O ambiente dita a moda

Por Romualdo Venâncio Entre os fatores que norteiam o trabalho de Marcel Yoshimi Imaizumi, diretor


Edição 17 - 20.12.19

Por Romualdo Venâncio

Entre os fatores que norteiam o trabalho de Marcel Yoshimi Imaizumi, diretor executivo de Operações – ou COO (Chief Operating Officer) – da Vicunha Têxtil, estão as tendências de consumo. É obrigatório ficar de olho e entender as particularidades no comportamento do público que consome os produtos de seus clientes, como muitas das peças criadas pelas principais marcas do segmento de jeanswear. Esse exercício constante de observação acontece até mesmo dentro de casa. Marcel tem uma filha de 20 e poucos anos que faz parte de um grupo de WhatsApp com cerca de 50 garotas da mesma faixa etária, cujo objetivo é trocar roupas. “Toda semana minha filha aparece de roupa nova sem que precise gastar dinheiro a cada troca”, diz o executivo. “Essas jovens não deixaram de comprar, mas compram menos, e esses produtos circulam, são reusados”, acrescenta. Essa tendência deriva do desafio dos três erres – reduzir, reusar e reciclar – que embasam o conceito de sustentabilidade. Tal mudança de comportamento, por um consumo mais consciente e conectado com causas ambientais e sociais, é um dos motivos que levaram produtores rurais, indústria têxtil, o universo da moda e o terceiro setor a se reunir para provar o comprometimento dessa cadeia com a preservação de recursos naturais. O jeans é a bandeira dessa iniciativa.

Marcel Imaizumi, COO da Vicunha Têxtil

O projeto é fruto da parceria entre a Vicunha, a Associação Brasileira dos Produtores de Algodão (Abrapa) e o Movimento Ecoera, precursor em integrar a sustentabilidade à indústria da moda, design e beleza no Brasil. O primeiro passo foi levantar a pegada hídrica do tecido, desde as lavouras até a entrega do vestuário pronto ao consumidor final. E aí entram também a consultoria H2O Company, que atua em gestão do uso de recursos hídricos, e a organização não governamental Iniciativa Verde. O estudo, baseado na metodologia global Water Footprint Network, concluiu que são utilizados 5.196 litros de água para a fabricação de uma calça jeans, sendo que a maior parte do consumo está no campo. De acordo com o levantamento, são 4.247 litros no plantio, 127 litros na tecelagem, 362 litros nas fases de lavanderia e confecção e 460 litros nas lavagens caseiras, feitas pelos consumidores. A iniciativa tem sintonia com alguns dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável definidos pela Organização das Nações Unidas, sobretudo o 12º e o 17º, consecutivamente “Consumo e Produção Sustentáveis” e “Parcerias e Meios de Implementação”.

Conhecer bem essas estatísticas, e todo o contexto que as envolve, é essencial para definir metas e estratégias que levem a reduzi-las. No caso da água consumida nas lavouras, por exemplo, é preciso considerar que, primeiro, quase toda a produção de algodão no Brasil é feita em sistema de sequeiro, ou seja, apenas com água da chuva, sem irrigação. E, segundo, 60% dessa água retorna para a natureza. Só esses dois fatores já fazem uma grande diferença na pegada hídrica do setor.

Marcio Portocarrero, diretor executivo da Abrapa, afirma que esse estudo fortalece a construção de imagem do setor que a entidade já vem realizando há muito tempo. A Abrapa, que completou duas décadas de existência em abril deste ano, tem criado ferramentas e sistemas que asseguram as melhores condições de produção nas fazendas e o alto padrão de qualidade das plumas, como os programas de certificação Algodão Brasileiro Sustentável (ABR) e Standard Brasil HVI (SBRHVI), o Sistema Abrapa de Identificação (SAI) e a campanha Sou de Algodão.

Não por acaso, os cotonicultores integrados à entidade respondem por 99% da produção nacional, que na safra 2018/19 deve chegar a 2,8 milhões de toneladas de pluma – com produtividade média acima de 1,7 mil quilos por hectare. “Temos 86% de nosso mercado certificado e participação de 30% no volume mundial de algodão com certificação”, comenta Portocarrero. Ele diz inclusive que a entidade quer ir além na argumentação científica sobre a questão de recursos hídricos, apurando dados ainda mais específicos. “A planta do algodão tem um sistema de abrir e fechar poros para consumir apenas o que é necessário de água, a natureza já providenciou isso. Agora, queremos calcular a quantidade exata de água necessária para a formação dessa planta. Para isso, buscamos o apoio da Embrapa Meio Ambiente, que está interessada em participar desse projeto. A partir daí, eliminamos quaisquer discussões”, afirma.

Alma do negócio

Em dezembro, Marcel Imaizumi completará 30 anos de carreira na Vicunha Têxtil. A empresa, que hoje é líder mundial na produção de índigos e brins, referência em jeanswear e fatura R$ 1,6 bilhão por ano, passou por diversas mudanças nessas três décadas. Inclusive um ajuste fino em relação ao foco das atividades. “Tínhamos uma operação gigante, com malharias de algodão, poliéster e viscose. Fabricávamos de tudo. Hoje, só produzimos índigo e brim e o resultado do negócio é bem melhor”, comenta o executivo. É por conta também desse redirecionamento, e do fato de o algodão representar 90% da matéria-prima utilizada pela companhia, que Marcel dá tanto valor ao projeto do cálculo da pegada hídrica, pois faz muita diferença frente aos consumidores internacionais. Mas, para ele, ainda há muito o que explorar nesse campo.

Marcel acredita que a cotonicultura brasileira deveria fazer bem mais barulho pelo fato de ter a melhor pegada hídrica na comparação com o algodão produzido em qualquer outra região do planeta. “No momento em que o mundo perceber as dimensões desse diferencial, o algodão do Brasil passará a ser first choice para os importadores”, analisa. Tal reconhecimento não só criaria possibilidades de agregar valor nas negociações como contribuiria para equilibrar o mercado, considerando que o volume produzido se aproxima de 3 milhões de toneladas de pluma, enquanto a demanda interna mantém-se estagnada em 700 mil toneladas. “Precisamos ir além da busca de mercado por volume e investir em ações de marketing e divulgação desse diferencial”, sugere Marcel.

O executivo faz uma analogia do algodão brasileiro com o café colombiano, que segundo ele não é reconhecido mundialmente apenas por sua qualidade, mas também porque o setor cafeeiro da Colômbia construiu essa imagem. “Provavelmente você vai pagar um preço diferenciado no café colombiano, e não quer dizer necessariamente que, do ponto de vista de sabor, ele seja melhor do que todos os outros. O algodão brasileiro carrega em sua estrutura produtiva componentes de sustentabilidade diferentes e melhores do que o de outras zonas produtoras. Lembrando que a legislação ambiental no Brasil é bastante dura”, avalia Marcel. “Temos possibilidade de, no futuro, fazer com que a fibra nacional receba um ágio por essas práticas mais positivas, mas é preciso um esforço na divulgação disso.”

Um dos caminhos para ampliar esse reconhecimento mercadológico é abrir uma conexão direta entre o setor agrícola e as grandes marcas da moda. Essa ligação não precisa acontecer apenas pelo jeans, mas dada a relevância do tecido e o fato de ser o principal produto da Vicunha, faz todo o sentido aproveitar a estrada já pavimentada. Marcel se entusiasma ao falar desse acesso, pois pode ser um fator de decisão das marcas entre um jeans produzido pela Vicunha ou outro fabricado por algum fornecedor paquistanês ou chinês. “Já sou um vetor desse marketing das qualidades desenvolvidas na cadeia do algodão, mas essa ação precisa ter mais força”, diz ele, argumentando que com o apoio de quem representa a cotonicultura é possível fazermos o barulho certo.

Marcio Portocarrero, da Abrapa

A concorrência cresceu

É certo que as ações da cadeia produtiva do algodão brasileiro podem evoluir, pois há muito mercado a ser conquistado. Até por essas oportunidades, representantes da Abrapa visitam com frequência diversos países com o intuito de fortalecer e ampliar os laços comerciais. Da mesma forma, a entidade costuma receber delegações estrangeiras e grupos de importadores para conhecerem o setor aqui no Brasil, em especial as fazendas produtoras de algodão. Essa valiosa aproximação, chamada de “Missões de Compradores e Vendedores”, é parte dos desafios do setor. Ainda há outras fronteiras a serem exploradas e conquistadas, como a da logística. De acordo com a Abrapa, a capacidade de escoamento da produção, por rodovias e portos, não acompanhou o crescimento agrícola e ameaça penalizar a competência do cotonicultor.

Marcel comenta que, na Vicunha, a grande pergunta que se faz todos os dias é “como sobreviver nos próximos cinco anos?”. Essa dúvida diz respeito aos vários desafios crescentes do lado de fora, como a informalidade, que na opinião do executivo avançou de forma assustadora. “Tenho dito que um grande obstáculo do País hoje não é a concorrência com a China, mas com a ‘China brasileira’. A crise econômica trouxe de volta esse problema, que é muito ruim, pois a sonegação fiscal leva a uma deterioração da plataforma de investimentos em setores básicos como educação, saúde e segurança”, explica. “É uma coisa nefasta que retornou.”

Esse questionamento de curto prazo também serve para preocupações que parecem estar mais distantes. O algodão é a matéria-prima predominante na fabricação de jeans e sarja, os dois principais segmentos de atuação da Vicunha. Até entra uma parcela de fibras sintéticas devido à demanda por mais maciez ou jeans stretch, com propriedades para esticar mais. Ou seja, no caso desses tecidos, o cotonicultor não precisa temer a concorrência com a fibra artificial. “Agora, se você pensar que a população humana vai crescer entre 13 e 14 bilhões de pessoas até atingir sua maturidade, quando então deve estacionar, e a produção de fibra natural não terá espaço para avançar de forma exponencial, as sintéticas continuarão a crescer”, avalia Marcel. Ele diz ainda que já se busca, tecnologicamente, agregar às fibras artificiais algumas propriedades do algodão, como o conforto e a hidrofilidade.

Nessa comparação entre a fibra natural e a sintética pesa outro fator que já tem relevância, mas terá ainda mais: a reciclagem. O diretor da Vicunha explica que não é possível reciclar uma roupa de algodão a ponto de transformá-la em algodão de novo. No máximo, vai virar viscose. No caso das roupas fabricadas com jeans, pode-se pensar na manufatura de outras peças, como bolsas, mas o leque não é tão amplo, pois trata-se de um tecido mais duro. Já o poliéster, por exemplo, pode ser reciclado e voltar à sua forma original. “A reciclagem é uma necessidade, como no caso do plástico e demais produtos derivados do petróleo. Talvez, no segmento de vestuário, hoje ainda valha mais a pena produzir, mas no futuro reciclar será decisivo”, diz Marcel. Essa cobrança tende a ganhar cada vez mais força.

A razão do cliente

Se houve grandes e significativas mudanças na cadeia produtiva, mais ainda na outra ponta, onde os consumidores olham para uma calça jeans e já não querem apenas saber se vai vestir bem. Para as novas gerações, além de ter bom preço e qualidade e combinar com seu estilo cultural – que também inclui a moda –, essa roupa tem de acompanhar seus princípios e conceitos de vida, suas causas. Muita gente olha a etiqueta em busca de respostas sobre a origem do produto, os processos de fabricação, quais foram os impactos ambientais, como aquela marca lida com seus funcionários. Se essa investigação der a entender que pode haver qualquer problema mais sério, a informação se espalha rapidamente pelas mídias sociais e, se de fato houver fundamento, ainda entra na rota de apuração dos veículos de comunicação e vira notícia. Reverter esse quadro é uma missão árdua, que nem sempre se cumpre.

O universo da moda também abraçou essa tendência, tanto que vem ganhando força o movimento para dar mais transparência às ações em todos seus elos. Foi por aí que surgiu o movimento global Fashion Revolution, formado por designers, acadêmicos, escritores, líderes empresariais, formuladores de políticas, marcas, varejistas, comerciantes, produtores, fabricantes, trabalhadores e amantes da moda. É assim que eles se definem em seu site: “Nós somos a indústria e somos o público. Nós somos cidadãos do mundo. Nós somos você”.

O objetivo desse grupo é promover uma transformação na maneira como as roupas são adquiridas, produzidas e consumidas, com o intuito de que sejam feitas de maneira segura, limpa e justa. Daí surgiram duas campanhas para integrar quem veste e quem produz as roupas: #whomademyclothes e #imadeyourclothes. A causa é nobre, essa integração é louvável, mas o ponto de partida dessa ação toda foi uma dolorosa tragédia. O desabamento de um centro comercial na periferia de Daca, a capital de Bangladesh, em 24 abril de 2013, causou a morte de 1.134 pessoas e deixou mais de 1.500 feridas. Essas vítimas trabalhavam para marcas globais da indústria de confecção, em condições análogas à escravidão.

O olhar mais crítico à fabricação de roupas no mundo também estimulou a produção do documentário The True Cost, dirigido por Andrew Morgan, filmado em diversos países e lançado em maio de 2015. A obra mostra o impacto da indústria da confecção no mundo e a relação entre a redução do preço das roupas e a elevação dos custos pessoais e ambientais. É uma provocação para que a sociedade pense em quem está de fato pagando a conta da produção de roupas. “A gente precisa defender aquilo que acha que é correto, ético e bom. No momento em que todo um conjunto de pessoas estiver trabalhando dessa forma, pensando no bem das coisas, com eficiência em tudo, com certeza criaremos organizações e ambientes muito melhores para o futuro”, finaliza Marcel.

TAGS: Algodão, Pegada Hídrica do Jeans, Sustentabilidade