Edição 25 - 26.07.21
O escritor Domingos Pellegrini descreve a história de um dos principais polos do agro brasileiro
Com mais de três dezenas de livros publicados, entre coletâneas de contos, romances e histórias para o público juvenil, além de dois prêmios Jabuti, o londrinense Domingos Pellegrini, 71 anos, é conhecido, principalmente, como escritor. Mas, antes de se dedicar à ficção, Pellegrini foi jornalista. E, como repórter, descobriu a agricultura e tomou gosto pelo trabalho e pela cultura do campo. Foi de lá que brotaram algumas de suas principais obras, que ajudam a contar a história do desenvolvimento do norte do Paraná, um dos principais polos do agronegócio brasileiro.
Quando fazia parte da redação da Folha de Londrina, no início dos anos 1970, era responsável pela produção de matérias para o segundo caderno sobre os mais variados assuntos. Não importava se o tema era cultural ou policial: era preciso encher uma página. Em 1972, foi enviado para visitar o recém-criado Instituto Agronômico do Paraná (Iapar). Na época, a instituição ocupava uma casa no centro da cidade e era formada por uma pequena equipe. Foi recepcionado pelo então presidente, Raul Juliatto. “Uma hora e meia de conversa depois, eu havia me tornado um entusiasmado pela agricultura”, conta Pellegrini.
“Fui começando a descobrir um mundo. Eu era neto de tropeiro. Havia nascido em uma cidade efervescente, capital mundial do café, com uma mistura de negros e brancos, de brasileiros de todos os estados e gente de 30 países”, diz o escritor. Por querer, se tornou repórter do agro. Entrevistou, por exemplo, o produtor Herbert Bartz (1937-2021), precursor da técnica do plantio direto no Brasil.
Foi também como repórter que conheceu o grande pecuarista Celso Garcia Cid, ou Seo Celso, como era conhecido. “Fui conversar com ele meio a contragosto. Na época, eu era comunista e ele era um empresário”, afirma Pellegrini. Em 1960, Garcia Cid foi responsável por trazer ao Brasil um pequeno rebanho puro de zebuínos, vindos da Índia, após anos de pedidos de importação dos animais feitos ao Ministério da Agricultura, uma aventura que mudou de vez a pecuária brasileira. Pellegrini foi surpreendido pela personalidade e visão do pecuarista. “Na entrevista vi que ele não olhava só para o grande produtor. Ele entendia os pequenos. Tinha uma visão de estadista sobre a crise que afetava esses pequenos açougues na época.”
Aquele encontro ficou na cabeça dele. Tanto que, 20 anos depois, quando Garcia Cid já havia morrido, Pellegrini encontrou na história de Seo Celso uma oportunidade de transformar sua carreira. Infeliz com a agência de publicidade que havia montado, decidiu ir atrás da família de Garcia e pedir ajuda para escrever sobre a trajetória do produtor. “Achei que ia entrevistar um punhado de pessoas e fazer o livro”, conta. “Quando disse ao filho que queria contar a história do pai, ele pegou uma folha de papel, escreveu 40 nomes sem levantar a caneta e me disse para começar minha pesquisa por aquelas pessoas.”
Pellegrini ficou fascinado. A vida de Seo Celso estava relacionada à história da própria cidade de Londrina. E muito mais. Ele era um apaixonado pela Índia, profundo conhecedor da pecuária e entusiasta de temas variados, da antropologia à agricultura. O extenso trabalho de pesquisa e escrita, que fez com que Pellegrini também se debruçasse sobre o romance como um formato literário, deu origem a Não Existe Impossível: O tempo de seo Celso. O livro ganhou duas edições, ambas bancadas pela família do pecuarista, e se tornou obra obrigatória para quem quer entender a moderna pecuária brasileira. Hoje, está fora de catálogo. Mas o escritor espera republicá-lo no ano que vem, via Lei Rouanet. Tem planos de levar o livro a feiras agrícolas e divulgar o trabalho de Seo Celso também em palestras.
”Eram oito os canaviais da Usina, cada canavial com seus talhões e ruas, em cada rua um cortador. Em cada talhão um capataz anotava quantos feixes cortava cada um, depois no último talhão competiam os melhores, e o melhor de cada canavial seria um dos oito finalistas na disputa final, o Concurso de Corte de Cana de Capivari-Rafard, como anunciavam os cartazes da Festa da Usina, com programação religiosa, recreativa e esportiva, missa, fogos, quermesse, leilão, mas o melhor era o Concurso dos Cortadores, ou O Concurso, como diziam tanto em Rafard quanto em Capivari. Era o único dia do ano em que se juntavam capivarianos e rafardenses, no território neutro onde afinal todos ganhavam a vida, e, também, onde os franceses despediam quem brigasse.”
A pesquisa para a biografia de Celso Garcia também serviu de inspiração para outra obra, o ambicioso romance Terra Vermelha. A história acompanha o casal José e Tiana durante quatro décadas, desde quando se conheceram nos canaviais da região de Rafard e Capivari, no interior de São Paulo, passando pelos inúmeros trabalhos de José, como marceneiro, sócio de farmácia e dono de um pequeno comércio, até a mudança para Londrina, no Paraná, que começava a se desenvolver por meio do sistema de colonato.
O romance é estruturado em sete noites. Um dos netos de João – já velho, doente e internado em um hospital – relembra passagens da vida do avô. Para escrever, Pellegrini teve de recriar palavras para representar o dialeto surgido da miscigenação de culturas e raças atraídas na aventura de colonizar o norte do Paraná na metade do século 20. O autor buscou inspiração na própria história. João é baseado em seu avô paterno. E Tiana, na avó materna. “Eu tinha um grande caldeirão de lembranças familiares”, conta. Um tio, contador de causos, falava da rivalidade que havia entre os habitantes das cidades de Rafard e Capivari. A avó Sebastiana tinha histórias de Minas Gerais. Os peões e tropeiros que visitavam a casa da família também forneceram valiosa contribuição. Até mesmo Garcia Cid inspirou um dos personagens centrais.
“Terra Vermelha é um romance multirreferencial. Tem fundamento de pesquisa. Tem uma linguagem clara, mas que às vezes insiste em ser poética. Tem muita ligação com o agro. E, para mim, foi muito interessante porque aprendi a valorizar as minhas origens”, diz Pellegrini. Foram cinco anos reescrevendo até chegar à versão final. “A cada ano eu separava um mês só para mexer no livro. Eu achava que ele estava muito longo, precisava de ajustes”, afirma. O romance foi publicado pela primeira vez em 1998 e reeditado duas vezes. Hoje, é um título da editora Leya.
”De repente, estava trotando pela estradinha, como não fazia desde muito tempo, como gostava de fazer quando rapaz. É a terra-vermelha, falou para o cavalo, e cavalgou até o bicho suar, aí foi a pé assobiando. Mas a cada hora via menos fazendas e sítios, e mais mata, mata sempre mais alta. À noite, enrolado na manta, dormiria olhando as estrelas e pensando na tal terra-vermelha depois do Tibagi, conforme tinha contado o inglês. Figueiras-brancas que nem dez homens abraçavam. Perobas de quarenta metros de altura. Cafeeiros tão altos que era preciso colher de escada. Terrenos e sítios à venda com vários anos para pagar, sem entrada: – Os ingleses não querem dinheiro já – tinha falado o ferreiro – Querem é colonos para valorizar a terra”
O escritor também é conhecido por seus livros para o público juvenil, como As Batalhas do Castelo, de 1988, e A Árvore que Dava Dinheiro, de 1981, que fez parte da coleção Vaga-Lume. É ainda um contista premiado. Com O Homem Vermelho, sua primeira coletânea de narrativas curtas, lançada em 1977, recebeu o primeiro Jabuti. O segundo veio anos depois, em 2000, com o romance O Caso da Chácara Chão. (OBRAS)
Com a pandemia, decidiu reler os contos que escreveu. “Fiquei com vergonha de muitos. Outros decidi reescrever. De cadadez, aproveitei três.” Pellegrini foi juntando esses contos reescritos e separou-os em quatro livros temáticos, que pretende lançar nos próximos meses. O primeiro, sobre meninos e meninas, vai sair em breve como paradidático pela Moderna. Há um sobre amor e outro sobre mulheres. O quarto será focado justamente no trabalho e na terra. “Estou muito satisfeito com esse trabalho e com a oportunidade de poder reescrever. É uma coisa que sinto falta em outros escritores. Lima Barreto, por exemplo, não deve ter revisado Clara dos Anjos”, diz.
Agora, Pellegrini também tem se dedicado a escrever roteiros de cinema e séries de TV. “Sempre tive curiosidade pelo formato”, conta. Já tem dois trabalhos para o cinema prontos, ambos inspirados na pandemia. Também prepara um roteiro para um seriado. Será uma obra juvenil, sem cenas de violência, que vai abordar temas como corrupção, nepotismo, burocracia e descoordenação política. “Os males do Brasil”, diz Pellegrini. HISTORIA
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