A porteira do criptoagro

Empresas do agronegócio entram na era da tokenização e aderem ao lançamento de criptoativos para


Edição 30 - 03.08.22

Empresas do agronegócio entram na era da tokenização e aderem ao lançamento de criptoativos para digitalizar e simplificar operações comerciais e financeiras com insumos e commodities.

O produtor rural é frequentemente retratado como um sujeito conservador, desconfiado, sobretudo quando o assunto é dinheiro. Por isso, os executivos da Cibra, uma das cinco maiores empresas de fertilizantes do Brasil, foram pegos de surpresa com o interesse do público pela novidade que a empresa levou para a Expodireto, feira agropecuária promovida pela Cotrijal em Não-Me-Toque, no Rio Grande do Sul, no final de fevereiro. Em seu estande, além dos insumos tradicionais, a companhia apresentou um produto digital: a CibraCoin, uma moeda digital voltada exclusivamente para a compra e venda de fertilizantes.

“O interesse na feira nos surpreendeu e tudo aponta que vai haver uma boa aceitação do mercado”, afirma Kelly Nakaura, diretora de Marketing da Cibra. A inovação, em um segmento poucas vezes associado a novidades tecnológicas, indica como as porteiras do agro estão abertas ao experimento de diferentes modelos para comercialização de insumos e da produção, que podem transformar radicalmente a forma como negócios são feitos no campo. A semente dos criptoativos, um conceito ainda complexo mesmo para investidores experientes nas cidades, já foi lançada no meio rural.

Diferentemente das criptomoedas mais conhecidas, como a bitcoin, normalmente associadas à volatilidade, a CibraCoin é um criptoativo classificado como stable coin, ou moeda estável, em uma tradução livre. Isso porque seu valor está vinculado diretamente a um ativo físico, no caso os próprios fertilizantes. A principal vantagem, segundo Rafael França, head de Inovação da Cibra, é que o criptoativo permite travar o preço do fertilizante no momento da compra para o uso futuro do ativo, quando as cotações já poderão ter aumentado. “A CibraCoin resolve um problema real do produtor, assim como ele tem uma garantia de entrega do produto”, afirma.

“A gente identificou que o mercado carecia há bastante tempo de uma ferramenta de mercado futuro de fertilizantes. O produtor tinha poucas alternativas para travar o preço. É uma oportunidade para entregar ao produtor um serviço diferente através da tecnologia de blockchain”, diz. Cada vez mais presente como padrão para conferir autenticidade em processos digitais, o blockchain é um sistema que usa blocos de dados criptografados para transmitir informações pela internet. Graças à criptografia (daí o nome criptomoedas), essas informações são praticamente à prova de fraudes.

Apesar da complexidade escondida por trás dos sistemas, para quem se interessa em comprar e vender os criptoativos as operações podem ser simples. Eles são negociados em plataformas criadas especialmente para este fim, as chamadas exchange. No caso da CibraCoin, a negociação é feita pela Stonoex, a partir de um site próprio. Cada CibraCoin equivale a 1 quilo de fertilizante MAP. Para adquiri-la, basta se cadastrar, fazer o depósito e ir às compras. E não é preciso ser agricultor. Se o objetivo inicial da empresa era criar uma alternativa para a comercialização de seus produtos, a novidade também não passou despercebida por quem quer apenas ganhar com eventuais altas na cotação dos fertilizantes.

“Miramos o produtor e atingimos o investidor”, diz Rafael Nezzi, CFO da Cibra. Ele lembra que esse é um mercado novo para o setor rural, que passa por um processo de entendimento, mas acredita que a tecnologia veio para ficar. “Há um movimento de aculturamento do mercado. O relacionamento híbrido da parte digital e da parte humana, essa união dos dois mundos é muito positiva para o desenvolvimento do setor e está nos trazendo os melhores resultados”, observa.

Commodities digitais

O mercado de criptoativos é novo e, como tal, descortina um universo de operações e termos próprios. Quando um ativo real é apresentado em forma digital para comercialização, ele se transforma em um token. Um dos mais notórios exemplos da chamada tokenização do agro é uma criptomoeda argentina para a negociação de soja, a Soya. Criada pela empresa Agrotoken com a meta de transformar em ativos digitais o equivalente a 5% da produção agrícola mundial, a companhia investiu US$ 5 milhões na tecnologia blockchain no ano passado. O potencial da inovação chamou a atenção da filial argentina do banco Santander, que garantiu um aporte de US$ 225 milhões para criptomoedas rurais no país.

O lançamento da Soya no Brasil estava previsto para abril. “Estamos aproveitando tecnologia e inovação para gerar novas soluções de negócios que facilitem a vida dos agricultores e ampliem suas oportunidades. Esta é a primeira vez que uma plataforma de serviços financeiros usa a tecnologia blockchain e criptoativos para expandir o mercado de crédito agrícola e desbloquear o potencial de negócios do agricultor”, comenta o chefe de Agronegócio do banco, Fernando Bautista.

A Agrotoken transforma em moedas digitais as cargas de soja depositadas em armazéns de parceiros, como a trading Cargill. Uma vez verificada a procedência do grão, a trading emite um certificado que, depositado na plataforma da Agrotoken, é convertido em uma quantidade correspondente em Soyas. O produtor pode optar entre guardar e esperar a valorização da moeda – que varia conforme a cotação da soja no mercado internacional – ou usá-la para fazer negócios com empresas parceiras.

No Brasil, a cooperativa Minasul também já colocou no mercado a Coffee Coin, cujo valor de face equivale a 1 quilo de café verde no padrão commoditizado. E mais lançamentos devem ocorrer em breve, como a moeda Btracer, prevista para maio. “Serão emitidos 990 milhões de Btracer na Flow BTC [uma das bolsas de criptomoeda]”, revela o empresário Expedito Belmont. A companhia tem uma carteira de diversos produtos, como o Café Montueira, de Minas Gerais, queijo da Serra da Canastra (em fase de prospecção) e Amazônia Smart Food (açaí, hambúrguer vegano etc.). A meta é tokenizar o resultado do trabalho de cerca de 250 mil produtores rurais ligados à Federação da Agricultura e Pecuária do Estado de Minas Gerais (Faemg).

“Você colocou R$ 1.000 num café de alta qualidade de Minas Gerais. Se usa a BTracer, você tem a auditoria e o relatório. O lastro é a operação. Quanto mais operações, de acordo com as culturas, o valor do token aumenta”, conta Belmont. “O produtor que está usando a BTracer tem nossa auditoria para o B2B. Ele também poderá comprar os tokens via fóruns ou outras empresas”, acrescenta.

A BTracer utiliza tecnologia baseada na Cryptomiles, da fabricante de automóveis elétricos Tesla – com a qual o motorista acumula tokens conforme conduz o veículo. A capitalização de mercado do novo token é estimada em R$ 99 milhões, ou 10% da emissão total de moedas. “O que for capitalizado é rateado entre os parceiros. É como se fosse um fundo. Um crowdfunding de criptoativos”, observa Belmont.

O investimento pode ser feito em três minutos, de acordo com ele. Na outra ponta, permite o alavancamento financeiro do produtor e, numa eventual escassez de crédito bancário, substitui o déficit de dinheiro público ou privado. “Uma vez digitalizado, o crédito fica disponível.  A gente pega tecnologia muito pesada, complexa e bota na mão do pequeno e médio produtor. Transforma em criptomoeda”, frisa o empresário.

Campo fértil

A tokenização do agro é vista como uma das grandes tendências do setor para os próximos anos. A tecnologia blockchain já tem sido usada na desburocratização de vários processos contratuais e financeiras no setor e, com sua popularização, sua utilização para simplificar operações como barter ou hedge para preços de insumos deve crescer de forma exponencial.

“O mercado financeiro está para a tokenização assim como em 2012 os consumidores estavam para os novos smartphones. Nos próximos três anos, o mercado de modo geral estará 100% tokenizado”, prevê Cássio Krupinski, fundador da BlockBR. A empresa é um braço da CriptoValey, considerada o Vale do Silício das criptomoedas, na Suíça. “Se você hoje tem empresas com tokens distribuídos dentro da B3, o mercado tradicional é igual água e óleo, não se mistura, tem outros sistemas de lastro e organização. O mercado financeiro sempre criou siglas que complicam, por isso 95% da população não investe”, analisa Krupinski.

Segundo ele, as criptomoedas vieram para facilitar a relação da população com as finanças profissionais. “O blockchain é como se fosse um livro-razão de forma extremamente segura e eficiente, com regras claras para o investimento. É imutável. Nunca houve hackeamento de blockchains de criptoativos desde 2008. Uma criptomoeda nasce de uma blockchain ou é um token. O que rege a regra de um contrato é um smart contract”, define o especialista.

A BlockBR trabalha com 16 clientes em cinco diferentes segmentos, como mineração e imobiliário. Está começando a trabalhar no agronegócio. “O agro precisa de soluções antes de ser tokenizado, a não ser que sejam tokens para substituir CRIs, CRAs e CPRs, porque é um mercado muito tradicional. Para criar uma cultura digital na cabeça de fazendeiros, ainda vai levar um tempo”, diz Krupinski.

Para o executivo, a tokenização faz sentido para tudo o que se refere a recebíveis para o agro. “O que ainda é muito nebuloso para o agro é que as empresas do setor precisam pensar em soluções em blockchain antes de tokenizar”, ele diz. A criação de regras para cada ativo faz parte do processo, permitindo a criação dos tokens. A porteira digital está aberta.