A hora da cannabis 

À espera de decisão do STJ, o Brasil se aproxima de um marco regulatório para o cultivo da planta, com impacto na saúde, na indústria e no campo
Edição: 49
13 de agosto de 2025

Por Marco Damiani

O nome muitas vezes desperta susto e desconfiança, mas a Cannabis sativa tem conseguido superar, uma a uma, as barreiras que a separam do reconhecimento como planta de amplas qualidades medicinais e milhares de aplicações industriais. Para o produtor rural, essa alternativa representa um mercado consumidor de matéria-prima em alta no Brasil e no mundo. Uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre as regras específicas para o cultivo da cannabis, prevista para setembro, é aguardada com grande expectativa. O julgamento dará continuidade à deliberação do ano passado, que autorizou a importação de sementes, e pode destravar de vez a produção nacional de medicamentos à base dos compostos ativos da planta, como o canabidiol (CBD) e o tetrahidrocanabinol (THC). Além do impacto na área farmacêutica, a regulamentação tende a impulsionar outros setores industriais, como os de mobiliário, tecidos e construção civil. A definição de normas claras para o plantio deve atrair produtores de diversos portes, ampliando a oferta para laboratórios, fábricas e o mercado externo. 

O mercado de cannabis medicinal vem ganhando força no Brasil ao longo da última década, impulsionado pelas primeiras autorizações judiciais concedidas a tratamentos individuais de saúde com derivados da planta. Enquanto o Congresso Nacional segue sem consenso e adia a votação de projetos de lei sobre o tema, é no Judiciário que se constrói, pouco a pouco, o arcabouço jurídico para a regulamentação da atividade. Decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ), somadas às normativas dos ministérios da Saúde e da Agricultura, têm contribuído para a formação de um ambiente regulatório em constante evolução, que abre caminho para o florescimento de novos negócios no setor. 

Sediada em João Pessoa (PB), a Abrace Esperança é o centro da maior operação legal de cultivo, produção e distribuição de medicamentos à base de cannabis no Brasil. Com 130 colaboradores e uma folha de pagamento superior a R$ 500 mil mensais, a associação atende cerca de 50 mil famílias e funciona como uma verdadeira indústria verticalizada – embora com um modelo distinto do das empresas tradicionais. Líder entre as 15 associações autorizadas judicialmente a cultivar e desenvolver produtos medicinais à base da planta, a Abrace se consolidou como referência nacional no setor. 

Atualmente, a Abrace está transferindo o cultivo de 4 hectares de cannabis de Campina Grande para João Pessoa, onde estão sendo preparados 13 hectares para plantio. A área estará conectada a um laboratório de última geração, com capacidade para realizar todos os procedimentos para produzir 16 fórmulas diferentes de medicamentos, que dali sairão embalados e endereçados aos destinatários. Em junho, a entidade foi citada como modelo no Plano de Acesso a Derivados de Cannabis para Fins Medicinais, do governo federal, após conseguir o sétimo alvará de produção.? 

“Diante da expectativa de o STJ liberar o cultivo da cannabis para fins medicinais e industriais, o mercado poderá assistir a um boom de entrada de novos produtores, como aconteceu nos Estados Unidos”, diz o diretor executivo da Abrace, Cassiano Gomes. “Mas não se espera o cultivo em grandes áreas. O perfil estará mais para o da agricultura familiar, com produção em terrenos menores e em estufas.”. As áreas ocupadas pelas lavouras das associações familiares somam perto de 100 hectares em todo o País, com uma produção total estimada em 20 toneladas em 2024. Há 100 mil plantas registradas no Ministério da Agricultura, onde o cadastro é obrigatório.? 

Mesmo ainda sob uma névoa de criminalização e desinformação generalizada, mais de 800 mil pessoas no País fazem uso regular de produtos de saúde como óleos, pomadas e cápsulas que contam com elementos da cannabis em seus compostos. Trinta e cinco produtos medicinais deste segmento têm registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e liberação para comercialização. Eles são indicados para tratamentos que vão da ansiedade à esclerose múltipla, passando por pós-quimioterapia e acidentes vasculares. Um conjunto de 150 empresas, entre importadoras, distribuidoras e fabricantes de produtos ligados à cannabis, atua no País. Nos cálculos da plataforma Kaya Mind, os negócios em torno da cannabis movimentaram internamente R$ 1 bilhão no ano passado.? 

“O mercado está em crescimento e as novas regras irão abrir mais oportunidades para a produção da cannabis”, diz a cientista Beatriz Marti Emygdio, presidente do grupo de trabalho da Embrapa dedicado a acompanhar o desenvolvimento da cultura no território nacional. “Começaremos nossas pesquisas assim que houver autorização legal, mas desde já sabemos que é possível produzir para suprir a demanda nacional e, ainda, exportar”, diz ela, lembrando dos vizinhos Uruguai e Colômbia, que já vendem a planta in natura ou processada para mais de 15 mercados. Atualmente, 53 países autorizam a produção de medicamentos com base na cannabis, o que gerou um comércio global de US$ 16,5 bilhões no ano passado. Em razão do crescimento do consumo legal nos Estados Unidos, tanto para fins medicinais como recreativos, as projeções indicam um crescimento para US$ 56,7 bilhões até o ano de 2032.? 

Na indústria, a Ayraa Eco Friendly é um exemplo de como o cânhamo – variedade da cannabis com baixa concentração de THC – pode abrir caminho para uma nova fronteira de produtos sustentáveis. Rico em fibras, sais minerais, proteínas e celulose, o cânhamo é apontado por cientistas como matéria-prima para mais de 25 mil aplicações industriais, que vão de tijolos, plásticos e tecidos a cosméticos, alimentos e bebidas. “O cultivo do cânhamo consome cinco vezes menos água que o algodão, amadurece em quatro meses e pode ser feito em pequenas áreas, graças à alta produtividade por hectare”, afirma o empresário Marcelo Fernandes, à frente da operação de moda da empresa. “Além disso, exige pouco uso de defensivos químicos, ajuda na regeneração do solo e gera tecidos de alta durabilidade, o que reduz o descarte precoce.” Apesar de todas essas qualidades, o cultivo do cânhamo ainda é proibido no Brasil. 

À medida que demandas sociais são reconhecidas e assimiladas pelo Poder Judiciário, a cannabis vem se consolidando como uma alternativa produtiva de alto potencial econômico. O diálogo contínuo entre consumidores, produtores e autoridades tem mantido o Brasil em sintonia com os avanços registrados em diversas legislações internacionais. A decisão aguardada do Superior Tribunal de Justiça (STJ) é vista como um possível marco na mudança de perspectiva sobre a cannabis na sociedade brasileira, com potencial para destravar investimentos, reduzir estigmas e ampliar o acesso a tratamentos medicinais. 

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