O campo acelera sozinho

Por Amauri Segalla A pequena Crown Point, cidade americana de 20 mil habitantes no estado de Indian


Edição 19 - 29.04.20

Por Amauri Segalla

A pequena Crown Point, cidade americana de 20 mil habitantes no estado de Indiana, vive uma revolução tecnológica. Desde o ano passado, tratores autônomos apenas um pouco maiores do que cortadores de grama espalham sementes de morango e maça pelos campos férteis da região. Eles cruzam o terreno, desviam de obstáculos e trabalham incansavelmente, faça chuva ou faça sol, sem interferência humana. Criados pelo advogado Zachary James, filho de fazendeiros da região e obcecado por sistemas baseados em inteligência artificial, os tratores Rabbit (nome que também batiza a empresa) não têm o glamour dos carros autônomos da Tesla, Apple, Uber, Amazon ou Waymo (braço automotivo do grupo Alphabet, dono do Google). Ao contrário de seus parentes mais famosos, porém, eles deixaram a fase de protótipos para se tornarem uma realidade visível e cada vez mais aplicável. Se os carros autônomos estão muito distantes de ocupar ruas e avenidas dos centros urbanos, no campo o futuro já chegou – e ele pertence às máquinas que não precisam da mão humana para se movimentar.

Diversos motivos explicam por que as fazendas tomaram a dianteira nesse processo. “A primeira razão tem a ver com segurança”, diz o consultor Eduardo Tancinsky, especializado em tecnologia. “Nos últimos dois anos, uma série de acidentes, inclusive com vítimas fatais, mostraram que os autônomos estão muito longe de ser adotados nas cidades com a garantia de que não colocarão humanos em risco.” Recentemente, um estudo da Universidade de Berkeley, nos Estados Unidos, concluiu que os autônomos urbanos só estarão prontos para ser adotados a partir de 2028, sendo que a previsão inicial era 2025. Parceira de companhias como Toyota e Ford, a Universidade de Coventry, na Inglaterra, projeta que os carros autônomos estarão disponíveis no mercado até 2025, mas não será surpresa para ninguém se novos atrasos surgirem pelo caminho.

O consultor Tancinsky prossegue na análise: “Nas fazendas, o risco de acidentes é próximo de zero, já que não há pessoas na rota dos tratores e a velocidade das máquinas é muito menor”. De fato, os campos agrícolas, ao contrário de ruas, avenidas e estradas, não têm pedestres ou motoristas imprevisíveis. Acidentes podem acontecer, mas seus efeitos são menos danosos. Em entrevista recente para um site americano especializado em assuntos rurais, Zachary James disse que os tratores Rabbit já provocaram uma colisão. “Eles bateram uma vez em uma árvore, mas ela sobreviveu”, brincou. Segundo o empresário, seus veículos têm velocidade média de 11 km/h, enquanto os carros autônomos da Uber, por exemplo, chegam facilmente a 80 km/h. Quanto mais baixa a velocidade, mais tempo a máquina tem para processar dados e reagir adequadamente – foi a velocidade excessiva de um autônomo da Uber que provocou um acidente com vítima fatal em 2018. “Vai demorar muito para que uma família confie que um carro sem motorista leve uma criança, por exemplo, para a escola”, diz o consultor. “Duvido que um fazendeiro se recuse a usar autônomos em suas lavouras por temer que eles atropelem alguém, simplesmente porque isso não tem chance de acontecer.”

O segundo aspecto que facilita a adoção de tratores independentes nas fazendas e, ao mesmo tempo, dificulta a sua disseminação nas cidades têm a ver com questões regulatórias. Por enquanto, os tratores autônomos estão livres para trabalhar na maioria dos países, desde que não transitem por caminhos asfaltados. Não há regulamentação específica para eles, o que significa que podem circular sem restrição pelo chão de terra das fazendas. A Organização Internacional de Padronização, entidade que publica normas sobre quase tudo – de equipamentos de saúde a drones –, não possui nenhuma orientação sobre tratores autônomos. Nos Estados Unidos, o Departamento Nacional de Transportes ignora o assunto e apenas um estado, a Califórnia, criou uma norma, exigindo que os veículos sejam supervisionados por um ser humano. “Assim como ninguém precisa ter licença para comprar um cortador de grama, não faz muito sentido criar regras restritivas para um veículo que anda a pouco mais de 10 km/h”, diz Tancinsky.
Os veículos autônomos urbanos, por sua vez, sofrem com a pressão contínua das autoridades. Ainda não existe regulamentação a respeito – na maioria dos países, as leis de trânsito determinam que um motorista mantenha pelo menos uma mão ao volante. Até agora, não se criaram regras específicas para os casos em que as mãos não são necessárias, como acontece com os autônomos. As autoridades começaram a pensar melhor no assunto depois de acidentes com veículos da Uber e da Tesla. Desde então, os testes passaram a ser feitos apenas em ambientes controlados. A própria indústria diz que está muito distante o dia em que a pessoa pedirá um carro por aplicativo e ele aparecerá na porta de casa sem que um ser humano de carne e osso esteja atrás do volante.

Em recente seminário realizado nos Estados Unidos, Gill Pratt, especialista em robótica e presidente do Toyota Research Institute, demonstrou certo ceticismo em relação à autonomia total dos automóveis. Segundo ele, está longe o dia em que haverá tecnologia 100% segura para que apenas uma inteligência artificial seja capaz de levar as pessoas de um ponto a outro, superando obstáculos, mudando rotas aleatoriamente e não representando qualquer tipo de ameaça para todos os seres vivos que cruzarem o seu caminho. Pratt disse que, em vez disso, o que deverá dominar o mercado são os sistemas avançados de assistência ao motorista. “Pense neles como um copiloto, não como um autopiloto”, disse o executivo. Ele se refere a controles ultraprecisos de direção, dotados de radar, câmeras e uma infinidade de sensores que percebem o entorno do automóvel e automaticamente aceleram, param, seguem, mudam de direção ou tomam ações evasivas. O executivo também afirmou que “muito provavelmente” os autônomos vão operar apenas em ambientes controlados, como aeroportos, centros universitários e espaços fechados para a realização de eventos. Nas ruas e estradas convencionais, eles continuarão a ser, por muito tempo, objetos de ficção.

Nas fazendas, o cenário é diferente. Desde meados do ano passado, robôs autônomos desenvolvidos pela britânica Small Robot Company localizam e matam ervas daninhas que ameaçam as plantações. Outros modelos criados pela empresa dispersam sementes e distribuem fertilizantes de maneira muito mais eficaz do que se o mesmo trabalho fosse feito por mãos humanas. É um aperfeiçoamento da agricultura de precisão, método baseado na tecnologia que permite aos fazendeiros, por exemplo, pulverizar pesticidas apenas em ervas daninhas, sem afetar a planta. Pelo menos 20 grandes fazendas da Inglaterra utilizam as máquinas da Small Robot, e elas têm se revelado bastante eficientes. Segundo a empresa, até o final de 2020 os pequenos tratores autônomos deverão chegar a outras 100 fazendas do país e já há encomendas de produtores da Alemanha, Espanha e França. Os pequenos autônomos fabricados pela startup custam entre US$ 10 mil e US$ 20 mil, valores acessíveis considerando o nível de tecnologia que possuem.

Esse é mais um motivo que coloca os autônomos rurais em vantagem na comparação com os urbanos. Como muitos deles são pequenos equipamentos, concebidos para ter agilidade para circular em terrenos acidentados, os preços costumam ser mais baixos do que os projetados para os autônomos de empresas como Tesla e Apple. Recentemente, Elon Musk, o polêmico fundador da Tesla, afirmou que os seus carros sem supervisão humana custarão a partir de US$ 100 mil, ou cinco vezes mais do que o autônomo mais caro da Small Robot. É preciso lembrar, porém, que desenvolver tratores autônomos não é tarefa simples. Os campos agrícolas são ambientes cheios de obstáculos e desiguais, oferecendo dificuldades adicionais de navegação na comparação com estradas pavimentadas. “Os problemas que você encontra variam de fazenda para fazenda”, disse Sarra Mander, diretora de Marketing da Small Robot, para o site OneZero. “Em algumas fazendas pode haver uma estrada, em outras existem trilhas. Os tratores autônomos precisam se adaptar a uma diversidade muito grande de terrenos.”

Não são apenas as startups que se dedicam ao desenvolvimento de tratores autônomos. Grandes companhias como a italiana CNH Industrial e a americana John Deere têm modelos avançados sendo desenvolvidos em seus laboratórios de inovação. Equipados com câmeras, sensores e radares, eles são capazes de mapear o espaço a sua volta e definir a melhor rota sem atingir obstáculos. Dotados de autonomia integral – ou seja, sem a presença de um condutor –, os tratores Steiger, da CNH, acumulam mais de 900 horas de testes realizados na Plot House Farms, sua base de experimentos na Califórnia, nos Estados Unidos. A John Deere dedica-se há dois anos ao projeto GridCon, focado em tratores autônomos e elétricos. As duas empresas não estabeleceram datas para que as máquinas sejam usadas em escala comercial.

No Brasil, um dos desafios para que os tratores autônomos ocupem as lavouras é a falta de conectividade no meio rural. O relatório “Índice de prontidão para o uso de veículos autônomos 2019”, realizado pela consultoria KPMG, colocou o Brasil como o país mais despreparado, entre 25 nações analisadas, para a disseminação dessas máquinas, atrás de países como Rússia, Índia e México. O motivo: a péssima cobertura 4G. As empresas já estão se mobilizando para amenizar o problema. Recentemente, gigantes como Bayer, CNH Industrial e Nokia lançaram o projeto ConectarAgro, que tem o objetivo de levar internet para áreas rurais brasileiras. A John Deere tem um projeto parecido, chamado de Conectividade Rural. Quando os desafios de conectividade forem superados, o Brasil deverá ser um dos protagonistas globais no uso de tratores autônomos.

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