Por André Sollitto
Como prévia da COP30, um festival vai transformar a música em espaço de discussão sobre a preservação ambiental e a floresta amazônica. É o Amazônia Live, organizado pela mesma empresa que criou o Rock in Rio e o The Town, em São Paulo. A presença da estrela americana Mariah Carey atrai grande atenção: ela se apresentará em um palco flutuante em formato de vitória-régia, instalado sobre o Rio Guamá, em Belém. Poucos dias depois, será a vez de Ivete Sangalo subir ao palco, no Estádio do Mangueirão, também na capital paraense. Mas o festival reserva outras surpresas significativas. Antes de Mariah, um encontro raro reúne Dona Onete, Joelma, Gaby Amarantos e Zaynara, representando diferentes gerações da música do Pará. Já no mesmo dia de Ivete, Viviane Batidão divide a cena com o Lambateria Baile Show, comandado pelo guitarrista e produtor Félix Robatto, que recebe como convidada Lia Sophia, novo nome do carimbó. É uma celebração que coloca em evidência a vitalidade de uma das cenas musicais mais pulsantes do Brasil.

A tradição musical do Pará é tão antiga que sua origem se perde no tempo e não encontra registros escritos. No centro dessa história está o carimbó, ritmo de música e dança criado no século 17 pelos tupinambás, a partir de influências trazidas por negros escravizados no nordeste do estado. No Brasil Colônia, o gênero era marcado pela força da percussão, sobretudo dos carimbós ou curimbós, tambores que lhe deram nome. Com o passar das gerações, o ritmo ganhou novos timbres, das violas caboclas e flautas de madeira às guitarras, clarinetes e saxofones. “A importância desse instrumental envolve a própria definição estética, estilística e simbólica do carimbó, constituindo parte fundamental de sua sonoridade”, registra o documento que oficializou o gênero como forma de expressão e Patrimônio Cultural do Brasil, reconhecido pelo Iphan em 2014.
O auge veio nas décadas de 1970 e 1980, quando mestres como Pinduca, Cupijó e Verequete gravaram LPs que se tornaram preciosidades disputadas por colecionadores de vinil. Hoje, cópias em bom estado chegam a valer pequenas fortunas – um exemplar de Menina Chorona, de Mestre Cupijó, ultrapassa os R$ 700 na plataforma Discogs. O interesse internacional também cresceu: gravadoras especializadas no resgate de sonoridades dançantes, como a alemã Analog Africa, já dedicaram coletâneas inteiras ao carimbó.
Um dos traços mais marcantes da efervescência cultural e musical do Pará é a capacidade de absorver influências externas e transformá-las em algo genuinamente original. Foi assim com a lambada. Nos anos 1970, Pinduca, hoje com 88 anos, chegou a lançar uma canção com esse nome, mas sua sonoridade estava distante do gênero que viria a surgir depois. O verdadeiro responsável pela consolidação do estilo foi o guitarrista e compositor Manoel Cordeiro, que combinou referências do carimbó, da cúmbia colombiana e do merengue caribenho para criar uma nova linguagem musical. “O que fazemos é música popular brasileira feita na Amazônia”, afirmou Cordeiro em entrevista ao jornalista Fernando Rosa, do portal Senhor F.
Reconhecido como um dos grandes articuladores da música amazônica, ele segue ativo, tendo participado recentemente de discos de artistas de outras regiões do país, como o BaianaSystem. Nos anos 1990, a lambada rompeu fronteiras locais e ganhou projeção nacional com o grupo Kaoma, que levou uma de suas canções para a trilha sonora da novela Rainha da Sucata, exibida pela Globo.
Da lambada nasceu outro gênero emblemático do Pará: a guitarrada, também chamada de lambada instrumental. Seu criador é reconhecido como Mestre Vieira (1934-2018), responsável por lançar o primeiro LP dedicado exclusivamente à guitarra, com composições que mesclavam referências paraenses e caribenhas. Entre as décadas de 1970 e 1980, a série de discos Guitarradas, lançada pela gravadora Gravasom – um dos selos fonográficos mais influentes da região – consolidou e popularizou o estilo. Ao lado de Vieira, nomes como o virtuose Aldo Sena e Mestre Curica formaram a tríade fundamental do gênero, que depois se renovaria com outros expoentes, como Chimbinha. Hoje, a guitarrada é reconhecida por sua sonoridade limpa, marcada pela guitarra sem distorção e pela cadência rítmica contagiante.
Como em uma linha do tempo musical, a sonoridade da guitarra herdada da lambada serviu de alicerce para o calypso. O caldeirão de ritmos paraenses recebeu novas camadas, como o calipso caribenho (com “i”) e até influências do reggae. Embora tenha surgido em meados da década de 1990, o gênero só alcançou projeção nacional nos anos 2000, impulsionado pelo estrondoso sucesso da Banda Calypso, seu principal expoente.

Criada pelo guitarrista Chimbinha e pela cantora Joelma, então sua esposa, a banda lançou o primeiro disco de forma independente e surpreendeu: vendeu mais de 500 mil cópias, conquistando o certificado de Platina. Eram tempos em que as mídias físicas ainda reinavam sobre o streaming, e o compartilhamento de CDs, aliado ao boca a boca, ajudou a espalhar o fenômeno. O sucesso abriu caminho para outras formações, como a Companhia do Calypso, que também surfaram na onda.
Tendo sempre os gêneros regionais e o carimbó como ponto de partida, uma nova geração de músicos adicionou outros elementos à mistura. Assim nasceram o tecnobrega e, mais tarde, o tecnomelody, que incorporaram tecnologia, batidas eletrônicas, sintetizadores e AutoTune. O grupo pioneiro foi o Tecnoshow, liderado por Gaby Amarantos, cuja voz se tornou símbolo do movimento. As festas embaladas pelas famosas “aparelhagens de som” – herdeiras diretas dos sound systems jamaicanos – popularizaram o gênero primeiro nas periferias e, em seguida, nos maiores palcos do País.
Gaby é figura central dessa cena, especialmente após o sucesso de Ex Mai Love, em 2012, quando a canção entrou na trilha da novela Cheias de Charme e conquistou uma nova geração de ouvintes. Mas o movimento também revelou outros nomes importantes, como Gang do Eletro, Viviane Batidão e, mais recentemente, Banda Uó. Em 2023, o relançamento do disco Tecnoshow recebeu o Grammy Latino de Melhor Álbum de Música de Raízes em Língua Portuguesa e foi reconhecido como Patrimônio Cultural Imaterial do Pará pela Assembleia Legislativa. “O meu trabalho é fazer com que o nosso movimento seja reconhecido no Pará, no Brasil e no mundo todo”, disse Amarantos ao celebrar a conquista.
O tecnobrega vive hoje um momento de redescoberta. Pabllo Vittar ajudou a reavivar o gênero com os álbuns Batidão Tropical (2021) e Batidão Tropical Vol. 2 (2024), nos quais regravou sucessos de grupos como Banda Calypso e Companhia do Calypso, apresentando essas músicas a um público muito mais amplo. Joelma, por sua vez, voltou ao centro dos holofotes e passou a ser presença em grandes festivais, como o Rock the Mountain, em Petrópolis – movimento impulsionado pelo hit Voando pro Pará, que viralizou nas redes sociais. Até mesmo o The Town, tradicionalmente voltado ao rock e ao pop, abriu espaço para essa cena, incluindo artistas paraenses em sua programação como uma prévia do Amazônia Live. Na mesma Belém que receberá líderes mundiais para debater o futuro do planeta, a música se afirma como símbolo de vitalidade e de pertencimento.
Discoteca básica
Dez discos essenciais para mergulhar na música paraense:
Siriá, de Mestre Cupijó e seu Ritmo
Com ritmos dançantes, é uma coletânea feita pela gravadora alemã Analog Africa de pérolas do carimbó
Aldo Sena 1983, de Aldo Sena
O músico é um dos três principais nomes da guitarrada, responsável por algumas das mais emblemáticas composições do gênero
Manoel Cordeiro & Sonora Amazônica, de Manoel Cordeiro
Obra importante para entender a levada da lambada, criada pelo músico, mas também por seu virtuosismo como guitarrista
Banzeiro, de Dona Onete
Hoje com 86 anos, a cantora é reconhecida como Patrimônio Imaterial do Estado do Pará, e esse é seu disco mais importante
Tecnoshow, de Gaby Amarantos
Pedra fundamental do tecnobrega, mostra como as batidas eletrônicas renovaram os gêneros regionais
Uma noite amazônica, de Joelma
Lançado neste ano, é uma gravação ao vivo de um show que a cantora fez em Portugal, onde interpreta alguns de seus hits
Batidão Tropical Vol. 2, de Pabllo Vittar
Uma das cantoras mais populares do Brasil, mergulhou no repertório do tecnobrega, revitalizando grandes sucessos
Eletrocarimbó, de Lia Sophia
O trabalho de 2021 mostra uma das novas vozes responsáveis por manter a tradição do carimbó viva, mas com elementos contemporâneos





