Edição 6 - 12.10.17
O contato de Juliana Armelin e Paulo Siqueira com o café não ia além da xícara, até descobrirem no cultivo do grão uma possibilidade real de negócio. Cercaram-se de especialistas, entraram de cabeça na atividade e passaram de meros consumidores a premiados fornecedores de produtos especiais
Por Romualdo Venâncio | Fotos Emiliano Capozoli
A Fazenda Terra Alta, localizada em Ibiá (MG), é uma referência em cafés especiais na região do Cerrado Mineiro. É o que mostram as premiações já conquistadas por Juliana Armelin e Paulo Siqueira, os proprietários, e a opinião de seus clientes no mercado norte-americano. A maior parte dos grãos que produzem vai para os Estados Unidos e muitas das negociações são feitas por meio de empresas que trabalham com o sistema direct trade, também conhecido no setor como “planilha aberta”. Há ainda vendas diretas para algumas torrefadoras, resultado da persistência e da ousadia do casal, que chegou a abrir uma empresa por lá para facilitar a comercialização. “É um negócio interessante, pois o preço que pagam é superior aos do mercado de commodity e não flutua tanto”, diz Paulo. “É praticamente travar uma negociação futura”, acrescenta Juliana.
O casal fala com clareza a respeito dos mercados de cafés especiais, nacional e internacional, refletindo a intensidade com que o trabalho foi desenvolvido na Terra Alta, sobretudo por ainda ser algo recente. Os dois se aventuraram pelas lavouras há poucos anos. O plantio começou em janeiro de 2011. Dois anos depois, com a primeira colheita, já veio a conquista de um terceiro lugar na décima edição do Concurso de Qualidade dos Cafés de Minas Gerais – Região do Cerrado Mineiro CD, promovido pela Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural de Minas Gerais (Emater-MG). Em 2015, chegaram ao primeiro lugar do Prêmio Nacional Ernesto Illy de Qualidade do Café para Espresso, resultado que pode se repetir, pois estão entre os três melhores colocados da edição 2016. O resultado final do concurso será anunciado em outubro, em Nova York, e o vencedor vai direto para a disputa internacional do prêmio.
“Fomos para um negócio que não é tradicional para nós, é arriscado e dá trabalho. Tinha de ser algo do qual tivéssemos orgulho”
Juliana e Paulo se surpreendem com esse rápido reconhecimento, pois começaram o empreendimento do zero, tanto em infraestrutura quanto em experiência. Formados em engenharia elétrica pela Escola Politécnica da USP, com MBA pela Universidade de Chicago, eles trabalhavam em setores bem diferentes antes de se tornarem produtores de café. Ela era consultora gerencial na McKinsey. Ele atuava no mercado financeiro, pela Credit Suisse e por fundos independentes. “A gente entrou na atividade por uma série de coincidências”, conta Juliana. Tudo começou por causa do pai dela, que ao se aposentar decidiu comprar uma fazenda no Cerrado Mineiro. “Como era uma região de café, passamos a analisar a atividade e acabamos considerando uma mudança de carreira para iniciarmos algo nosso”, conta a cafeicultora.
Passados seis anos do início do projeto, há 210 hectares plantados com café arábica, podendo avançar mais 30. A área total soma 380 hectares. As variedades cultivadas são IAC 125 RN, IBC 12, Catuaí 2 Amarelo, Catuaí 2 Vermelho e Obatã Amarelo. “Reservamos um espaço desse terreno para testarmos outras opções, como Caturra, Catiguá e Paraíso”, comenta Paulo. A meta de produtividade média é de 55 sacas por hectare, algo que não deve ocorrer este ano por conta da forte geada que caiu sobre a região no ano passado.
A TÉCNICA COMO NORTE
Para Juliana e Paulo, a qualidade de sua produção resulta da própria dedicação de ambos e de diversos outros fatores. A lista deles começa a ser escrita no momento em que decidiram apostar na cafeicultura, com o planejamento. Se por um lado faltava experiência agronômica, por outro havia muito conhecimento sobre gestão de negócios, o que foi importante até para encarar as surpresas. “Houve riscos que não computamos”, lembra Paulo, que continua: “Quando mostramos a planilha ao pessoal mais experiente, ouvimos que faltava ali uns 30% de outros custos”.
Juliana acrescenta que a bagagem das carreiras anteriores permitiu que estruturassem com mais facilidade e rapidez as solicitações de financiamento. “Tanto que fizemos sozinhos”, afirma. O background acadêmico, acrescenta Paulo, serviu como estímulo para questionar a maneira como as coisas eram feitas e descobrir se podiam ser aprimoradas. “Foi isso que nos levou a fazer escolhas diferentes do que era comum na região. Também ajudou o fato de não termos uma tradição na atividade, de o negócio não vir de família já com um modelo a ser seguido”, diz ele.
“Fizemos escolhas diferentes do que era comum na região. Ajudou o fato de o negócio não vir de família já com um modelo a ser seguido”
Já na questão técnica, foi imprescindível a ajuda de especialistas para cada setor da atividade: plantio, irrigação, mecanização, pós-colheita e qualidade. “Falamos com outros produtores e diversos profissionais da cadeia para saber como fazer o negócio da melhor maneira possível”, conta Juliana. A preparação da terra, por exemplo, foi um grande desafio, pois a maior parte era pasto e uma pequena área tinha batata. Iniciaram o plantio do café em 50 hectares e arrendaram o restante da área destinada à lavoura para um vizinho cultivar soja e feijão. Com o tempo, foram conseguindo o nivelamento do solo que precisavam para avançar em produtividade. Outro fator crucial nesse início foi a produção de mudas. “Compramos as sementes e montamos nosso viveiro. Isso faz muita diferença, pois assegura qualidade e sanidade”, comenta a produtora.
Entre as escolhas que mais chamaram a atenção na fazenda estão os terreiros suspensos. Desde o início, a secagem de todo o café da Terra Alta é feita nesse sistema. “Nos incomodava a ideia de produzir os grãos com tanto cuidado e depois vê-los espalhados pelo chão, sendo pisoteados”, justifica Paulo. A relação custo-benefício também pesou na decisão. “O custo inicial do terreiro suspenso é 25% do que custa um terreiro de concreto. Fizemos as contas e decidimos apostar, ainda que fosse necessário aumentar a equipe para dar conta do trabalho”, diz Juliana. A opção foi favorecida pela organização na gestão da propriedade. O plantio e a colheita escalonados permitiram um melhor controle do fluxo e do manejo da produção. Muita gente visita a fazenda principalmente para ver os tais terreiros.
Os resultados passam também pelo sistema de irrigação por gotejamento, que além de água leva nutrientes para as plantas, e pelos cuidados com a sanidade do cafezal, sobretudo no combate à broca. A colheita mecanizada é acompanhada de perto pelo casal, que para ter a melhor regulagem dos equipamentos buscou a ajuda de Fábio Moreira da Silva, professor da Universidade Federal de Lavras (Ufla) especializado em máquinas agrícolas.
Paulo comenta que a fazenda é um grande laboratório, pois com tantos fatores que influenciam os resultados é preciso fazer diversas experiências. “Quando você olha um centro de pesquisas em finanças, há dados para analisar o que quiser, projetar cenários. Ou seja, virtualmente é possível testar tudo e avaliar a variável específica que você quer entender. No café, a gente pega partes de pesquisas, informações de lugares diferentes e variáveis diversas”, comenta.
QUALIDADE PRESERVADA
As conquistas de Juliana e Paulo no setor de cafés especiais têm relação direta com a capacidade de preservarem a qualidade dos grãos produzidos até a torrefação. Nessa etapa do negócio, o casal contou com a assessoria de Flávio Borém, também professor da Ufla e especialista em qualidade do café, que os ajudou a diferenciar os lotes que poderiam apresentar melhores resultados e a entender essa classificação. Outra contribuição importante veio das equipes técnicas responsáveis pela implantação de toda a estrutura de pós-colheita, secagem e embalagem dos grãos.
A rastreabilidade de todos os lotes ajuda a distinguir a influência de cada fator no processo produtivo, condição fundamental tanto para corrigir o que está fora do padrão quanto para otimizar o que vai bem. “Se o resultado não sai como esperado, a gente consegue fazer o caminho de volta, pois sabemos, por exemplo, quando aquele café foi colhido e a qual talhão pertencia, temos anotações de como foi no terreiro – se cheirou melhor ou estava mais doce, e vários outros dados”, diz Paulo. Segundo ele, esse controle é um instrumento de venda.
Nada disso seria possível sem a sintonia dos profissionais que trabalham em cada setor da fazenda com os objetivos dos proprietários. Quanto mais entendiam o que as premiações e a valorização comercial representam para o negócio como um todo, maior se tornava o comprometimento. “A preocupação começa com a gente, mas precisamos transmitir à equipe”, comenta Juliana. “As premiações ajudaram bastante, pois a gente percebe uma sensação de orgulho dos colaboradores por fazerem parte”, acrescenta Paulo. A soma desses fatores cria uma plataforma para conquista de novos clientes, sobretudo os que pagam melhor.
“Hoje nos dedicamos a realizar. Antes, passávamos muito tempo convencendo outras pessoas de que as ideias valiam a pena”
A Terra Alta tem dois clientes na Flórida e um com operações na Califórnia e no Kansas. Paulo conta que exportar cafés especiais para os EUA é trabalhoso e tem alto custo, mas ainda assim tem sido mais vantajoso do que vender aqui no Brasil. Ele explica que uma torrefadora pequena de lá chega a comprar até dez sacas por mês, enquanto uma empresa brasileira com a mesma dimensão compraria essa quantidade em um ano. “Além disso, há mais dificuldades por conta da logística e de questões tributárias, o que acaba encarecendo também para o consumidor final.”
A seleção e a preparação dos lotes com maior potencial de exportação têm a assessoria de empresas especializadas. A qualidade do café é o fator primordial nas negociações com os compradores estrangeiros, mas a venda fica ainda mais interessante se o produto chegar às mãos deles bem apresentado. Um trabalho de desenvolvimento de marca e embalagem foi realizado em parceria com a Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (ApexBrasil), o Centro Brasil de Design (CBD) e a agência Casa Rex.
EVOLUÇÃO POR INTEIRO
A origem no meio urbano exigiu de Juliana e Paulo um grande esforço para entender como é a vida no campo e as particularidades da produção agrícola. Por outro lado, já começaram o negócio com a importante visão sobre os costumes e as preferências do consumidor dos grandes centros, algo que grande parte dos agricultores não tem. Tal consciência ajudou até mesmo na definição do conceito do empreendimento. “Como saímos de carreiras executivas para fazer um negócio que não é tradicional para nós, é arriscado e dá tanto trabalho, tinha de ser algo do qual tivéssemos orgulho”, diz Juliana. “Além de assegurar a qualidade do café, precisamos produzir de forma correta.”
Devido a essa preocupação com a imagem que passam ao mercado, há uma busca permanente por melhorias no processo produtivo, a exemplo da etapa de fermentação do café. O objetivo é fazê-la sem água, diferente do que ocorre normalmente. A opção, no entanto, é mais trabalhosa e exige um controle mais rigoroso para alcançar a uniformidade. Enquanto não chegam à equação correta para a fermentação a seco, procuram alternativas de reutilização dos recursos hídricos. “A intenção é conseguirmos uma forma eficiente de chegar com essa água até a irrigação, pois tem também muito material orgânico que faria bem aos cafezais”, explica Juliana.
O amadurecimento como produtores trouxe outras mudanças significativas. Uma delas é a forma como Juliana e Paulo passaram a tomar café. Hoje é praticamente um ritual. “Agora leva muito mais tempo, há bem mais procedimentos”, afirma Paulo, o responsável pelo preparo da bebida na família. “Ainda estamos longe do paladar aguçado, a ponto de conseguir identificar todas as fragrâncias, as nuances do café, mas ficamos bem mais exigentes.” Naturalmente, o casal ampliou o campo de visão para novas possibilidades. Sempre que viajam a outros países trazem café dessas localidades para saber o que se bebe mundo afora, inclusive opções exóticas.
MUDANÇA DE VIDA
A Fazenda Terra Alta ainda é um investimento para Juliana e Paulo, pois mesmo gerando renda está distante de cobrir os recursos já aplicados. É até compreensível, levando-se em conta que formaram os cafezais e toda a infraestrutura do zero. Mas eles estão certos – e afirmam sem pestanejar – de que sua produção de café é um bom negócio, ou bem mais que isso. “Mesmo que demore um pouco mais ou um pouco menos para chegarmos aonde queríamos, temos a vantagem de estarmos trabalhando juntos, conseguimos passar mais tempo em companhia um do outro”, conta Paulo, que continua: “A gente lida com pessoas de que gosta, e isso faz o negócio ainda mais prazeroso”.
Diferentemente da carreira profissional que tinham antes, hoje os dois têm muito mais autonomia para tomar decisões, para definir os rumos a seguir. “Como é um negócio menor, familiar, a gente imprime o ritmo e consegue fazer as coisas que acha importante. Nos dedicamos bastante a realizar, implementar, enquanto nos outros empregos passávamos muito tempo convencendo outras pessoas de que as ideias valiam a pena”, avalia Juliana. A leveza para falar sobre esse equilíbrio entre a vida profissional e a familiar é uma característica marcante do casal. A seriedade com que administram a fazenda não impede que comentem seu negócio sempre de forma bem-humorada, ainda que seja sobre alguma situação complicada. “Deve ser o café”, brinca a produtora.
JULIANA ARMELIN E PAULO SIQUEIRA
47 anos e 44 anos
Ela é nascida em São Paulo (SP) e ele, em Belo Horizonte (MG), são casados e têm dois filhos. Moram na Granja Viana, na capital paulista, mas passam bastante tempo na fazenda, principalmente no período de colheita.
Cargo: proprietários
Faturamento: não revelado
Área total: 380 hectares
Área de plantio: 210 hectares
Produção média (meta): 55 sacas por hectare
Hobbies: viagens em que praticam esportes de aventura (escalada, caminhada e mergulho) e experimentam comidas exóticas e cervejas diferentes. Juliana gosta de fotografia e cinema e Paulo, mergulho e jiu-jítsu.
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