Ameaça dupla

Por Evanildo da Silveira O desmatamento indiscriminado, reforçado pelas mudanças climáticas globa


Edição 20 - 12.06.20

Por Evanildo da Silveira

O desmatamento indiscriminado, reforçado pelas mudanças climáticas globais, está colocando em risco o sistema de safra-safrinha, ou dupla safra, uma das práticas mais lucrativas do agronegócio no sul da Amazônia – região que abrange o sul do estado do Amazonas, Rondônia e boa parte de Mato Grosso. Juntos, os dois fenômenos estão atrasando o início da estação chuvosa em até um mês e, consequentemente, tornando-a mais curta, o que obriga os produtores a plantar fora da época ideal e a acelerar as operações de plantio, inviabilizando a segunda safra.

As conclusões são de estudos realizados por pesquisadores da Universidade Federal de Viçosa (UFV), em Minas Gerais, e colegas dos Estados Unidos, com o uso de dados de chuva e desmatamento, obtidos por satélites no sul da Amazônia. “Mas o atraso também é observado em trabalhos que usam estações ou modelos meteorológicos de simulação, para entender melhor os mecanismos que causam esse fenômeno”, diz o meteorologista Gabriel Abrahão, da UFV, que participou das pesquisas.

De acordo com os cientistas, no sul da Amazônia as chuvas são sazonais, concentradas em uma estação chuvosa que pode durar mais de sete meses por ano. Isso torna possível que os produtores rurais plantem duas safras no mesmo ano, na mesma área. “São duas culturas de sequeiro por estação de crescimento, uma prática conhecida como ‘cultivo duplo’, ‘dupla safra’, ou ‘sistema safra-safrinha’”, explica o engenheiro agrícola Marcos Heil Costa, do Departamento de Engenharia Agrícola da UFV, um dos líderes dos estudos.

Esta dupla safra é fundamental para o sucesso do agronegócio no Brasil. O mais comum é cultivar a soja e, logo após a colheita, plantar o chamado milho safrinha. Essa “safrinha” já é tão comum, que responde por mais de dois terços da produção brasileira de milho. Segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), agricultores brasileiros colheram cerca de 100 milhões de toneladas na safra 2018/19. Desse total, 74 milhões de toneladas foram do safrinha, com um crescimento de 36,9% em relação à colheita anterior; e 26 milhões de toneladas da primeira, 2,3% menor que a de 2017/18.

Por isso, para o agronegócio, o fim da safrinha em uma região significa uma queda drástica na produção agrícola e um aumento dos preços dos produtos. É justamente o que pode ocorrer com o desmatamento, associado ao aumento dos gases do efeito estufa e às mudanças climáticas globais. “A derrubada da mata influencia a ocorrência de chuvas por meio de diferentes mecanismos”, explica Abrahão. “Todos os que conhecemos que agem na região da Amazônia e no Cerrado levam a uma redução do volume de precipitações e a um atraso no início da estação chuvosa.”

De acordo com ele, uma das principais diferenças entre a vegetação natural e a pastagem ou a maioria das culturas é que ela converte mais energia do sol em evapotranspiração ao longo do ano, jogando vapor de água para a atmosfera. “Isso não só aumenta a quantidade de água disponível na atmosfera para chover, mas altera as condições no sentido de facilitar a ocorrência de precipitações quando outros mecanismos meteorológicos entram em ação”, explica Abrahão.

Em outras palavras, o início da estação chuvosa naquela região é influenciado tanto por fatores distantes, como as temperaturas na região central do Pacífico, associadas ao El Niño e aos ventos nos altos níveis da atmosfera, quanto pela evaporação da própria floresta. “Em meados de setembro, as condições sobre o oceano começam a alterar a circulação atmosférica no sentido de fazer começar a chover no sul da Amazônia”, diz Abrahão.

Onde há vegetação natural, no entanto, a atmosfera está com condições prévias melhores para receber essa influência, criando condições para que a chuva comece mais cedo. “Isso faz com que a importância do desmatamento para esse atraso seja muito maior em anos em que as condições de larga escala já são ruins”, diz o pesquisador. “Numa região com 80% de desmatamento, a estação chuvosa começa, em média, algo em torno de menos de uma semana depois de uma região que só tenha 20% de desmatamento por exemplo – 20% é o limite para desmatamento em propriedades privadas na Amazônia. Porém, em anos em que a estação chuvosa já seria atrasada pelas condições desfavoráveis de grande escala, como o El Niño, por exemplo, esse atraso é de quase um mês.”

Segundo Abrahão, usando critérios agronômicos, ele e seus colegas analisaram diretamente o risco que corre a dupla safra no sul da Amazônia, quando há uma estação chuvosa muito curta. “As mudanças climáticas globais reduzem a média da duração do período de chuvas em alguns dias na região, principalmente no leste do Mato Grosso, estado que produz 7% da soja mundial, e que está dentre os que o desmatamento tem acontecido mais rapidamente”, explica. “Mas a destruição da floresta é o principal fator que aumenta o risco de anos muito ruins. Seguindo as tendências de desmatamento que consideramos, em regiões próximas à fronteira com Goiás, a estação chuvosa deve durar menos de 200 dias em mais da metade dos anos na próxima década. Se a vegetação natural voltasse para os níveis que tinha uma década atrás, no entanto, o risco de anos ruins assim iria para mais perto de 20%, um a cada cinco anos.”

De acordo com o pesquisador da UFV, estações curtas assim estão historicamente associadas à perda de produtividade na safrinha. “Em regiões em que a duração média das chuvas é menor do que 200 dias, os produtores geralmente nem a plantam”, diz. Para o agronegócio, além de queda na produção agrícola e aumento dos preços dos produtos, o fim da safrinha é um incentivo para converter a vegetação nativa em área de produção agrícola.

Isso porque, segundo os pesquisadores, como o custo de opções de adaptação à falta de chuvas – como a irrigação, por exemplo – muitas vezes é maior do que comprar mais terra, a pressão para expandir a área agrícola deve se intensificar nos próximos anos. Isso, sem falar que mais desmatamento significa estações chuvosas ainda mais curtas. “É uma espiral autodestrutiva que prejudica o clima, a vegetação e a própria agricultura, não só no sul da Amazônia como em outras regiões que dependem das florestas para gerar sua precipitação, como é o caso de boa parte do Cerrado”, diz Abrahão.

Mas o grande problema é que as condições de grande escala vêm ficando piores e o efeito disso em regiões muito desmatadas é muito forte. “Já prevemos que grande parte do Matopiba [região que engloba os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia] provavelmente não terá mais uma estação chuvosa longa o suficiente para sustentar duas safras no ano dentro de duas décadas com as mudanças globais que estão ocorrendo no clima”, diz Abrahão. “Mas em muitas regiões a diferença entre ser ou não possível realizar duas safras depende do quanto de vegetação ainda existe na região.”

De acordo com ele, é uma questão de risco. As chuvas não vão demorar a começar todo ano, mas os anos em que ela tarda muito vêm se tornando mais intensos e mais frequentes. “Os próprios produtores rurais vêm notando isso”, afirma Abrahão. “A questão é que esse risco pode ser muito mitigado pela preservação das florestas. O efeito da vegetação se dá em escalas de vários quilômetros. Então, quem mantém mais do que o código florestal obriga de mata natural na propriedade e que os vizinhos fazem o mesmo e têm áreas de preservação próximas sentem menos o atraso das chuvas.”

O problema também pode ter, no entanto, um lado bom. “A crescente ameaça que uma mudança climática representa para agricultura tropical oferece uma oportunidade de envolver o agronegócio como um poderoso aliado para a conservação e restauração dos ecossistemas nativos”, acredita Costa. Para os pesquisadores, enquanto a terra for barata e a demanda para aumentar a produção for crescente, vai ser muito difícil conter o desmatamento. Por isso, é fundamental que o agronegócio e os governos locais entendam o valor do serviço de regulação do clima que a vegetação nativa intacta provê na região amazônica. Para eles, se as pessoas não forem informadas com razões suficientes para conservar os ecossistemas onde elas vivem e dos quais dependem, a destruição e degradação provavelmente não vão parar.

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