o inventário de emissões de gases de efeito estufa, seguindo o GHG Protocol para os escopos 1 e 2, e vem avançando na coleta de informações do escopo 3. Com base nesses dados, a organização define investimentos, projetos e melhorias operacionais voltados à redução das emissões. “No campo, práticas como o aprimoramento genético e nutricional dos animais, o manejo adequado, a ambiência, o transporte eficiente e a assistência técnica contribuem para aumentar a produtividade e reduzir a pegada de carbono”, diz Luciana Breda, coordenadora de Sustentabilidade da Aurora Coop.
Segundo os especialistas ouvidos por PLANT PROJECT, um dos desafios do setor é fazer com que as ferramentas de gestão e monitoramento cheguem a todos os pontos da cadeia de produção. Para que isso aconteça, os ganhos também têm de estar focados no aspecto econômico. “Temos que mostrar ao pecuarista que essas ferramentas trazem benefícios gerenciais e administrativos nas propriedades, indo além das exigências ambientais”, afirma Maurício Nogueira, da consultoria Athenagro. “No caso da rastreabilidade, os sistemas também ajudam a saber o que dá mais resultado, o que é mais viável economicamente, o que é melhor comprar e pelo que o produtor deve pagar menos ou mais.”
O desafio, em muitos casos, é justamente a viabilidade econômica da aderência às exigências internacionais. “Algumas das solicitações realizadas por mercados externos envolvem padrões e tecnologias que, embora eficazes em determinados contextos, podem se tornar economicamente inviáveis no cenário nacional, comprometendo a sustentabilidade das atividades produtivas ao longo do tempo”, diz Luciana Breda, da Aurora Coop. “A adaptação às demandas internacionais e à realidade nacional exige dedicação e persistência, próprias do produtor brasileiro, mas também exige tempo e recursos financeiros a serem investidos que precisam ser viabilizados economicamente.”
As mudanças climáticas não pressionam apenas governos e produtores, chegando também a investidores e consumidores. O avanço das finanças sustentáveis tem colocado a pecuária sob escrutínio. Fundos internacionais condicionam aportes a compromissos ESG robustos, enquanto grandes redes varejistas globais exigem cadeias livres de desmatamento. Nesse sentido, iniciativas de certificação vêm ganhando espaço. Programas como o Carne Carbono Neutro e o Carne Baixo Carbono, da Embrapa, certificam sistemas de produção capazes de neutralizar ou reduzir drasticamente a pegada climática da carne bovina. Produtores participantes já relatam diferenciação comercial, inclusive com prêmios de preço em alguns mercados.

Apesar dos avanços, o caminho ainda é desafiador. Segundo a FAO, o setor pecuário global responde por cerca de 14,5% das emissões de GEE – reduzir esse impacto exige ação coordenada entre ciência, política e mercado. Os especialistas apontam que é preciso ampliar investimentos em pesquisa aplicada, garantir políticas públicas de incentivo à adoção de tecnologias e melhorar a comunicação com a sociedade. “Investimentos em genética, manejo e nutrição avançada são fundamentais para aumentar a produtividade com rentabilidade e menor impacto ambiental, resultando em ciclos mais rápidos e eficientes”, resume Ary Rodrigues Jr., da Axia Agro.
O consenso é que eficiência produtiva é sinônimo de sustentabilidade. Um bovino que chega ao peso de abate em 24 meses, em vez de 36, emite significativamente menos metano ao longo da vida. Uma vaca de leite mais produtiva dilui sua emissão por litro produzido. E um sistema que recupera pastagens e integra florestas sequestra carbono e reduz pressão por abertura de novas áreas. Agora, é necessário dar cada vez mais escala à pecuária sustentável. “Da porteira para dentro, a agenda climática exige que a pecuária seja cada vez mais transparente, que cumpra os compromissos que foram assumidos pelas partes e, particularmente, pelo Brasil”, diz Nelson Ananias, da CNA. “Mas é preciso que as soluções contemplem não só a ponta, os grandes abatedouros e distribuidores, mas também os pequenos e médios produtores.”
Ao reposicionar a pecuária como parte da solução climática, o agro brasileiro assume protagonismo na oferta global de alimentos e na agenda ambiental. O desafio está em ampliar escala, difundir práticas comprovadas, integrar cadeias e garantir transparência. Para isso, é essencial trabalhar lado a lado com a ciência e o desenvolvimento tecnológico. “A colaboração entre produtores e a comunidade científica é fundamental para impulsionar a transformação da pecuária em direção a modelos mais sustentáveis”, diz Marta Giannichi, da Minerva Foods. Se o Brasil conseguir conciliar sua vocação pecuária com inovação e responsabilidade socioambiental, terá ao mesmo tempo um diferencial competitivo e uma poderosa história a contar: a de que a carne produzida no País pode alimentar o mundo enquanto ajuda a combater a mudança do clima.





