Edição 2 - 16.10.17
Por Flora Guedes / Fotos: Alcione Ferreira, do Recife
Engenho de Açúcar é uma tela a óleo de Frans Post. Este retrato da vida pernambucana, pintado no século XVII após a expedição da comitiva de Mauricio de Nassau pelo Brasil, é uma das joias do acervo do Instituto Ricardo Brennand (IRB). A negociação que transferiu a obra ao museu do Recife, em Pernambuco, durou oito meses e foi feita na Holanda. “Comprei da família que é dona das casas C&A os dois maiores quadros de Post da nossa coleção”, recorda o engenheiro, empresário e colecionador pernambucano Ricardo Brennand, referindo-se também a Família de Senhores Rurais. Prestes a completar 90 anos, em 27 de maio, Brennand mantém o entusiasmo e o olhar atento de investidor diante de uma obra de arte. Percorrer com ele a Pinacoteca do IRB – complexo digno da realeza erguido no bairro simples da Várzea, zona Oeste do Recife –, além de rara oportunidade, é uma viagem pelas entrelinhas do rico acervo do lugar. Isso porque Brennand justifica a existência de cada obra no instituto com história.
Sem citar os investimentos feitos, ele lembra das negociações para aquisição de várias peças e coleções, ao longo de mais de 40 anos, em viagens a todos os continentes. “Quase que por acaso eu cheguei a reunir a maior coleção particular do mundo do holandês Frans Post. Comprei várias coleções, entre elas veio uma série de quadros do artista”, conta Ricardo Brennand, que, durante a entrevista, se deliciou com gomos de jaca dura levados pelo genro, o empresário Jorge Petribu – e fez questão de compartilhar a fruta com a jornalista e a fotógrafa.
Existem atualmente cerca de 160 quadros de Post com paisagens da região Nordeste e, segundo Brennand, alguns cenários retratavam a própria região da Várzea, que era um antigo engenho. “Desta produção de Post, 100 telas estão em vários museus no mundo e 60 pertencem a coleções particulares, das quais 20 temos aqui. Acredito que seja um percentual apreciável”, argumenta o empresário, que, certa vez, para adquirir dois quadros de Post, foi ‘obrigado’ a comprar uma coleção inteira, com 98 telas, no Rio de Janeiro. “Hoje, o Instituto não tem condições de comprar um Frans Post pela valorização que houve das obras dele no mercado. E eu mesmo ajudei a inflacionar, pois pagava sempre a mais do que a obra custava para fechar o negócio”, informa Brennand.
“Agora acho que cheguei ao meu limite, eu não posso pensar em ampliar mais isso aqui. O Instituto está completo”
O IRB foi inaugurado no ano de 2002, numa área de 256 mil metros quadrados, onde foram construídos uma galeria, o Castelo de São João, uma biblioteca, o Parque das Esculturas, além da Pinacoteca. A Capela Nossa Senhora das Graças foi o último edifício construído no complexo cultural, em 2014, uma homenagem à esposa de Brennand, Graça Maria Monteiro. Todo primeiro e terceiro domingo do mês, são celebradas missas no local, sempre abertas à participação da comunidade.
“Essa obra (o Instituto) não custou pouco. Ela representa muitos anos da minha vida, que tornaram possível recolher essas peças maravilhosas no mundo inteiro”, explica Ricardo Brennand. “A igreja foi a última obra que fiz no Instituto, com muito carinho e capricho. Ao fazer as coisas, tenho sempre em mente fazer da melhor forma possível. Mas agora acho que cheguei ao meu limite, eu não posso pensar em ampliar mais isso aqui. O Instituto está completo agora”, disse.
MELHOR MUSEU DA AMÉRICA DO SUL
Uma vez a cada mês a entrada é gratuita no IRB, que mantém três exposições permanentes na Pinacoteca, enquanto a galeria recebe mostras temporárias. Dois quadros do artista italiano Canaletto são as obras mais caras de todo o acervo, cada uma está avaliada em US$ 17 milhões. Além de Canaletto, outras obras preferidas por Ricardo Brennand, dentre as mais de oito mil peças – datadas do século II até os dias atuais – são a escultura em mármore A Mulher Reclinada na Rede, de António Frilé, além de duas peças em marfim que retratam os deuses chineses, numa espécie de “filigrana inconcebível”.
O curioso do IRB, hoje o museu mais visitado no Norte e Nordeste, é que o acervo conta também com peças de mobiliário, artes decorativas e tapeçaria, como dois valiosos tapetes gobelin do século que foram adquiridos por Brennand do embaixador e banqueiro Walther Moreira Salles, em Petrópolis, no Rio de Janeiro. Do mínimo ao gigante, o visitante percebe que tudo no Instituto tem muito valor e uma história para contar.
As peças de arte decorativa e de mobiliário foram garimpadas por Brennand, muitas vezes, com o objetivo de compor um cenário, dar suporte a outra obra, ou para encaixar milimetricamente numa parede. A sensação é que toda disposição espacial do museu está claramente desenhada na sua cabeça, assim como todas as obras devem estar catalogadas. Dois portais, um entalhado em madeira e outro feito todo em uma única peça de bronze, valorizam ainda mais os ambientes internos dos edifícios da Pinacoteca e do Castelo de São João. “Calculei de olho que o portal daria aqui e não é que encaixou perfeitamente”, se orgulha o empresário.
O IRB encanta também do lado de fora. O cenário bucólico da propriedade, na Várzea, se harmoniza com a proposta do complexo cultural. No jardim da Pinacoteca, há dezenas de esculturas como a réplica de Davi, de Michelangelo, feita pelo estúdio Cervietti Franco e que utilizou o mesmo mármore da pedreira original, em Pietrasanta, na Itália. Mas nada chama mais a atenção do que a imponente escultura do artista colombiano Fernando Botero Mulher no Cavalo. A obra está exposta com um conjunto de peças similares, em bronze patinado, produzidas pela artista gaúcha Sonia Ebling e que retratam animais como rinocerontes e pássaros.
“Não é fácil dizer quando despertou em mim o desejo de colecionar. Sei que um belo dia, passei a adquirir muitas coleções e quando já não tinha mais onde guardar em casa, senti a necessidade de encontrar um lugar próprio para abrigar minhas armas brancas e obras de arte”, explica Ricardo Brennand, revelando o que o motivou a construir o Castelo de São João, onde ficam em exposição mais de seis mil armas, 50 armaduras de cavaleiros e outros objetos da Idade Média. Uns dos xodós de Brennand são as espadas folheadas a ouro e com pedras preciosas incrustadas que pertenceram ao rei Faruk I, o último rei do Egito.
“A minha coleção de armas supera tudo, para mim é a parte mais bonita do Instituto”, pontua. A paixão por armas brancas e por coisas antigas começou ainda na infância, incentivado pelo tio Ricardo Brennand, a quem o empresário fez uma homenagem batizando o nome do instituto. Foi do pai, Antônio Luiz Brennand, que ele ganhou o primeiro canivete. O acervo do IRB ainda conta com mais de 60 mil títulos da biblioteca, entre livros, partituras, discos, documentos, mapas e folhetos do Brasil Holandês.
Por dois anos consecutivos, 2014 e 2015, o Instituto foi eleito o melhor museu da América do Sul pelo Traveller’s Choice Museums, doTripAdvisor, visto como maior site de viagens do mundo. Preocupado com a existência do IRB no futuro, Brennand tomou providências para garantir o acesso a esse patrimônio cultural pelas próximas gerações. “Nos prevenimos, com todos os instrumentos necessários, para dar continuidade à existência do Instituto. A minha família já não tem mais ingerência sobre o IRB, por essa já ser uma atividade pública. Tem dias que recebemos mais de mil visitantes aqui”, comemora Ricardo Brennand.
UM HOMEM DE FÁBRICAS
O Engenho de Açúcar de Post retrata um momento da história de Pernambuco e, de certa forma, da origem dos recursos que financiaram o sonho de Brennand. Assim como outras famílias pernambucanas, os Brennand também construíram seu império a partir da cana de açúcar. Ele inclusive nasceu numa usina, a Santo Inácio, no município do Cabo de Santo Agostinho, na Região Metropolitana do Recife. A família foi também proprietária da Usina São João (de 1892), no bairro da Várzea, nas mesmas terras onde está sediado o IRB. “Eu nasci, cresci e trabalhei durante muito tempo da minha vida na usina. Fazia de tudo, no campo ou na indústria. Eu saí do ramo quando meu filho (Antonio) faleceu, fiquei desgostoso e depreciei o negócio”, conta ele, que teve oito filhos, 20 netos e 30 bisnetos. A partir daí, Ricardo Brennand passou a se dedicar às fábricas do ramo industrial da família: vidro, porcelana, azulejo, aço e cimento.
“Eu sou um homem de fábricas. Toda minha existência foi ligada a fábricas. A minha formação veio do meu pai, que era um industrial obcecado pelo que fazia. Ainda meninote construí a Cerâmica São João, logo que saí de Santo Inácio. Depois, fui à Alemanha, onde comprei os equipamentos para montar uma fábrica de azulejos aqui. Nos associamos à Nadir Figueiredo, do Sul do país, e fizemos a fábrica de vidros no Recife, uma das mais bonitas, com quatro chaminés bem altas (80 metros de altura)”, resgata. “Sempre que eu digo que eu fiz, eu me refiro a mim e a meu primo Cornélio, porque sempre trabalhamos juntos”, acrescenta Brennand.
O empresário contabiliza a construção de 20 fábricas, além de 17 usinas hidrelétricas de pequeno porte, em vários estados do Brasil. As fábricas mais recentes são duas de cimento, uma na cidade de Sete Lagoas, em Minas Gerais, e outra em Pitimbu, na divisa de Pernambuco com a Paraíba. Sua obra mais perene, no entanto, é uma usina de amor à arte: o Instituto Ricardo Brennand.
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