Edição 4 - 18.10.17
Por mais de vinte anos o pecuarista Jonas Barcellos garimpou na Índia o que ainda faltava para seu rebanho, enfrentou dificuldades culturais e burocráticas, mas encontrou várias surpresas que podem dar, literalmente, um novo sangue ao rebanho brasileiro. A melhor delas: o salto em produtividade
Por Romualdo Venâncio/Fotos: Emiliano Capozoli, de Uberaba (MG)
Se hoje somos os maiores exportadores globais de carne bovina, com negociações anuais que passam de 1,4 milhão de toneladas e arrecadam cerca de US$ 5,5 milhões, como informa a Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (Abiec), muito se deve ao avanço do gado zebuíno, sobretudo o Nelore, em terras brasileiras. Cerca de 80% dos mais de 215 milhões de bovinos espalhados pelo País têm algum grau de parentesco com as raças de origem indiana. Esse processo vem sendo trabalhado há décadas, desde a histórica importação de reprodutores como Karvadi, Taj Mahal e Godhavari, que vieram da Índia no início dos anos 1960 e formaram a base de praticamente todo o rebanho nacional de Nelore. Na década de 1990, esse melhoramento genético foi renovado pela iniciativa de pecuaristas como Jonas Barcellos. Agora, esse grupo lidera um novo salto, depois de décadas de uma nova saga em busca de animais que trouxessem uma nova carga genética ao rebanho brasileiro. Na Chácara Mata Velha, a propriedade de Barcellos em Uberaba (MG) que se transformou em referência da raça Nelore no Brasil, essa aventura começa a dar resultados.
Por mais relevantes que as linhagens históricas tenham sido para a pecuária nacional, o grupo de Barcellos percebeu, há mais de 20 anos, que era chegado o momento de ampliar a árvore genealógica e diversificar os alicerces do melhoramento dos rebanhos. Até porque a consanguinidade já se tornava um limitante para a evolução do potencial produtivo dos animais. Era o caso do rebanho de Barcellos, que começou a ser formado em 1971 e ganhou sua vitrine em Uberaba, a meca da seleção das raças zebuínas. Não por acaso, também fica na cidade a sede da Associação Brasileira dos Criadores de Zebu (ABCZ). Mas o criatório de Barcellos começou mesmo a mais de 300 quilômetros dali, na cidade mineira de Capitólio.
O interesse pelo Nelore surgiu por causa da criação de seu vizinho e amigo, Alberto Mendes, o Betinho, na Fazenda do Sabiá. Veio também a influência do Nelore VR, de Torres Homem Rodrigues da Cunha, um dos responsáveis pela importação da Índia nos anos 1960. Com o apoio do consultor técnico Mário Borges, que era conhecido como “lapidador de rebanhos”, Barcellos foi até Dourados (MS), na fazenda de Joaquim Vicente Prata Cunha, o Tetente, filho de Torres Homem, em busca de seus primeiros animais. “Olhamos um lote de novilhas, mas o Mário não quis, pois viu que a cabeceira daquele grupo já havia saído. Ele era muito exigente”, lembra o criador. “Combinamos então que o Tetente nos apresentaria as bezerras, ainda mamando, sem separar nada. Escolhemos então 66 fêmeas de ponta.” A linhagem era Karvadi.
“Tudo o que estamos fazendo agora poderia ter acontecido há 20 anos”
Barcellos continuou pinçando animais na cabeceira de outros rebanhos consagrados para formar uma boa base e construir sua própria seleção. Entre essas fontes estava o criatório de João Humberto, irmão de Rubico Carvalho, que tinha linhagens de Taj Mahal e Godhavari. A expansão desse aprimoramento incentivou a compra de novas propriedades, já na região de Uberaba. Foi quando vieram as fazendas Calçada e Córrego do Macaco, e a Chácara Mata Velha. A evolução em ganho de peso e conformação de carcaça deixou claro qual era a direção daquele trabalho. “Em 1981, um de nossos animais, o Alumã, foi Campeão Frigorífico durante a ExpoZebu, pesando 610 quilos com 18 meses de idade. Um pouco depois, em 1985, outro exemplar de nosso rebanho pesou 605 quilos com apenas 15 meses”, comenta o pecuarista. “Hoje, com 1 ano de idade os animais já pesam entre 550 e 600 quilos.” Barcellos tem também uma propriedade em Santo Antônio do Aracanguá (SP), a Fazenda Santa Marina, onde realiza um programa de avaliação de produção de carne com o gado de desempenho.
DE VOLTA À íNDIA
Foi pensando em reduzir os riscos de consanguinidade e ampliar os ganhos de produtividade que Barcellos decidiu buscar na origem novas opções de genética. Em meados dos anos 1990 iniciou uma verdadeira saga para trazer da Índia produtos que seriam utilizados para intensificar o desenvolvimento do seu rebanho e contribuir com o avanço de outros criatórios. “Essa nova importação foi programada com outro olhar, bem dirigida para produtividade”, comenta o criador. Mas desta vez a compra seria de embriões, pois já não era mais permitido trazer animais. Para isso, era necessário contar com apoio técnico e infraestrutura.
Uma figura-chave nessa história foi o indiano Pradip Singh Bahadur Raol, que também é pecuarista, fala português e mantinha uma relação próxima com produtores do Brasil e com a ABCZ. “O melhor gado Gir da Índia é do Pradip”, afirma Barcellos. A propriedade do indiano acabou servindo como base da Mata Velha do outro lado do planeta. O médico veterinário Carlos Alberto Zanenga, diretor administrativo da Embriza, foi o responsável por desenvolver a estrutura por lá. “Montamos um laboratório muito bom, mas a logística era complicada”, lembra Zanenga. “Não havia nem tronco de contenção para o manejo dos animais. Tivemos de levar praticamente tudo do Brasil ou importar dos Estados Unidos.” Os desafios estavam apenas começando.As principais características que se buscava nos animais eram relacionadas a produtividade e funcionalidade, como fertilidade e precocidade de acabamento de carne. “A procura era por um gado que complementasse a seleção já existente”, explica Fernando Barros, médico veterinário que assessora Barcellos na definição dos animais que vão a leilão e é o responsável por cuidar dos produtos importados na Mata Velha. Barros comenta ainda que a renovação da genética visa fortalecer o equilíbrio da seleção, pois quando há ganhos expressivos em um aspecto, pode-se perder em outro. Bastava encontrar as matrizes que atendessem a tal demanda.
“Resolvi parar de falar em trabalhar menos, pois essas tantas atividade é que me dão mais entusiasmo.”
O problema é que, diferentemente do que acontece no Brasil, onde um criador pode visitar a fazenda de outro para propor alguma negociação, na Índia nem se sabia quem era o dono do gado. Zanenga conta que o primeiro passo era identificar os animais que poderiam interessar e, para isso, observavam o gado que andava solto pelas ruas ou em quaisquer outros lugares. Ao encontrarem a fêmea ideal, ou próximo disso, esperavam até o final do dia, quando a matriz voltaria para sua aldeia, tal qual um bicho de estimação. “Quando descobríamos quem era o dono da vaca, ainda era preciso conseguir a autorização do líder daquela aldeia para fechar negócio”, diz o veterinário. “E se esse líder não aprovasse, não tinha conversa. Em alguns casos podia ser até perigoso.” Também havia o risco de a fêmea não corresponder às expectativas, e neste caso nem se cogitava uma devolução.
CAMINHO DE VOLTA
Superadas as questões culturais e religiosas daquele país, compreensíveis e respeitáveis, vinham os obstáculos diplomáticos. “Ainda temos botijões lá na Índia, prontos para embarcar, com cerca de 5 mil embriões de uma genética diferente de tudo o que já trouxemos”, observa Barcellos. “Esse material está preso há seis anos em algum departamento do Ministério da Agricultura deles.” Quando iniciou o trabalho de garimpo genético por lá, ainda na década de 1990, o criador não conseguia embarcar os produtos para o Brasil, e a proibição partia daqui também. “Demoramos uns oito anos até que o Mapa (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento) liberasse as importações”, acrescenta, salientando o empenho de José Olavo Borges Mendes, então presidente da ABCZ, nessa questão.Jonas Barcellos esperou 15 anos até que conseguisse de fato trazer para sua fazenda o material genético que produziu na Índia. Ou seja, o trabalho que teve início em 1995 só começou a chegar ao Brasil em 2010. “Tudo o que estamos fazendo agora poderia ter acontecido há 20 anos”, diz o criador. Ao chegar por aqui, havia a exigência de que esses produtos passassem por um quarentenário, que era feito, primeiramente, na Ilha de Cananeia, em São Paulo, o que encareceu o processo. Segundo Barcellos, o custo para um embrião se tornar bezerro chegou a R$ 17 mil. Mais tarde conseguiu-se a transferência para uma fazenda.
O ponto alto da história é que, de uma forma ou de outra, os embriões chegaram à Mata Velha e os resultados já aparecem. Em outubro de 2011, por exemplo, nasceram 97 bezerros oriundos da Índia, das raças Nelore, Gir e Guzerá. Os animais que resultaram dessa importação corresponderam ao esperado em termos de desenvolvimento, ganho de peso e fertilidade. No ano passado, Barcellos recebeu uma comitiva da Índia formada por alguns governadores, senadores, produtores e até um membro do Ministério da Agricultura. “Eles ficaram impressionados ao ver o gado gerado a partir do material genético que veio do país deles”, diz Fernando Barros.PONTO DE ENCONTRO
Mais do que um grande centro de desenvolvimento de genética do Nelore, a Chácara Mata Velha ganhou notoriedade como um ponto de encontro dos principais selecionadores da raça, que depois passou a receber também nomes importantes entre empresários, políticos e lideranças de diversos segmentos. Um exemplo era a famosa feijoada realizada no período do leilão Elo de Raça, em maio, durante a Expozebu, que se transformou em uma grande oportunidade para conversas mais reservadas. Principalmente porque o encontro não era aberto à imprensa. “Não permitíamos repórteres na feijoada, para que os convidados tivessem privacidade e mais tranquilidade”, comenta Jonas Barcellos. “Em uma das edições, recebemos a Dilma Roussef e o José Serra.”
“Os indianos ficaram impressionados ao verem o gado gerado a partir do material genético que veio do país deles”
Outro grande evento era o jantar do Leilão da Mata Velha, que integrava a programação da Expoinel, em outubro. Barcellos comenta que recebia entre 600 e 700 pessoas na fazenda. Os dois encontros, que já não acontecem mais – e certamente deixaram saudade –, reforçam outro papel importante do criador, que é o de aproximar e integrar as pessoas envolvidas com a seleção do Nelore, praticamente um embaixador da pecuária brasileira. A facilidade de se aproximar e se comunicar ajuda. “Isso é do meu temperamento, sempre gostei desse relacionamento.”
OUTROS NEGÓCIOS
A produção pecuária é apenas parte dos empreendimentos de Barcellos, que é dono do Grupo Brasif e tem operações em vários segmentos: venda e aluguel de máquinas de construção; empreendimentos imobiliários, com operações nos Estados Unidos; investimentos com aplicações; 55% de uma fazenda de gado e soja no Mato Grosso; a Usina Da Mata em sociedade com Alexandre Grendene, em Valparaíso (SP), que produz açúcar e energia; e a Loungerie, rede de lojas de lingerie que já está em diversas partes do País e tem plano de expansão.
“Ainda temos botijões lá na Índia, prontos para embarcar, com cerca de cinco mil embriões de uma genética diferente de tudo o que já trouxemos”
Há ainda outros dois negócios que são administrados pelo filho de Barcellos, Renato Diniz Barcellos Correa. Um deles é a Cachaça Mata Velha, que é vendida apenas em free shops. E o outro é a Geneal, que tem relação direta com o melhoramento genético das fazendas. Também instalada em Uberaba, a empresa realiza toda a parte de fecundação in vitro e clonagem da fazenda, acelerando o processo de multiplicação do rebanho. Aos 80 anos de idade, Barcellos ainda tem uma agenda bastante concorrida, e não tem previsão de mudar o cenário tão cedo. “Até resolvi parar de falar em trabalhar menos, pois essas tantas atividade é que me dão mais entusiasmo.”
JONAS BARCELLOS
80 anos, casado
Proprietário da Chácara Mata Velha (Uberaba, MG)
Formação: Engenharia Civil pela Escola de Engenharia da Universidade Federal de Minas Gerais (1963)
Faturamento: Não revelado
Propriedades:
• Chácara Mata Velha (Uberaba, MG) – animais para exposição e leilão Fazenda Córrego dos Macacos (Uberaba, MG) – cria e recria de bezerros e novilhas
• Fazenda Calçada (Uberaba, MG) – vacas e novilhas de 1ª cria.
• Fazenda Santa Marina (Santo Antônio do Aconcágua, SP) – seleção do gado a campo
Representatividade: Integrou a diretoria das duas maiores entidades que envolvem os selecionadores de Nelore, a Associação dos Criadores de Nelore do Brasil (ACNB) e a Associação Brasileira dos Criadores de Zebu (ABCZ)
Referência em genética: Por seis anos consecutivos, liderou o ranking da ACNB nas categorias Criador e Expositor
Hobbies: pescaria
Outras atividades: Diretor do Grupo Brasif (Rio de Janeiro, RJ)
TAGS: Chácara Mata Velha, Genética, Índia, Jonas Barcellos, Nelore, Top Farmers