O alimento que veio do frio

Por Sandro Fernandes, de Moscou Sede da concentração da seleção brasileira durante a Copa da Rú


Edição 9 - 24.05.18

Por Sandro Fernandes, de Moscou

Sede da concentração da seleção brasileira durante a Copa da Rússia,  a cidade de Sochi é um dos balneários mais conhecidos do país. A cada verão, suas praias banhadas pelas águas do Mar Negro atraem milhares de turistas. Quando  chega o frio, os visitantes voltam, em busca das estações de esqui – em 2014 Sochi foi a anfitriã dos Jogos Olímpicos de Inverno. Há, no entanto, outras riquezas menos visíveis trazendo prosperidade à região nos últimos anos. Uma das áreas com solo mais fértil em um território de clima normalmente inclemente, o sul da Rússia tem sido o epicentro do renascimento do agronegócio no maior país do mundo em extensão.

As seguidas safras recordes da agricultura russa vêm sendo celebradas pelo governo e pelos produtores locais. E os grãos são o grande destaque desse crescimento. A expectativa é de que a colheita de 2017/18 atinja a marca inédita de 133 milhões de toneladas, com o trigo representando aproximadamente 25% da produção total. É o grão dourado que puxa também as exportações russas saídas do campo. Nos últimos 15 anos, elas aumentaram em nove vezes.

Por trás desse desempenho está (como em quase tudo na Rússia) um grande programa de incentivo estatal. A agricultura mereceu especial atenção dos investimentos – e dos elogios – governamentais. O primeiro-ministro russo, Dmitry Medvedev, declarou recentemente que “o agronegócio é o orgulho” da Rússia. E explicou que o “apoio estatal sem precedente” é o principal motivo para o rápido crescimento do setor. Nos últimos seis anos, foram mais de US$ 18 bilhões aportados pelo Kremlin na modernização da logística agrícola. Os recursos foram usados na ampliação da rede ferroviária, no aumento da capacidade dos portos e na melhoria da capacidade de armazenamento de produtos e da rede de distribuição.

EMPURRÃO EXTERNO

As decisões do governo em Moscou tiveram como pano de fundo um complexo cenário de pressões internacionais, que em parte remetem ao ambiente de Guerra Fria da segunda metade do século 20. Em março de 2014, União Europeia, Estados Unidos, Nova Zelândia, Austrália e Canadá aprovaram um pacote de sanções econômicas contra a Rússia. A medida foi uma represália à anexação da região ucraniana da Crimeia (também com solos produtivos) por Moscou, depois de um referendo controverso que não foi reconhecido pela comunidade internacional.

Com um discurso nacionalista e autossuficiente, a Rússia reagiu anunciando medidas retaliatórias contra o Ocidente, bloqueando ou restringindo importações de alimentos provenientes dos países que sancionaram a Rússia. Com isso, Moscou obrigou-se a buscar alternativas internas e diversificar a sua econômica. O presidente russo, Vladimir Putin, afirmou que as sanções levaram a Rússia a diminuir a dependência das commodities de energia e a desenvolver outras indústrias, como a eletrônica, e a agricultura.

Os reflexos foram imediatos. As compras de alimentos oriundos da União Europeia, por exemplo, diminuíram em 40% entre 2013 e 2016, criando uma oportunidade única para o agronegócio russo. E ela parece ter sido muito bem aproveitada. Logo no primeiro ano de sanções, o lucro da Rusagro, maior empresa agrícola do país, aumentou em 57%. “A Rússia se transformará em um dos líderes do mercado global agroindustrial nos próximos anos” afirmou Putin recentemente em um encontro com agricultores no sul do país. Na ocasião, ele ressaltou aos produtores que as exportações agrícolas superam a exportação de armas, o que não é pouca coisa em um país com tradição bélica. Foram, segundo dados do governo russo, US$ 28,8 bilhões do setor agrícola contra US$ 15,6 bilhões do de defesa. Putin disse ainda que o objetivo é que, em quatro anos, o país exporte mais alimentos do que importa.

O crescimento das exportações de grãos tem, de fato, chamado a atenção do mundo. Segundo a FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, na sigla em inglês), houve um acréscimo de 20% na safra 2017/18 em relação a 2016/17. A cifra foi alavancada pelos ótimos números da exportação de trigo, que aumentou em 43% no período, atingindo um total de 33,7 milhões de toneladas. A estimativa do Instituto de Estudos do Mercado Agrícola da Rússia é de que a capacidade agrícola russa pode chegar a 40 milhões de toneladas de trigo. O país controla hoje 22% do mercado global desse grão, seguido pela União Europeia e pelos Estados Unidos, com 14% e 13%, respectivamente. A previsão do Conselho Internacional de Cereais é de que a Rússia se confirme como o maior exportador de trigo do mundo.

ATIVIDADE AQUECIDA

Nem mesmo os superpoderes de Putin no comando da Rússia poderiam, entretanto, controlar o terceiro fator que contribuiu para o boom do agronegócio do país nos últimos anos. Além da conjuntura política e econômica internacional e dos investimentos estatais, o aquecimento global – tão prejudicial em outras áreas do planeta – tem tido uma contribuição importante para a elevação da produtividade por lá. A temperatura da área cultivável do país deve subir 1,8 grau nos próximos dez anos e pode aumentar em 3,9 graus até 2050.

No termômetro, a variação não parece tão grande. Mas os seus efeitos seriam imensos. Com invernos menos rigorosos, as temporadas de produção da agricultura tendem a ficar mais longas. Além disso, regiões mais ao norte do país, hoje improdutivas, podem, com o auxílio de novas tecnologias, se tornar cultiváveis. Estima-se que a modernização do campo e a mudança climática possam transformar 57 milhões de hectares em áreas agrícolas na Rússia.

A porção sudoeste do país é mundialmente conhecida pela fertilidade do chernozem, um solo preto, rico em húmus, e pelo clima temperado. O cinturão negro russo se estende pelo sul, desde a fronteira com a Ucrânia e as terras ao norte dos mares Negro e Cáspio, passando pela região do Volga, dos montes Urais, até a Sibéria Ocidental. Com as mudanças climáticas, o aumento de temperatura nessa faixa, onde se produzem os grãos, permitiria pensar em ampliar o período de cultivo no país. E, da mesma forma, deslocar essa faixa para latitudes mais altas – embora o solo, fora do cinturão negro, não seja tão propício.

Segundo o Roshydromet, Serviço Federal de Hidrometeorologia e Meio Ambiente, na região de Stavropol, próximo ao Mar Cáspio, no sul da Rússia, a capacidade nominal de cultivo de grãos já aumentou em 30% devido às temperaturas mais amenas. Também de acordo com o mesmo Serviço, se forem confirmados os aumentos de temperaturas esperados até 2030, cultivos que antes não eram comuns em certas regiões russas poderão ser introduzidos. A região do norte do Cáucaso e do baixo Volga, por exemplo, podem virar produtores de algodão, uvas, chá, frutas cítricas e legumes.

O clima é o fator mais determinante na produção e na logística agrícola russa. Em 2017, condições meteorológicas adversas foram responsáveis por uma perda direta de US$ 31,7 milhões dos agricultores. Para mitigar essas perdas, o governo russo está investindo na modernização da infraestrutura de estocagem da produção. Além disso, desde 2011, o estado subsidiou 50% dos custos de seguros relacionados à agricultura.

Na Rússia, o frio é um desafio, mas não é um empecilho para a expansão agrícola. Em 2016, com investimento japonês, as geladas regiões de Yakutsk – apontada como a cidade mais fria do mundo, tendo registrado temperaturas inferiores a 50 graus negativos — e Khabarovsk, na Sibéria, ganharam estufas que funcionam o ano inteiro. Nelas são colhidos tomates, pepinos e outros vegetais mesmo durante o rigoroso inverno, diminuindo a necessidade de importação ou o transporte de outras regiões russas. A produção indoor de hortaliças subiu 30% no passado, comparado ao ano anterior.

TERRAS ABANDONADAS

A oportunidade de expansão agrícola da Rússia é grande. O país conta com pelo menos 10 milhões de hectares de terrenos abandonados que podem, potencialmente, ser usados para a agricultura, segundo o governo russo. Moscou pretende também aumentar os impostos sobre terrenos improdutivos e fomentar com isso o uso agrícola do solo. Além disso, o governo aumentou em 12% os incentivos para a agricultura, chegando a US$ 4,3 bilhões, com crédito agrícola e modernização dos equipamentos.

A anexação da Crimeia pela Rússia criou, porém, uma nova dificuldade para as exportações de grãos da Rússia, já que eles não podem mais utilizar os portos da Ucrânia. Os terminais da controversa Crimeia, agora de fato território russo, também esbarram em questões de legalidade de comércio internacional.

Para driblar os entraves diplomáticos, a Rússia pretende investir em novos terminais de grãos nos mares Cáspio e de Azov. Existem ainda planos para construir um terminal de grão no porto de Taman, no Mar Negro, e dois terminais no leste do país, na fronteira com a China. Os terminais próximos à China aumentariam a capacidade de exportação de grãos em 11 milhões de toneladas em 2020, quando estivessem prontos. Além disso, o porto de Ust-Luga, no Mar Báltico, está sendo avaliado por investidores e também pode ganhar um terminal de grãos.

CRESCIMENTO ORGÂNICO

A expansão agrícola russa chegou também à fronteira orgânica. Em 2016, o governo russo proibiu o cultivo e a importação de plantas e a criação de animais geneticamente modificados, exceto para estudos científicos. Putin quer que a Rússia se transforme no maior exportador de produtos não transgênicos. Em 2014, o espaço reservado na Rússia para a agricultura orgânica dobrou. E no ano seguinte aumentou em mais 57%, colocando a Rússia como um dos países com maior crescimento de solo reservado para essas culturas.

A desvalorização do rublo, a moeda russa, também impulsionou as exportações do país, permitindo que a Rússia se consolidasse no Egito, maior importador de trigo do mundo, e ganhasse novos mercados, como Senegal, Marrocos, Nigéria, Bangladesh, Indonésia e até mesmo o improvável e distante México, tradicionalmente cliente do vizinho americano.

A diversificação da economia russa vem sendo repetidamente enfatizada como prioridade do governo russo há pelo menos uma década. Antes das sanções, 52% do queijo consumido na Rússia era importado. Depois das sanções, esse número caiu para 30%. A produção suína da Rússia é outro setor que impressiona pelo rápido crescimento. Em 2013, a Rússia importou mais de 850 mil toneladas de carnes de porco.

Em apenas dois anos, a importação se reduziu a menos da metade e Moscou começa a se consolidar como um pequeno exportador de porco, já presente no mercado chinês. Alguns especialistas se arriscam a dizer que a Rússia é uma “exportadora silenciosa de carne suína”. De acordo com o ministério de Agricultura da Rússia, as exportações de carne da Rússia aumentaram 70% entre 2016 e 2017. O forte crescimento se deve ao aumento do número de países que permitiram a importação de carne russa. O número passou de 23 para 35, incluindo a China.

O boom do agronegócio russo mereceu até mesmo um relatório do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos. Um estudo chamado “O crescimento da produtividade e o renascimento da agricultura russa” analisa o resurgimento agrícola russo e alerta, entre outras coisas, que “o crescimento contínuo da produção de carne russa reduz ainda mais as importações de produtos animais do país, afetando grandes exportadores de carne para o país, como a UE e o Brasil”. Não por acaso, os exportadores brasileiros têm tido dificuldade nas negociações com Moscou para retomar as vendas de carne bovina. Com o agronegócio no centro da estratégia de Putin, a conversa tende a ser fria como o inverno da Sibéria.

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